Comitê premia organização japonesa que milita contra armas nucleares desde os anos 1950 com Nobel da paz

Fundada por sobreviventes dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, a Nihon Hidankyo tem como principal objetivo alcançar um acordo internacional que promova a proibição total e a eliminação das bombas atômicas. Integrantes do grupo buscam preservar memória dos ataques por meio de seus testemunhos, como forma de conscientizar governos e a sociedade civil sobre as devastadoras consequências do uso dessa tecnologia.

Na manhã desta sexta-feira (11) o Comitê Norueguês do Nobel anunciou que a Láurea da Paz de 2024 seria entregue para a organização japonesa Nihon Hidankyo, composta por sobreviventes das bombas atômicas lançadas contra o Japão em 1945. Segundo o Comitê, a decisão foi feita como reconhecimento “por seus esforços para alcançar um mundo livre de armas nucleares e por demonstrar, através de testemunhos de sobreviventes, que armas nucleares nunca devem ser usadas novamente”.

O prêmio vem um ano antes da marca de 80 anos dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, e em um contexto de crescente preocupação global com novas ameaças nucleares. Desde a década de 1950, a Nihon Hidankyo luta pela abolição das armas atômicas. Sua atuação foi importante para a criação do “tabu das bombas nucleares”, um consenso internacional que estigmatiza o uso desse tipo de arma. O desenvolvimento deste consenso envolveu a coleta de testemunhos dos Hibakusha, termo que significa “pessoas afetadas pela bomba”.

“Os Hibakusha nos ajudam a descrever o indescritível, pensar o impensável e entender a incompreensível dor e sofrimento causada por armas nucleares”, afirmou Jørgen Watne Frydnes, presidente do Comitê Norueguês do Nobel, durante o anúncio da premiação. Apesar de destacar que nenhuma arma nuclear foi utilizada em quase 80 anos, o comitê considera que o tabu está sob ameaça diante de guerras no Oriente Médio, na Ucrânia, no Líbano e na Coreia do Norte, entre outras regiões.

“As forças nucleares estão se modernizando e atualizando, novos países estão se preparando para adquirir armas nucleares e novas ameaças de sua utilização estão sendo feitas. Neste momento na história humana é importante lembrar o que as armas nucleares são: o poder mais destrutivo que o mundo já viu”, reiterou Frydnes. Segundo a Federação dos Cientistas Americanos, atualmente nove países contam com armamento atômico: Rússia, EUA, China, França, Reino Unido, Paquistão, Índia, Israel e Coreia do Norte.

Um clamor contra a força atômica

No dia 6 de agosto de 1945, o Enola Gay, um avião bombardeiro do exército norte-americano, lançou a bomba Little Boy sobre Hiroshima. Três dias depois outro avião lançaria a bomba Fat Man na cidade de Nagasaki. Os ataques, que tiveram a intensidade de 15 e 21 quilotons de TNT, respectivamente, foram responsáveis por matar instantaneamente 120 mil pessoas. Estimativas apontam, que um número equivalente morreu nos meses e anos seguintes, em decorrência das queimaduras e da radiação.

Esse foi o primeiro e único momento na história em que armas nucleares foram usadas em guerra e contra alvos civis. Apesar da destruição massiva, muitas pessoas sobreviveram, lidando com as consequências físicas e emocionais do ataque. O governo japonês chegou a reconhecer a existência de 650 mil sobreviventes. Com o passar das décadas, esses números se reduziram cada vez mais. Segundo a Nihon Hidankyo, atualmente restam aproximadamente 114 mil sobreviventes, muitos já na faixa dos 80 anos. Grande parte dedicou a vida a manter viva a memória dos ataques, com o propósito de disseminar o conhecimento sobre os horrores desse poder destrutivo, na esperança de que a humanidade jamais volte a vivenciar algo semelhante.

A organização japonesa foi fundada em 10 de agosto de 1956, 11 anos após os ataques, durante a 2ª Conferência Mundial contra as Bombas A e H. O grupo surgiu como resposta à censura imposta pelo governo norte-americano que, durante a década seguinte aos bombardeios, proibiu o povo japonês de falar sobre o bombardeio e o mal que ele inflingiu, mesmo após o Japão recuperar sua soberania nacional em 1952. Em 1951, o governo japonês renunciou ao direito de reivindicar indenizações pelos bombardeios, ao assinar o Tratado de Paz de São Francisco, para oficializar o fim da Segunda Guerra Mundial.

A impossibilidade de falar sobre sua realidade, aliado ao sentimento de marginalização e estigma que recaiu sobre os afetados pelas bombas, levou a uma ascensão do movimento antinuclear no país, que culminou na organização formal da Nihon Hidankyo. Desde então, a Confederação envia representantes para participar de eventos e conferências internacionais, com o objetivo de manter viva a memória do ataque e compartilhar as experiências dos sobreviventes. “Os testemunhos e discursos dos Hibakusha nessas ocasiões contribuíram grandemente para informar o mundo sobre o horror das armas nucleares e a atrocidade dos danos causados às pessoas, que permaneceram ocultos do público por mais de 10 anos após seu uso”, informa a organização em sua página oficial.

No último depoimento publicado, em 27 de maio de 2024, a organização se posiciona contra o início dos testes de armas nucleares na Rússia, ação que foi divulgada pelo Ministério de Defesa do país em 21 de maio. “Os bombardeios atômicos no Japão tiraram muitas vidas e continuam a afetar nossos corpos, vidas e mentes de várias maneiras. A tragédia do uso de armas nucleares, que resultou em consequências desumanas, nunca deve se repetir”, afirmam na carta.

O Comitê do Nobel destaca a importância de reconhecer essas ações especialmente em um cenário no qual o desenvolvimento do poderio atômico levou a criação de armas com um poder de destruição muito maior daquele vivenciado em Hiroshima e Nagasaki. Segundo a Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN), organização vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2017, as bombas de 1945 são consideradas de baixa potência nos dias atuais. A ICAN afirma que muitas das armas nucleares modernas na Rússia e nos EUA são do tipo termonuclear e apresentam uma potência para destruição equivalente a, pelo menos, 100 quilotons de dinamite – um poder de destruição aproximadamente 7 vezes maior do que a bomba usada em Hiroshima. Mas, em seus testes nucleares, as superpotências já liberaram energias na ordem dos megatons, sendo que um megaton equivale a mil megatons. “As armas nucleares de hoje têm um poder destrutivo muito maior. Elas podem matar milhões e impactariam o clima de forma catastrófica. Uma guerra nuclear poderia destruir nossa civilização”, afirmou o Comitê do Nobel durante o anúncio.

“Um dia, os Hibakusha não estarão mais entre nós como testemunhas da história. Mas, com uma forte cultura de memória e compromisso contínuo, novas gerações no Japão estão levando adiante a experiência e a mensagem dessas testemunhas. Elas estão inspirando e educando pessoas ao redor do mundo. Dessa forma, estão ajudando a manter o tabu nuclear – uma condição essencial para um futuro pacífico da humanidade”, anunciou Frydnes no fim de sua fala.

Imagem acima: ilustração de um origami de tsuru, ou ave grou, importante símbolo da cultura japonesa, que representa boa sorte, saúde, felicidade e longevidade. É, também, utilizado como logo pela Nihon Hidankyo. Crédito: Ill. Niklas Elmehed © Nobel Prize Outreach

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Este artigo faz parte da série Nobel do Jornal Unesp. Conheça a trajetória científica e as pesquisas dos laureados com o prêmio Nobel nas categorias fisiologia ou medicina, física, química, economia, literatura e da paz a partir do ano de 2022.

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