Traços de cocaína, cafeína e relaxante muscular detectados nas águas do estuário de São Vicente

Estudo identificou seis drogas em concentrações que oferecem risco biológico de baixo a moderado para a fauna marinha local. Poluição é resultado tanto de esgoto não tratado como da proximidade do porto de Santos.

Em julho de 2024, pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz publicaram os resultados da dissecação de treze pequenos tubarões nativos das águas do Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro. Os animais da espécie Rhizoprionodon lalandii, capturados acidentalmente por pescadores, estavam contaminados com cocaína e benzoilecgonina, uma molécula que é subproduto do metabolismo da droga pelo fígado humano e serve como indício de seu consumo.

A descoberta surpreendeu o público, e o artigo foi mencionado mais de 350 vezes pela mídia nacional e a internacional. Porém, oceanógrafos e outros estudiosos dos mares e de seus habitantes sabem, há décadas, que águas fluviais e costeiras do mundo todo estão contaminadas por drogas ilegais e fármacos, e que essas substâncias oferecem risco à fauna. O problema se acentua em regiões urbanizadas com piores condições socioeconômicas, em que não há acesso universal ao tratamento de esgoto. 

O oceanógrafo Camilo Seabra — que é docente da Universidade Federal de São Paulo e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade de Ambientes Costeiros da Unesp, no câmpus do Litoral Paulista — é um dos pioneiros dessa área no Brasil. Ele dedicou a carreira a estudar diversos tipos de poluição nas águas da Baixada Santista, e também acumula experiências em outros litorais, como uma investigação sobre derramamento de petróleo no Nordeste.

Seabra orientou no Programa de Biodiversidade em Ambientes Costeiros a pesquisa de doutorado de Andressa Ortega, que teve como tema a presença de fármacos e drogas ilegais em amostras coletadas em oito locais diferentes no estuário de São Vicente. Os resultados da pesquisa foram publicados em artigo publicado em julho no periódico especializado Marine Pollution Bulletin.

Essa área de transição entre rio e mar, margeada por mangues a oeste e uma densa urbanização a leste [veja o mapa mais abaixo], é um dos recortes da Baixada que ainda não havia sido avaliado pelo pesquisador e seus colaboradores costumeiros após mais de uma década passando um pente fino no litoral paulista.

A análise inédita da água, dos sedimentos e de ostras no estuário acusou a presença, em concentrações relevantes, de cocaína e de seu metabólito benzoilecgonina, bem como de quatro outras substâncias que não têm problemas com a lei: a cafeína; o losartan, que é um remédio para pressão alta; a carbamazepina, usada contra a epilepsia; e a orfenadrina, um relaxante muscular que aparece com a dipirona em diversos analgésicos vendidos sem receita. Em várias das coletas, as concentrações encontradas já eram suficientes para oferecer risco ecológico baixo ou moderado a crustáceos, peixes e algas.

Hotspot de poluição

A região é um hotspot de poluentes. Além da grande quantidade de casas irregulares construídas sobre palafitas, que descartam seus dejetos sem tratamento, mesmo as partes da ilha que dispõem de coleta esgoto regular não têm acesso a tratamento: os dejetos são descartados diretamente na água por meio do Emissário Submarino de Santos, um gigantesco cano que libera tudo a 4 km de distância da costa (o que evita sólidos e líquidos indesejáveis nas praias).

Outro problema é a proximidade com o porto de Santos, que é o mais movimentado do Brasil e do Hemisfério Sul, e sabidamente empregado também para atividades de tráfico de drogas. O uso velado do porto por criminosos, junto à presença do crime organizado nas áreas de baixa renda e difícil acesso da periferia de São Vicente, explica a presença de quantidades incomuns de cocaína pura na água.

Normalmente, o fígado humano metaboliza algo como 90% do pó, de modo que o subproduto benzoilecgonina tende a aparecer aproximadamente nove vezes mais que a cocaína em si em amostras de regiões que recebem apenas urina dos usuários. Nas cercanias de Santos, porém, também há um bocado da substância que jamais passou pelo organismo humano. Isso sugere que parte do produto acaba sendo perdido no frete, e contamina diretamente o mar.

A detecção de drogas na água é uma informação muito importante para o estabelecimento de políticas públicas para a área ambiental. Seabra conta que, quando publicou alguns de seus primeiros estudos sobre cocaína, ainda em 2016, tanto a mídia quando os moradores da região ignoravam que a Sabesp não trata o esgoto da Baixada. Esse levantamento também proporciona um retrato peculiar dos padrões de consumo de substâncias ilícitas, e serve de alerta para estudos que avaliem outros problemas decorrentes da poluição, como a contaminação de peixes consumidos por nós. 

“As concentrações mais altas são no Ano-Novo e Carnaval”, diz Seabra. “E a gente já sabe que a droga bioacumula — tanto nos mexilhões, como nas ostras, como nos peixes. Esses são todos organismos comestíveis, o que já dá uma ideia também do risco para consumo humano, (…) ainda que o foco deste estudo específico fosse o risco para os animais em si.”

Concentração moderada já é motivo para preocupação

O estudo determinou que a cocaína e o losartan, nas concentrações encontradas, oferecem toxicidade moderada para crustáceos. A espécie usada de referência para essa medição foi um minúsculo plâncton de nome científico Daphnia magna, que tem 5 mm e é um organismo modelo muito usado em experimentos de laboratório, tal como camundongos, no caso dos mamíferos, e moscas-das-frutas, dentre os insetos.

Os pesquisadores também descobriram que as concentrações de benzoilecgonina oferecem risco ecológico moderado para peixes. Neste caso, a espécie usada de parâmetro foi o Pimephales promelas. Esse bichinho nativo da América do Norte, que não têm um nome popular em português, é famoso por ser duro na queda: é encontrado em habitats poluídos onde a maior parte de seus colegas de filo não se aventuram. Daí ter se tornado uma cobaia habitualem pesquisas sobre poluição aquática.

É importante não deixar a palavra “moderado” camuflar a dimensão do problema: “A mera presença desses compostos na água já é um indicador de preocupação”, diz Vinicius Roveri, professor da Universidade Metropolitana de Santos que já conduziu diversas análises na região, e assina o trabalho com Andressa e Seabra.

“[A presença de drogas] revela que não existe um bom tratamento de esgoto na região, ou mesmo que há um consumo excessivo dessas drogas. Além disso, o estudo é uma fotografia do momento da coleta, feita no verão de 2022. Outros estudos com a mesma metodologia [em regiões próximas] revelam concentrações maiores e riscos altos”, diz ele.

Vale dizer que Seabra e seus colaboradores não testaram esses animais em laboratório por conta própria. Eles consultaram tabelas de referência geradas por outros pesquisadores no passado que expuseram os bichinhos às drogas em condições controladas para determinar os níveis de concentração a partir dos quais a presença de cada substância se torna preocupante.

Os problemas de saúde que a fauna marinha pode desenvolver variam um bocado. Por exemplo: dependendo da espécie afetada, a cocaína interfere na formação de músculos, na produção de hormônios pelo sistema endócrino – o que afeta a reprodução — e no funcionamento de órgãos como rins e fígado, que são os responsáveis por lidar com a filtragem, processamento e excreção de toxinas.

No momento, Seabra conduz, junto com uma aluna de mestrado, um projeto que visa justamente conduzir versões nacionais desses testes e montar essas tabelas do zero para a fauna brasileira, de modo a adequar estudos futuros à nossa realidade. “Estudos comparativos entre climas temperados e tropicais têm mostrado que a nossa fauna é mais sensível”, explica Seabra. “Então, a gente espera chegar em valores mais baixos de toxicidade”, ou seja, que os animais precisem de menos droga para apresentar certos problemas, explica

Outra minúcia importante é que a cocaína na água destilada, usada em estudos como os descritos acima para evitar a interferência de outras substâncias, se comporta de maneira bem diferente da droga na água parcialmente salgada presente no estuário. E a diferença é para pior. “Em contato com os sais da água e principalmente num pH mais alto, ela se torna mais biodisponível”, diz Seabra. “O que isso significa é que é mais fácil dela se acumular nos organismos e, com isso, causar efeitos.”

O mapa das coletas

O mapa abaixo mostra os sete locais em que a equipe e seus colegas coletaram amostras. O território da ilha de São Vicente é dividido em dois municípios: São Vicente em si, localizada na metade oeste, e Santos, que fica na parte leste e abriga o porto – o mais movimentado do Hemisfério Sul. As coletas aconteceram exclusivamente do lado ocidental.

As amostras 0, 1 e 2 vieram das fozes dos rios Santana, Mariana e Piaçabuçu, que deságuam em diferentes pontos do estuário. A amostra 3 veio das proximidades de uma favela construída sobre palafitas. Há pouco mais de 45 mil imóveis irregulares na ilha, que abrigam 17,4% da população. Vários deles despejam dejetos não tratados diretamente no estuário – os autores identificaram, ao todo, oito saídas de esgoto clandestinas.

A amostra 4 veio das margens do Parque Estadual Xixová-Japuí, que é uma área protegida, mas afetada pelos núcleos urbanos próximos. As amostras 5 e 6, por sua vez, vêm das Praia dos Milionários e de Itararé, dois trechos urbanizados e disputados por banhistas na orla de São Vicente.

Cada amostra, na verdade, consiste em treze coletas: uma garrafa d’água preenchida a 30 cm de profundidade, três amostras de sedimento do leito e nove ostras. A razão é que as substâncias têm graus de afinidade diferentes com cada um desses substratos. Algumas ficam na água, outras se concentram no sedimento, e diversas se instalam mais facilmente no organismo de animais filtradores.

Todo esse material permaneceu congelado até a data das análises, que acontecem em uma máquina de nome cabeludo: cromatografia líquida acoplada à espectrometria de massas. Das 34 substâncias que a máquina de cromatografia era capaz de detectar, as seis já citadas foram as que apareceram em quantidade suficiente para entrar nas tabelas do estudo.

O próximo passo de Seabra e seus colegas será expandir, e muito, o leque de drogas e fármacos analisados em seus estudos. Isso será possível empregando-se uma máquina nova, capaz de encontrar mais de 400 moléculas, incluindo hormônios e antibióticos. Esse poder de detecção redobrado, junto das tabelas de toxicidade calculadas especificamente para organismos aquáticos brasileiros, levarão as pesquisas na Baixada Santista para um novo patamar.

É um avanço rápido para uma área que, até pouco tempo atrás, não estava no radar nem do público nem das universidades brasileiras. “Quando comecei esse trabalho, há dez anos, não imaginava que essas pesquisas iam gerar tanto interesse”, diz Camilo. “Na verdade, sequer  imaginava que a Fapesp e o CNPq iriam me financiar.”

Após o impacto dos primeiros trabalhos — a mera notícia de que Santos não trata seu esgoto gerou uma denúncia do Ministério Público contra a Sabesp — ficou claro o impacto social da pesquisa nas águas da Baixada. “Foram muitas reuniões. Com a Cetesb, com a prefeitura. E a população cobrando. Foi um debate legal porque, mais importante do que saber que tem cocaína na Lagoa do Mar, foi o cidadão saber que o seu esgoto não era tratado. Ele paga por isso.”

Imagem acima: Praia dos Milionários, em São Vicente, um dos pontos onde foram coletadas amostras para o estudo. Crédito: Kauã Pereira, Wikimedia Commons.