Nos últimos meses, o noticiário sobre futebol no Brasil tem incorporado assuntos que pouco têm a ver diretamente com a arte de tocar a bola em direção ao gol, como denúncias de resultados fraudados, a influência do poder financeiro dos sites de apostas sobre os clubes e uma CPI do Congresso criada para devassar este universo nebuloso. Mas, se o esporte profissional tornou-se, cada vez mais, envolvido em polêmicas, os adeptos do futebol de várzea continuam buscando os campinhos do país querendo se divertir, manter a forma e encontrar os amigos. E uma pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Unesp, no campus de Presidente Prudente, investiga a prática do futebol entre os indígenas das aldeias Mbya Guarani, que possuem suas próprias ligas de futebol, com torneios e campeonatos recorrentes, em diferentes estados.
A pesquisa é conduzida pelo geógrafo Gabriel Pereira, que em seu mestrado tratou da liga organizada em Santa Catarina. Agora no doutorado, ele está olhando também para outros estados. Em sua análise, Pereira procura desvendar as associações entre a prática esportiva e o estilo de vida tradicional adotado pela etnia. Mais especificamente, ele aponta um relacionamento entre as competições futebolísticas e um conceito muito presente na cultura guarani denominado guatá porã. Em uma tradução livre, o termo guatá porá quer dizer “belo caminhar”, mas pode ser entendido como deslocamento ou mobilidade. Na cultura Mbya Guarani, entretanto, esse deslocamento não está restrito ao ir e vir do indivíduo; também guarda forte relação com a relação de visitas e o estabelecimento de conexões e intercâmbios com outras aldeias, uma prática extremamente valorizada na cultura da etnia.
Pereira explica que o modo como os Mbya Guarani se organizam e exercem a soberania cultural sobre o espaço em que vivem – isto é, a sua territorialidade – acontece de forma bastante fluida. Isso porque esse espaço, na maioria das vezes, é definido a partir das relações estabelecidas entre as diferentes aldeias, e não necessariamente por fronteiras geográficas. “Os Mbya Guarani sempre foram formados por várias aldeias que se conectam por essas relações”, explica Pereira. “É muito raro um guarani que não tenha se mudado de aldeia pelo menos uma vez. Alguns inclusive o fazem várias vezes na vida, pelas mais diversas razões”, diz.
O guatá porã, explica o pesquisador, é mencionado por diversos autores e estudiosos da etnia como um elemento essencial no nhandereko, o modo de vida guarani, estando presente, por exemplo, no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Morro dos Cavalos, elaborado em 2021. Foi esta terra indígena que serviu de referência para sua pesquisa. “O documento menciona que é muito comum a mudança cotidiana de pessoas de aldeias, que os mais velhos visitam diversas aldeias durante sua vida, e que essa seria uma razão para que sejam considerados mais sábios”, diz.
Ao longo da elaboração da pesquisa do mestrado, Pereira se aprofundou nos elementos da cultura local e acompanhou de perto a dinâmica social que é gerada pelas atividades da Liga de Futebol Mbya Guarani de Santa Catarina. O estudo envolveu a condução de entrevistas com os indígenas que organizam e disputam o torneio, e presenciou in loco algumas dessas partidas.
O interesse do pesquisador pelo tema surgiu durante suas visitas à Terra Indígena Morro dos Cavalos, localizada no município de Palhoça, em Santa Catarina. Durante as atividades de campo para um projeto da Fapesp que buscava identificar e palmear áreas de conflito na localidade, Pereira surpreendeu-se com o entusiasmo suscitado pela prática do futebol no cotidiano de crianças e adultos da comunidade, tanto de homens quanto de mulheres. Os atletas inclusive envergavam uniformes com textos, imagens e grafismos que remetiam à cultura guarani. Em conversas com membros da aldeia, ficou sabendo que na TI do Morro dos Cavalos havia três times masculinos e dois femininos, que nos fins de semana disputavam uma competição com outras aldeias.
A Liga de Futebol Mbya Guarani de Santa Catarina foi disputada pela primeira vez em 2018 com a presença de dez equipes masculinas e cinco femininas oriundas de nove aldeias. As partidas são realizadas em um campo de futebol para sete jogadores, semelhante ao que em São Paulo se chama futebol society. A escolha de sete jogadores em detrimento dos onze do futebol tradicional foi feita justamente para poder envolver aldeias menores, que talvez não conseguissem formar uma equipe inteira com onze atletas. De forma geral, cada time representa a sua aldeia, mas algumas aldeias maiores possuem mais de uma equipe na competição. Apesar de algumas interrupções em virtude das preocupações sanitárias decorrentes da pandemia de Covid-19, a Liga se fortaleceu ao longo dos anos.
Atualmente, a Liga está em sua quinta edição e conta com 25 times masculinos, 14 femininos e quatro infantis mistas, disputa que ocorre pela primeira vez. Das 43 equipes, dez são de fora de Santa Catarina e foram convidadas para participar do torneio: oito do Rio Grande do Sul e duas de aldeias guarani do estado de São Paulo, uma da Terra Indígena Jaraguá, na capital, e outra do município de Mongaguá, no litoral sul paulista.
As rodadas acontecem praticamente todos os meses. A cada vez, a competição é sediada por uma aldeia diferente de Santa Catarina. Ao final da Liga, troféus, medalhas e prêmios em dinheiro são dados às equipes campeãs nas categorias masculino e feminino, além de serem eleitos os melhores jogadores da competição.
“Hoje, com os territórios fragmentados e a presença de propriedades privadas com cercas e muros no entorno da terra indígena, os indígenas não têm a mesma possibilidade para transitarem e se deslocarem que tinham no passado”, diz Pereira. “Daí a importância da Liga, porque ajuda a organizar e promover esses encontros de uma forma mais ampla.”
O pesquisador aponta que há outras datas comemorativas que servem para promover reuniões e confraternizações. Este calendário inclui a Marcha das Mulheres e o acampamento Terra Livre, uma mobilização indígena que ocorre anualmente em Brasília. Tais reuniões, no entanto, têm caráter interétnico, não se restringindo aos guarani. “Também existem encontros menores que ocorrem entre os Mbya Guarani que são dedicados a cantos ou possuem cunho religioso. Mas nenhum deles é tão frequente quanto o torneio de futebol”, diz Pereira.
Desde a primeira edição, os organizadores conceberam o campeonato como um evento itinerante. Isso é permitido pelo formato de liga, em que as rodadas são realizadas cada uma em uma aldeia diferente.
O torneio funciona como uma rede de conexão cultural e territorial. “Os Mbya Guarani identificam seu território pelo conhecer e pelo visitar, e o futebol acaba, no mínimo, facilitando o fortalecimento dessa rede que vai para além dos elementos religiosos e culturais mais tradicionais.”
Os encontros promovidos pela liga de futebol não se limitam ao universo dos jogadores que entram em quadra. Há todo um ambiente ao lado do campo, que se dinamiza a partir dos jogos. Pereira aplicou a metodologia de observação participante na coleta dos dados, que prevê o envolvimento intenso com o objeto de estudo a fim de compreender suas atividades e hábitos. Durante a investigação, ele por diversas vezes frequentou as partidas da liga e pôde observar encontros de parentes e amigos que aproveitam a rodada para se deslocar juntamente com as equipes e reencontrar amigos e parentes que vivem em outras aldeias.
A chegada dos visitantes à aldeia que recebe a rodada estimula uma intensa mobilização no entorno do campo, que recebe um público diverso e uma série de atividades paralelas. “Quando os organizadores marcam uma rodada, moradores de todas as outras aldeias vão até o local. Esse deslocamento gera encontros entre anciãos, entre as crianças, trocas culturais, trocas de sementes. O que há é um grande encontro, relacionado à cultura e à territorialidade, proporcionado pelo deslocamento e pelo futebol”, diz Pereira.
Se, por um lado, a criação da Liga desde sua fundação teve uma motivação de ordem comunitária, ela também surgiu do desejo de criar um torneio nos moldes das grandes competições internacionais. Neste sentido, o formato em liga, o calendário e a cerimônia de sorteio das chaves foram inspirados na Liga dos Campeões, torneio continental de clubes realizado na Europa e considerado um dos mais importantes do mundo. Até mesmo o troféu é uma réplica da “orelhuda”, apelido dado à taça que é oferecida ao clube campeão europeu.
Quando se observam os uniformes, nomes e escudos das equipes participantes, entretanto, as referências são essencialmente locais, com uma série de grafismos e elementos presentes na cultura guarani. Alguns escudos, por exemplo, mostram imagens de cocares, objeto que é uma espécie de símbolo do orgulho indígena. Outro elemento recorrente é a imagem do beija-flor, que remete à cosmologia guarani. Nela, a ave com seu intenso bater das asas concebe o encontro das águas com o fogo, e assim surge a terra. Algumas equipes também fazem menção a líderes da etnia, como Karai Tatendy, professor, pesquisador e escritor indígena falecido em 2015, que foi fundamental na luta pela educação dos Mbya Guarani.
Em suas pesquisas, Pereira encontrou relatos históricos de que, antes mesmo da chegada dos europeus às Américas, povos guaranis praticavam uma atividade física em que uma bola era jogada com os pés e não era permitido usar as mãos chamado Manga Ñembosarái. A atividade, porém, tinha sua dinâmica própria. Não havia um limite de tempo para a atividade nem qualquer sistema de contagem de pontos. Talvez se assemelhasse mais ao que hoje conhecemos como jogo de “bobinho”, em que a bola é ludicamente trocada entre os participantes até que se sintam cansados. O artigo que Pereira encontrou, que se baseou em uma série de relatos de missões jesuíticas a partir do século 18, foi escrito por Bartolomeu Meliá, jesuíta e antropólogo espanhol que morou no Paraguai e no Brasil e era reconhecido como um grande especialista na cultura guarani.
Embora seja difícil concluir que um jogo com bola praticado apenas com os pés tenha dado origem ao futebol que conhecemos hoje, Pereira argumenta que sempre houve a prática de “algum futebol” na cultura guarani, e que talvez essa prática tenha sido alterada ao longo do tempo, com a inclusão de outras regras e a aproximação do esporte criado pelos ingleses, no início do século 19. “O futebol sempre foi praticado entre os guaranis, mas ao longo do tempo ele foi se modificando. Eles passaram a usar bolas industrializadas ao invés de látex, foram incluídos os gols, as traves, a contagem de pontos. A prática foi se modificando, mas essa brincadeira para a preparação física e mental eles sempre tiveram”, diz..
No próximo dia 9 de novembro, na aldeia Mymba Roka, no município de Biguaçu, os guarani terão mais uma oportunidade de brincar, praticar uma atividade física e realizar seu tradicional guatá porã. Nesta data ocorrem as semifinais do torneio masculino e feminino da Liga Mbya Guarani de Santa Catarina.
Imagem acima: Indígenas Mbya Guarani disputam torneio feminino de futebol (Crédito: Facebook Liga Mbya Guarani de SC)