Há 100 anos, um trio de físicos dava início a uma revolução que sacudiu toda uma área da física. Em 1925, os alemães Werner Heisenberg, Max Born e Pacual Jordan apresentaram ao mundo a mecânica matricial, a primeira formulação teórica que se mostrou bem-sucedida para explicar os conceitos e leis da nascente mecânica quântica, que vinham sendo observados desde o começo dos anos 1900.
Um século depois, é impossível imaginar um mundo sem o legado da pesquisa quântica. Do ponto de vista do conhecimento científico, os estudos desenvolvidos a partir dessa teoria responderam a inúmeras questões sobre o funcionamento do universo, abrangendo desde suas mais ínfimas partículas até os gigantes de matéria cósmica. Na tecnologia, os avanços que ela possibilitou são onipresentes, incluindo os chips e lasers que nos permitem usar celulares e navegar na internet. O conhecimento da mecânica quântica é essencial para o cotidiano da humanidade e promete continuar exercendo um papel importante no futuro, seja promovendo respostas para questões ainda em aberto sobre o universo, seja por meio do desenvolvimento de novas tecnologias.
Tomando como referência o centenário da publicação dos trabalhos de Heisenberg, Born e Jordan, a Organização das Nações Unidas para a Educação e a Cultura (Unesco) declarou 2025 como o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas (IYQ). O objetivo é incentivar instituições de pesquisa e ensino, comunicadores e artistas do mundo inteiro a realizar ações de divulgação dos conceitos e temas da área, na expectativa de disseminar informações científicas e apresentar os avanços alcançados graças à mecânica quântica.
“Houve muitos motivos que levaram ao reconhecimento desse ano. Mas acho que o mais importante é que, nos últimos 100 anos, os cientistas passaram a ver a estrutura da mecânica quântica como a forma mais detalhada de entender a natureza”, diz Paul Cadden-Zimansky, pesquisador da Universidade Bard, Estados Unidos, e Coordenador Global do IYQ. “Devido a esse entendimento, inúmeras tecnologias, que de outra forma não existiriam, foram criadas, e muitas outras que já existiam foram significativamente aprimoradas”, diz (veja a linha do tempo ao longo do texto).
“O mais importante desse ano é, justamente, a divulgação quanto ao que é a física quântica e sua importância para o nosso cotidiano”, afirma Rogério Rosenfeld, pesquisador do Instituto de Física Teórica da Unesp. “Espero que sirva para esclarecer o que exatamente significa essa palavra e esse campo de estudo. E, por outro lado, ajude a diminuir as pseudociências que usam o termo ‘quântico’ para qualquer coisa”, completa o físico, que também é vice-diretor do ICTP South American Institute for Fundamental Research (ICTP-SAIFR).
O início oficial do Ano Internacional das Ciências e Tecnologias Quânticas será marcado por um evento de dois dias organizado pela Unesco. Agendada para as datas de hoje e amanhã, dias 4 e 5 de fevereiro de 2025, a cerimônia ocorrerá realizada na sede da Unesco, em Paris, e contará com transmissão ao vivo pela página do evento. O lançamento promete incentivar a troca de ideias entre participantes e abrir caminhos para colaborações internacionais e interdisciplinares. De maneira paralela, organizações locais ao redor do mundo são incentivadas a integrar o IYQ, por meio da promoção de eventos que contribuam para os debates e a divulgação da mecânica quântica.
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O início da mecânica quântica
O grande sucesso da mecânica quântica está em sua capacidade de explicar o funcionamento de sistemas físicos em escalas muito pequenas, como átomos, elétrons, prótons, além das demais partículas subatômicas que compõem os blocos fundamentais que permitem a existência de tudo à nossa volta. Esse campo de pesquisa surgiu na virada do século 20, quando pesquisadores buscavam explicações para alguns fenômenos que não eram entendidos sob as lentes da física clássica, como a radiação de corpo negro, que trata da emissão de energia por objetos aquecidos, e o efeito fotoelétrico, que ocorre quando metais emitem elétrons ao serem expostos a radiações eletromagnéticas, como a luz.
Em 1900, na busca por tentar compreender esses fenômenos, o alemã Max Planck teorizou sobre a existência de pacotes muito pequenos de energia e denominou-os de quanta – palavra que seria utilizada para nomear a área de pesquisa emergente. Essa ideia alterou por completo a forma como a luz e a energia eram entendidas; até aquele momento, acreditava-se que a energia era emitida e absorvida de forma contínua, como um fluxo constante. Ao apresentar a ideia dos quanta, Planck demonstrou que, na verdade, a energia só pode ser absorvida ou emitida no formato desses pequenos “pacotes”.
Entre 1900 e 1925, outros físicos célebres, como Einstein, Bohr e de Broglie, fizeram contribuições essenciais para o entendimento inicial do campo. Einstein demonstrou que a luz é composta por partículas, mais tarde chamadas fótons; Bohr apresentou um modelo atômico capaz de explicar os níveis de energia dos elétrons que orbitam o núcleo; e, por fim, de Broglie formulou a teoria da dualidade onda-partícula, que revela o comportamento duplo de partículas como os elétrons. Esse período ficou conhecido como “A velha teoria quântica”. A revolução do campo veio em 1925, com trabalhos de Heisenberg, Born e Jordan que formalizaram as diferentes teorias e observações que vinham sendo feitas.
1925: o ano da revolução
Embora o surgimento do campo tenho ocorrido algumas décadas antes, 1925 é considerado o ano do início formal da mecânica quântica. Por esse motivo, entidades internacionais como a União Internacional de Física Pura e Aplicada (IUPAP), a União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC), a União Internacional de Cristalografia (IUCr) e a União Internacional de História e Filosofia da Ciência e Tecnologia (IUHPST) se organizaram para propor à Unesco que, em 2025, fosse celebrado o centenário da área.
“1925 foi um ano muito importante para a solidificação da física quântica, principalmente devido ao desenvolvimento de uma teoria mais formal”, explica Rosenfeld. “Os pesquisadores ao redor do mundo não queriam que essa data passasse em branco e aliaram esse desejo com a proposta da Unesco de organizar anos internacionais da ciência”, completa. Desde 2002 a Unesco determina anos internacionais com foco em diferentes áreas, com o objetivo de aumentar a conscientização sobre cada campo. Em 2022, a IUPAP também foi a mobilizadora do Ano Internacional das Ciências Básicas para o Desenvolvimento Sustentável.
Em 1925, Werner Heisenberg formulou a mecânica matricial, uma das primeiras versões completas da mecânica quântica e que foi amplamente aceita pela comunidade científica da época. Ele propôs uma nova forma de descrever o comportamento das partículas subatômicas e das grandezas físicas, como a posição e o momento das partículas, por meio de matrizes, que obedeciam a regras matemáticas específicas.
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Enquanto Heisenberg estava desenvolvendo a mecânica matricial, Max Born e Pascual Jordan contribuíram para o desenvolvimento de uma abordagem matemática mais sólida da teoria. “Uma particularidade da mecânica quântica é que ela não é intuitiva, ao contrário da mecânica clássica. As leis da quântica são muito diferentes, por isso o formalismo matemático é fundamental porque frequentemente não podemos utilizar a ideia que temos sobre o mundo conforme a física clássica. É esse formalismo que estabelece as regras da quântica necessárias para avançar no conhecimento”, afirma Dario Rosa, pesquisador do ICTP-SAIFR. Uma das contribuições de destaque é a de que os quadrados das matrizes representam a probabilidade de encontrar uma partícula em uma posição ou com uma energia específicas, o que introduziu a ideia probabilística central da mecânica quântica.
“A ideia de probabilidade é muito interessante. Na física clássica existem alguns fenômenos que são proibidos: por exemplo, se eu tento jogar uma bola por cima da parede, eu tenho que fornecer energia suficiente para que ela faça essa trajetória”, explica Rosenfeld. “Mas, na mecânica quântica a coisa é tão estranha que ela não precisa passar por cima da parede, existe uma probabilidade de que ela consiga atravessar a parede.”
Em 1926, o físico Erwin Schrödinger, que ficou popularmente conhecido pelo seu experimento mental que ficou conhecido como “o gato de Schrödinger”, desenvolveu uma equação para descrever o comportamento de uma onda quântica. O trabalho serviu para solidificar ainda mais o campo e se tornou um dos pilares da mecânica quântica por permitir calcular como as ondas, que representam partículas, se comportam.
Na física quântica, a ideia de onda tem um papel fundamental. Ela é a responsável por fornecer a probabilidade de se encontrar uma partícula em uma determinada posição, ou com uma determinada quantidade de movimento. Schrödinger defendia que a função de onda era a ferramenta que permite prever essas probabilidades de resultados experimentais. A função de onda pode, portanto, ser vista como um modelo matemático para descrever as incertezas e probabilidades no mundo subatômico.
Pouco tempo depois, o físico conseguiu provar que sua equação e a teoria de Heisenberg realizavam as mesmas previsões sobre as propriedades e o comportamento dos elétrons, reforçando a base teórica da física quântica. Ainda hoje, essas são as teorias que reúnem e apontam as leis quânticas e que vieram sendo aplicadas no desenvolvimento do campo, impulsionando não apenas a ciência básica, mas também o desenvolvimento tecnológico.
As aplicações da mecânica quântica
Em 1981 o renomado físico e divulgador científico Richard Feynman lançou um desafio durante uma palestra: ele propôs que seria possível usar computadores quânticos para simular sistemas quânticos, uma tarefa praticamente impossível de ser desempenhada empregando computadores convencionais. “A natureza não é clássica e se você quer fazer uma simulação da natureza, é melhor que ela seja quântica. E isso é um problema maravilhoso, porque não parece nada fácil”, provocou durante sua fala.
Esse depoimento é reconhecido como um dos marcos iniciais que impulsionaram a corrida pela computação quântica – um dos maiores desafios científicos e tecnológicos do século 21. Basicamente, essa tecnologia aproveita fenômenos da física quântica para aperfeiçoar e otimizar os processos de um computador clássico.
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Algumas das principais promessas envolvendo os computadores quânticos são a simulação de sistemas físicos em velocidade e qualidade muito superiores aos computadores clássicos e o desenvolvimento de sistemas com uma grande capacidade de processamento, o que permitiria, por exemplo, a rápida quebra de criptografias – uma tarefa praticamente impossível para a computação clássica. Apesar das promessas, o advento de um computador quântico que tenha aplicações práticas ainda é uma realidade distante.
“Nós tivemos avanços importantes em 2024, por parte de empresas grandes que começaram a ter qubits lógicos mais estáveis e com melhores mecanismos de correção de erros. Mas essa é uma busca que ainda precisa ser aprimorada”, afirma Felipe Fanchini, um dos coordenadores do Programa Fapesp QuTIa e pesquisador da Faculdade de Ciências da Unesp, campus Bauru. “Do meu ponto de vista, talvez estejamos ainda dez a quinze anos distantes de um computador quântico prático para aplicações mais gerais. No que diz respeito à criptografia, a maioria dos especialistas considera improvável que computadores quânticos representem um risco significativo nos próximos vinte anos”, diz.
Segundo Fanchini, outras tecnologias quânticas em desenvolvimento, e que se encontram em estágios mais avançados de aplicação, são os sensores e a comunicação quântica. No caso da comunicação, já existem aplicações sendo comercializadas, como a distribuição de chave quântica (QKD), que consiste em um método para gerar e distribuir chaves criptográficas com segurança quântica, garantindo a confidencialidade da comunicação. O físico explica que, apesar de essas áreas não terem a mesma popularidade da computação, seu sucesso se deve ao fato de que elas demandam menos recursos físicos.
“Para que a computação quântica seja útil em aplicações práticas, é preciso ter controle sobre um grande número de qubits e seus mecanismos de correção de erro. Para tarefas críticas, como a quebra de criptografia, seriam necessários de milhares a milhões de qubits físicos operando com alta coerência e correção de erros. Por outro lado, no caso da comunicação, protocolos de distribuição de chaves podem ser implementados com qubits individuais; e um sensor também pode ser composto por um único qubit”, comenta.
“A computação quântica é bastante disruptiva e, justamente por isso, ela é mais complicada do que as outras tecnologias”, concorda Rosa. Segundo o pesquisador, às dificuldades técnicas soma-se o fato de que a computação clássica também está em constante desenvolvimento, o que torna difícil encontrar situações em que as tecnologias atuais de computação quântica se mostrem efetivamente superiores
“O que ocorre é que nós avançamos na computação quântica, mas, para isso, nós também precisamos desenvolver a clássica”, diz. “Até agora, os tipos de vantagens alcançados pela computação quântica se aproximam muito do que pode ser feito pela computação clássica”, diz.
A próxima fronteira tecnológica
Embora a linha de chegada ainda esteja distante, a corrida pela computação quântica gera resultados paralelos. Isso inclui o desenvolvimento de novos hardwares, de algoritmos, materiais e o avanço do entendimento das leis quânticas e nas suas aplicações tecnológicas. “Mesmo que a gente não alcance os computadores quânticos, a ciência, por si só, vai ter dado um salto nesse processo de busca”, afirma Fanchini.
Esse é um ponto-chave para se pensar nas tecnologias quânticas e, em particular, na computação. Segundo Dario Rosa, os pesquisadores do campo se preocupam com as grandes expectativas que estão sendo geradas. “Existe um hype muito grande em torno das tecnologias quânticas, que constituem um campo de pesquisa sério e real, mas que demandam um desenvolvimento lento e difícil”, diz. Segundo o físico, é extremamente difícil prever quando a computação quântica será aplicável e útil, e o apelo comercial que está sento investido nessas promessas pode minar futuramente a credibilidade na área.
Nesse sentido, não é apenas o campo das tecnologias que é afetado por um excesso de hype por parte de quem não está na linha de pesquisa. De maneira geral o termo “quântico” vem sendo utilizado nos mais diversos contextos, muitas vezes, para a venda de tratamentos ou produtos fraudulentos. “Acredito que algumas ideias foram mal interpretadas ou apropriadas indevidamente porque, na mecânica quântica, certas questões são difíceis de se refutar experimentalmente. No entanto, isso não significa que essas ideias correspondam à realidade física”, explica Fanchini. “Isso dá margem para que surjam muitas pseudociências, o que é muito perigoso. Acho que é necessária uma conscientização franca sobre como a mecânica quântica funciona”, completa.
Cadden-Zimansky destaca que um dos principais objetivos do IYQ é disseminar informações precisas sobre mecânica quântica, com a intenção de diminuir a confusão de significados que emergiu por conta do uso popular da palavra. Segundo o pesquisador, uma forma de alcançar essa meta é demonstrar como a mecânica quântica está inserida em diferentes níveis dentro da sociedade.
“Aqueles que acham que ‘quântico’ significa algo distante verão essa área afeta o dia a dia das nossas vidas; aqueles que acham é algo ligado apenas à tecnologia, poderão ver como essa teoria descreve a natureza; e aqueles que nunca ouviram o termo passaram a conhecer seu significado”, diz.
Imagem acima: logotipo do International year of quantum science and technology/Unesco.