Adição de flúor em águas de abastecimento público enfrenta temporada de críticas nos EUA, apesar de décadas de evidências atestando seus benefícios

Futuro secretário de saúde já se declarou contrário à prática, que foi adotada pioneiramente nos Estados Unidos, a partir dos anos 1940, e logo passou a ser empregada em países de todo o mundo. Mas órgãos do próprio governo americano colocam procedimento entre os mais importantes desenvolvimentos de saúde pública no século 20. Em São Paulo, programa conduzido por docente da Unesp monitora índice de flúor em 40 cidades.

O anúncio do nome do advogado Robert F. Kennedy Jr. como próximo secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, cargo comparável ao de ministro da Saúde no Brasil, foi recebido pela comunidade médica e científica dos EUA com preocupação. Kennedy Jr. foi escolhido para o cargo pelo presidente eleito dos EUA, Donald Trump, como retribuição ao apoio que o empresário lhe granjeou durante a campanha eleitoral. No entanto, Trump já manifestou, no passado, interesse por algumas das polêmicas ideias esposadas por Kennedy Jr. Estas mesmas ideias devem ser postas em prática nas políticas de saúde da nova gestão, que será empossada oficialmente no próximo dia 20 de janeiro.  

Poucos dias antes que Trump anunciasse o seu nome, o próprio Robert F. Kennedy Jr.escreveu, em uma rede social, que a administração Trump irá orientar os sistemas de abastecimento do país para que suspendam a adição de flúor ao processo de tratamento das águas. “O flúor é um resíduo industrial associado à artrite, fraturas ósseas, câncer ósseo, perda de QI, distúrbios do neurodesenvolvimento e doenças da tireoide”, afirmou.

Sobrinho do ex-presidente dos EUA John F. Kennedy e filho do ex-senador Robert F. Kennedy, o novo gestor da saúde também foi candidato a presidente nas últimas eleições, mas de forma independente, antes que abandonasse a candidatura para oferecer seu apoio a Donald Trump. Em diversas oportunidades ao longo da campanha, o advogado proferiu discursos antivacina e defendeu teorias conspiracionistas e sem fundamento científico. Um de seus alvos favoritos é justamente o procedimento de fluoretação das águas de abastecimento público, uma medida de saúde coletiva consagrada para a prevenção da cárie dentária e que foi descoberta, elaborada e adotada, de forma pioneira, justamente nos EUA. 

Há poucos meses, um juiz federal na Califórnia já havia determinado que a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) tomasse atitudes a respeito do fortalecimento da regulação sobre a fluoretação da água potável no estado, sob a alegação de que o composto,nos atuais níveis de concentração que vigoram no país, representa um risco desnecessário para as crianças . Ainda que no texto da decisão o juiz afirmasse não estar sustentando, em caráter definitivo, que a água fluoretada coloque em risco a saúde pública, a decisão ganhou repercussão nacional e foi instrumentalizada por grupos que há décadas questionam esse procedimento.

Do açúcar ao flúor

A adição do flúor nas águas de abastecimento público surgiu como resposta a um grave problema de saúde global, originado por uma mudança na dieta. A partir do início do século 20, o planeta assistiu a uma explosão do uso do açúcar de cana que trouxe, no seu rastro, um dilúvio de infecções, mutilações, dor e sofrimento para bocas em todos os países. Na década de 1930, nos EUA, foi descoberta a associação entre o flúor presente naturalmente em algumas fontes de abastecimento público e a baixa incidência de cárie em crianças que bebiam desta água. A descoberta levou à adoção da fluoretação no país a partir dos anos 1940.

Levantamentos que apontaram reduções de cerca de 60% na incidência de cáries como resultado do emprego da fluoretação levaram a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1969, a recomendá-la como medida de saúde pública contra a cárie dentária.

No Brasil, a cidade de Baixo Guandu, no Espírito Santo, em 1953, foi pioneira em implantar a fluoretação de suas águas de abastecimento. Em 1974, a lei federal 6050 tornou obrigatório o processo de fluoretação em todas as cidades do Brasil onde existam estações de tratamento de água, com uma concentração indicada de 0,7 mg F/l. Estima-se que pouco mais de 70% dos municípios com mais de 50 mil habitantes forneçam água fluoretada a seus cidadãos, ainda que este número revele grandes disparidades regionais.

Benefícios já demonstrados

Após o anúncio de RFK de seu desejo de rever a política de adição de flúor à água nos EUA, especialistas questionaram a real capacidade do futuro secretário para adotar alguma medida realmente efetiva. É que nos EUA o tratamento da água para abastecimento público costuma ser regulado por leis estaduais, estando por isso menos sujeito à interferência federal. Porém, em outubro, os críticos do procedimento anunciaram aos quatro ventos os resultados de um estudo conduzido por uma agência federal dos EUA.

O programa de Toxicologia do National Institute of Health (NIH) publicou uma revisão sistemática sobre a relação entre a exposição ao fluoreto e os efeitos na saúde cognitiva ao longo da vida. A revisão encontrou uma associação entre exposição a doses elevadas de flúor na água durante a infância e uma redução no número de pontos de QI. O texto, porém, trazia várias considerações importantes.

Uma delas era que associação não é causação, e que seriam necessários mais investigações para compreender melhor os dados. Além disso, não se encontrou uma associação entre a exposição à substância dentro das concentrações preconizadas para a prevenção da cárie, entre 0,5 e 1,0 mg F/L, e um menor quociente de inteligência. Por fim, os estudos se detiveram apenas em casos em que a ocorrência de doses mais elevadas de flúor na água se devia a causas naturais, não investigando diretamente o processo de fluoretação artificial.

Por isso mesmo, o texto do documento frisa que “este estudo não avalia se a adição de fluoreto à água realizada em alguns países resulta em diminuição mensurável nos pontos do QI.” Mesmo com estas observações e ponderações, alguns veículos e sites se precipitaram em publicar reportagens com extrapolações equivocadas do resultado do estudo, que foram desmentidas por órgãos de checagem.

Dentista e especialista em odontologia preventiva e social, Suzely Moimaz diz que as contestações e acusações contra a fluoretação da água ressurgem periodicamente. Por outro lado, pondera ela, os benefícios associados ao procedimento já estão bem demonstrados e contam com décadas de evidências acumuladas a seu favor. Outro ponto positivo é que estes resultados favoráveis são alcançados por meio de um procedimento de baixo custo econômico.

“Inclusive a fluoretação das águas de abastecimento público foi apontada pelo próprio Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA como uma das dez principais realizações em saúde pública no século 20”, diz, referindo-se  à lista publicada em 1999 pela principal agência do país com atuação voltada para a saúde pública e segurança da população. Na lista, a fluoretação da água é destacada ao lado de outras inovações de altíssimo impacto para a saúde global, como o desenvolvimento de vacinas, o controle de doenças infectocontagiosas e o reconhecimento do tabaco como uma ameaça à saúde.

No Brasil, ensaios mostram benefícios

No Brasil, a Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica (SBPQO), a Divisão Brasileira da International Association for Dental Research (IADR), e o Conselho Federal de Odontologia (CFO) publicaram em 2021 um parecer técnico-científico baseado em evidências científicas e análise crítica da literatura no intuito de rebater discursos no país que também questionavam a fluoretação da água. O documento, elaborado pelo Centro Colaborador em Vigilância da Saúde Bucal (CECOL) da Faculdade de Saúde Pública da USP, justifica a produção do parecer tendo em vista que a “tecnologia vem sendo alvo de constantes ataques na internet e nas redes sociais com apelos de fundo emocional e conteúdo de pseudociência”.

O parecer aponta, entre os benefícios da medida, a redução de dois terços da prevalência de cárie dentária em ensaios comunitários produzidos à época. Mas também alerta para risco, cientificamente comprovado, do desenvolvimento de fluorose pela ingestão de flúor em excesso no período de formação dos dentes. A doença afeta o esmalte dos dentes, causando manchas opacas e assimétricas principalmente em crianças.

Suzely afirma que, ao contrário da cárie dentária, a fluorose não configura um problema de saúde pública. “É preferível termos baixos índices de cárie dentária e fluoretação da água, a ter altos índices de cáries sem o uso do flúor”, aponta a professora da Unesp. “Graus de fluorose leves formam manchas que muitas vezes nem o próprio indivíduo é capaz de notar. Já a cárie pode causar dor, sofrimento, perda de dentes, problemas mastigatórios, problemas estéticos, problema de fonação e problema de alimentação”, afirma.

Projeto monitora flúor em 40 cidades de São Paulo

Ainda assim, o parecer técnico-científico, em suas considerações finais, recomenda o monitoramento do controle da concentração de fluoretos na água pelos órgãos e empresas responsáveis pelo abastecimento público. No câmpus de Araçatuba da Unesp, Suzely coordena um projeto com pelo menos duas décadas de existência, criado pelo seu pai, também professor da Unesp e hoje aposentado, Orlando Saliba, em que analisa o teor de flúor em amostras de água de mais de 40 cidades pertencentes ao Departamento Regional de Saúde-II (região de Araçatuba) da Secretaria Estadual de Saúde.

“Neste projeto, analisamos mensalmente, de forma sistemática, amostras de água para abastecimento público coletadas em vários pontos predeterminados para garantir a qualidade do procedimento e assegurar que o flúor esteja presente nos teores adequados. Isso proporciona a redução ao mínimo do risco de fluorose e a maior garantia de prevenção da cárie dentária”, explica Suzely.

A fluoretação da água para abastecimento público em Araçatuba começou ainda em 1972, muito em virtude da instalação da faculdade de odontologia no município, desde o final dos anos 50, facilitando a elaboração de levantamentos epidemiológicos que até hoje embasam a importância dessa política em saúde pública. Em um trabalho publicado em 2022, Suzely compara a prevalência de cárie dentária na cidade logo após a adoção da fluoretação.

Mais da metade dos alunos livres de cáries

O trabalho aponta que em 1972, ano de início da fluoretação da água no município, o CPOD médio (dentes cariados, perdidos e obturados) em crianças de 12 anos era de 9,72 dentes por indivíduo. Um levantamento semelhante realizado em 2019 em 14 escolas do município apontou um CPOD médio de 1,08m, sendo que 52,2% dos alunos estavam livres de cáries. O CPOD é o índice indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para avaliar a prevalência da cárie dentária em diversos países.

Suzely entende que as pesquisas em saúde pública e os levantamentos epidemiológicos seguem reforçando a importância e o sucesso que a fluoretação da água trouxe para o bem-estar das populações beneficiadas pela tecnologia, apesar de ainda existirem desafios. “Em um país como o Brasil, com altos níveis de analfabetismo e desigualdade social, essa política é fundamental. É claro que a escova e a pasta de dente estão disponíveis, mas elas nem sempre se mostram acessíveis a toda a população. E mesmo assim a literatura científica mostra que existem diferenças na prevalência de cáries dentro de um mesmo município”, diz.

Estação de tratamento de água “Rodolfo José da Costa e Silva”, que ampliou o tratamento da água do sistema Guarapiranga. Crédito: Sabesp