Tragédia climática no Rio Grande do Sul aumenta preocupação com possibilidade de desmonte da legislação ambiental brasileira

Conselhos de Biologia e ONGs se mobilizam contra projetos de lei que flexibilizam regras de licenciamento ambiental e reduzem proteção para áreas de Campos de Altitude em todo o país. Docentes da Unesp apontam problemas que podem advir caso haja aprovação da nova legislação.

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As chuvas e enchentes que se abateram sobre o Rio Grande do Sul no mês de maio, e afetaram 471 dos 495 municípios do estado, colocaram em primeiro plano a discussão sobre o afrouxamento da legislação ambiental no estado. Procurando as causas da tragédia, veículos jornalísticos identificaram cerca de 480 normas ambientais estaduais alteradas pelo governador gaúcho, Eduardo Leite (PSDB), desde o seu primeiro ano de mandato. Algumas destas mudanças, segundo denúncias de militantes ambientalistas do estado, contribuíram para alterar a capacidade natural de drenagem do território, colaborando, assim, para a ocorrência de enchentes mais concentradas. Outro efeito desse escrutínio da imprensa foi trazer à baila certos projetos de lei que estão tramitando discretamente em comissões no Congresso Nacional, alguns já há décadas. Caso aprovados, poderão impactar nacionalmente diferentes mecanismos e políticas conservacionistas hoje vigentes no país, e escancarar ainda mais a porteira para que a boiada do desmatamento passe a galope.

No Senado está sob exame o PL 364/2019, que se destina a reformar a Lei 11.428/2006 (conhecida como Lei da Mata Atlântica) para remover do seu dispositivo de proteção as vegetações não florestais. Já o PL 2159/21, que está nas mãos dos deputados federais, foi cognominado de “PL da devastação”, devido ao grau extremo de flexibilização que propõe para as regras de licenciamento ambiental, chegando a isentar por completo diversas atividades econômicas da necessidade de se submeter a qualquer tipo de licenciamento. O temor de que a medida possa ser aprovada ainda este ano levou uma rede de ONGs a criar, em março passado, uma plataforma online exclusivamente para pressionar a Câmara pela rejeição da proposta.

Proposta original foi radicalmente alterada

O licenciamento ambiental é uma das principais ferramentas da Lei Nacional de Meio Ambiente, criada em 1981, e está previsto, também, no artigo 225 da Constituição Federal. Sua finalidade é estabelecer regras para a atividade de determinados empreendimentos que fazem uso de recursos naturais ou tenham potencial para impactar o meio ambiente. Embora seja um instrumento fundamental para a proteção ambiental, até hoje seu funcionamento não foi completamente regulamentado, e na prática cada estado dispõe de bastante autonomia para seguir seu próprio modelo. É esta lacuna que o PL 2159/21 se propõe a fechar. Atualmente, os processos de licenciamento têm seguido, principalmente, resoluções estabelecidas pelo Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente), como a Resolução 237, de 1987, e regras elaboradas em âmbito estadual e municipal.

O texto original do PL foi proposto em 2004 por deputados ligados ao Partido dos Trabalhadores, para normatizar a atividade de licenciamento ambiental. Porém, as inúmeras idas e vindas ao longo destas duas décadas resultaram em expressivas alterações no seu conteúdo original, resultando em uma linha na verdade oposta à ideia dos legisladores. Por outro lado, a longa demora na tramitação é, justamente, um dos argumentos evocados pelos defensores da sua aprovação imediata, sob o pretexto da necessidade de ofertar uma legislação que proporcione segurança jurídica a empresários. O estabelecimento dessa segurança, por sua vez, resultaria na liberação de um volume importante de investimentos destinados a novos empreendimentos, com reflexos positivos na atividade econômica. Atualmente, o texto está em discussão nas comissões de Agricultura e Meio Ambiente do Senado

Visão dicotômica

Professor do Departamento de Engenharia Ambiental do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp, campus de Sorocaba, Fabio Manfredini diz que, na maioria das vezes, projetos de lei que visam a alterar a legislação ambiental brasileira são baseados em uma visão dicotômica que opõe desenvolvimento e proteção ambiental. “O licenciamento serve para que o órgão ambiental verifique quais impactos ambientais serão gerados por determinada atividade, e quais controles devem ser adotados em relação a esses impactos. Ou seja, sua preocupação é com o ser humano, com a sociedade”, diz Manfredini, que é advogado e especialista em Direito Ambiental.

É a resolução 237 do Conama que lista as 23 atividades que devem obrigatoriamente ser submetidas a algum processo de licenciamento ambiental, e delega a responsabilidade por esse processo às esferas municipal, estadual e federal do poder executivo, a depender do potencial de impacto. De forma geral, obras maiores, cujos impactos podem se expandir para além do terreno de uma única unidade da federação, como hidrelétricas ou grandes estradas, ficam a cargo dos órgãos federais. A maior parte dos licenciamentos, entretanto, acontece em âmbito estadual. Manfredini explica que os estados podem delegar a responsabilidade do licenciamento aos municípios, dependendo da natureza da atividade e da estrutura do órgão ambiental municipal. E os entes estaduais também podem acrescentar outros itens à lista dos empreendimentos que devem obrigatoriamente se submeter ao licenciamento ambiental.

A mudança na lista de atividades para as quais o licenciamento hoje é obrigatório constitui um dos pontos mais controversos do novo projeto. O texto propõe isentar dessa obrigação 13 tipos de empreendimentos, entre eles as atividades de agricultura e pecuária extensiva, e os serviços de melhoria de estruturas já existentes. Tal possibilidade desperta grandes preocupações nos estudiosos da legislação ambiental. “Tendo em vista um país tão diverso e continental como o Brasil, propostas que abram demais o leque despertam preocupação, uma vez que existem situações ambientais tão diferentes como a água e o vinho”, diz Manfredini. “Uma coisa é fazer uma obra de recapeamento de rodovia num grande centro urbano. Outra, bem diferente, é fazer esse tipo de intervenção no Pantanal.”

Na prática, uma aprovação do PL 2159/21 implica uma autorização automática para atividades de agricultura e pecuária que sejam consideradas como de médio ou baixo impacto. Basta que o responsável pelo empreendimento preencha o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para receber a dispensa do licenciamento. O CAR é um registro público eletrônico nacional, e já é obrigatório para todos os imóveis rurais. Outro ponto de extrema flexibilização no texto é a criação de uma licença ambiental denominada Licença por Adesão e Compromisso (LAC), de caráter autodeclaratório e automático, ou seja, sem a avaliação prévia de um órgão ambiental.

“Definir um licenciamento ambiental apenas pelo CAR é algo preocupante porque se trata de um instrumento autodeclaratório. Ou seja, não há garantia de que o documento de CAR será bem feito, e que compreenderá com precisão os limites de determinada propriedade. Não digo que seja por má-fé, e sim por falta de qualificação técnica”, diz Manfredini. Ele também aponta como “preocupante” o fato de que o texto não especifica a definição do que é “baixo ou alto impacto”, e quem é o responsável por fazer a avaliação quanto ao grau de impacto do empreendimento, o que é mais um elemento que enseja insegurança técnica.

Em março, os conselhos estaduais e federal de biologia enviaram aos senadores um manifesto contra o PL 2159/21. O posicionamento dos biólogos do Brasil foi o mote da coluna em áudio do antropólogo e professor Paulo Santilli, da Unesp de Araraquara, do dia 28 de março. “A eventual aprovação desse Projeto de Lei pelo Senado poderá causar, entre tantos outros impactos, o agravamento da contaminação e da falta de água, ao retirar do poder público a avaliação, a análise e o monitoramento sobre a utilização e exploração das nossas fontes de água”, afirma o professor, que também chama a atenção para o aumento no risco da ocorrência de mais desastres como os de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, uma vez que as licenças de empreendimentos minerários, por exemplo, poderiam ser realizadas de forma automática, sem estudos técnicos ou análise do órgão ambiental, por meio da Licença por Adesão e Compromisso.

Problemas atuais não são abordados

Manfredini diz que muito pode ser aperfeiçoado no modo como são feitos os processos de licenciamento ambiental atualmente, e cita como exemplo alguma iniciativa que torne o processo e as demandas para o licenciamento mais proporcionais aos impactos que as atividades podem gerar. ”Às vezes, uma empresa familiar que gere pouco resíduo tem obrigações proporcionais às de uma grande indústria do mesmo setor”, diz. Nestes casos, os pequenos empresários são forçados a arcar com os altos custos demandados pela aquisição de uma licença, que podem envolver a construção de estações de tratamento e a destinação adequada de resíduos. “Essa equivalência pode ser custosa e gerar revolta, principalmente nesses pequenos e médios empresários”, diz. Porém, este, e outros aspectos problemáticos da atual legislação, não são contemplados pelo novo PL.

A legislação ambiental brasileira é muitas vezes apontada como uma das mais modernas do mundo, diz Manfredini. Porém, fatores como a sua dimensão territorial, a biodiversidade e a disparidade econômica entre os estados dificultam a aplicação correta dessas leis. “Empresas localizadas na região Norte têm muito mais dificuldade em, por exemplo, dispor corretamente um resíduo específico, ou avaliar parâmetros de emissão atmosférica, do que uma empresa no Sudeste, onde é mais fácil encontrar profissionais que ofereçam este tipo de serviço”, compara.

PL pode impactar metade do Pantanal e do Pampa

Enquanto o PL 2159/21 tramita no Senado Federal, a Câmara dos Deputados também possui sua própria cota de projetos que despertam a preocupação e o temor dos ambientalistas. Entre os mais polêmicos está o PL 364/2019  que se propõe a retirar a proteção, assegurada pela Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006). O Projeto de Lei foi apresentado em 05 de fevereiro de 2019 pelo Deputado Alceu Moreira (MDB/RS).

Em resumo, segundo o autor do PL, os Campos de Altitude precisam ser desacoplados da Lei da Mata Atlântica por que essa legislação é mais restritiva do que o Código Florestal (Lei nº 12.651, de 2012) para os ambientes campestres. O texto do PL busca disciplinar a conservação, proteção, regeneração e utilização dos Campos de Altitude, tipo de ecossistema associado ou abrangidos pelo bioma Mata Atlântica, fixando uma nova proposta de regime jurídico para corte, supressão, exploração, manejo e recuperação da vegetação, regulamentando práticas agrícolas e de coleta, abrangendo as propriedades localizadas nos Campos de Altitude que já tivessem sido transformados em áreas rurais até 22 de julho de 2008.

A data serve como uma espécie de marco temporal, e toma como referência o dia de publicação do Decreto 6514. Este decreto regulamentou uma série de sanções administrativas contra crimes ambientais, proporcionando segurança jurídica a casos de descumprimento das obrigações legais pertinentes ao meio ambiente. O autor do PL, o deputado gaúcho Alceu Moreira, afirma em seus pronunciamentos públicos não ser contra manter a proteção aos biomas. Para o político, a proposta se justifica porque os produtores rurais precisam continuar a trabalhar sem que estejam sujeitos a fiscalizações indevidas dos órgãos ambientais. 

O texto inicial, contudo, sofreu alterações relevantes em sua redação enquanto tramitava na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC): foi incluído um substitutivo que amplia o alcance da lei, e sugere que todas as áreas campestres do país que tenham sofrido alterações antrópicas (qualquer atividade agropecuária, por exemplo) antes de 22 de julho de 2008, devam ser consideradas “áreas rurais consolidadas”, permitindo, assim, a mudança no uso da terra.

Manfredini explica os impactos do substitutivo. “Esse PL, cujo alcance estava restrito aos campos de altitude presentes em algumas áreas do Sul e Sudeste, passou a abranger outras vegetações campestres, e terminou por alcançar uma diversidade gigantesca de ecossistemas brasileiros, incluindo o Pampa, o Pantanal e Cerrado”, diz. “Um dos problemas desse substitutivo é que a consolidação do uso nessas áreas costuma ocorrer independentemente de a vegetação nativa ter sido efetivamente convertida. Isso porque, muitas vezes, o produtor apenas solta o gado na área, sem sequer preparar o solo. A mudança daria margem para que muitas áreas no Brasil em circunstâncias semelhantes passem a desfrutar desse status de ‘área rural consolidada’”.

A ONG SOS Mata Atlântica chegou a emitir uma nota alertando para os impactos ambientais da aprovação do PL. Segundo estimativa da ONG, essa nova legislação ocasionaria efeitos em quase 50% da área dos biomas Pampa e Pantanal, em cerca de 9% do território do Cerrado e em trechos da Mata Atlântica e Amazônia. “A eventual aprovação do texto do PL 364/2019, constante do último relatório do deputado Lucas Redecker (PSDB/RS) na CCJ da Câmara dos Deputados é não só extremamente grave, por, numa só tacada, retirar a proteção adicional a toda a Mata Atlântica, bem como deixar completamente desprotegidos o Pantanal e partes expressivas do Cerrado, da Amazônia, Pampa e da Caatinga, como é também absolutamente desproporcional, dado que há forma alternativa, com impacto ambiental infinitamente menor, que pode garantir segurança jurídica aos produtores rurais da região dos campos de altitude sulinos e inclusive permitir a expansão organizada dos plantios florestais nessa mesma região, sem prejudicar de forma drástica todos os biomas brasileiros”, diz a conclusão da nota técnica da SOS Mata Atlântica.

Nova chance após o Código Florestal

“Eles erraram, perderam a mão. O texto é muito ruim, dificilmente vai ser possível consertá-lo na Câmara”, diz Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica. “Nossa primeira estratégia é segurá-lo na própria Câmara. Se ele for [encaminhado para ser votado] para o plenário, talvez possa ficar parado lá. Ou, no caso do Senado, outra possibilidade é negociar para que obtenha uma boa relatoria nas Comissões Temáticas, a fim de que o PL seja rejeitado, ou que se apresente um substitutivo consertando os erros”, diz.

Um requerimento, aprovado em maio, prevê a realização de audiências públicas sobre o PL, o que deve retardar o seu trâmite. Segundo Malu Ribeiro, a negociação desse assunto no Congresso com setores do agronegócio tem sido muito difícil. “Eles estão tentando obter, agora, os ganhos que não alcançaram com a aprovação do Código Florestal em 2012”, diz. E paira, sempre, o risco de que a Frente Parlamentar do Agronegócio tenha sucesso em se mobilizar para colocar o PL na pauta do Congresso e aprová-la.

“Ao tomarem conhecimento do PL e de todos os documentos relacionados a ele, os integrantes da Comissão de Meio Ambiente e Biodiversidade do CFBio, após análise técnica, elaboraram a nota de repúdio destinada a opinião pública, divulgada em 11/04/2024, na qual manifestaram-se contrários à continuidade de trâmite da proposta do PL”, explica Marcela Bruxel, conselheira do CFBio pelo Rio Grande do Sul.  

Segundo o texto divulgado pelos representantes dos biólogos, “o complexo da Mata Atlântica, do ponto de vista da proteção, deve ser tratado como uma floresta tropical lato sensu, ou seja, em conjunto com seus habitats marginais, como os campos de altitude, afloramentos rochosos e restingas, inseridos na amplitude de seu bioma. Os habitats marginais são extensões do núcleo da floresta tropical e uma zona tampão para ela, como pode ser visto pelas relações florísticas existentes e pelos casos de trânsito animal entre esses tipos distintos de vegetação, apesar da fragmentação”, diz o parecer técnico do CFBio.

“Não foi a intervenção antrópica que causou as inundações do Rio Grande do Sul, porém ela pode aumentar o seu caráter destrutivo por alterar o volume de chuva, mas principalmente por afetar a capacidade do solo de absorver essa água. É bom lembrar que o meio ambiente nos oferece uma série de serviços ecossistêmicos e no caso dessa vegetação de campos, um dos serviços que ela nos proporciona é justamente a regulação de inundação”, diz Mafredini.

Equilibrar o bônus e o ônus

Da mesma forma que o PL que pretende alterar o licenciamento ambiental, o projeto de lei que quer modificar a Lei da Mata Atlântica também foi motivado pela necessidade de conciliar a atividade econômica de determinados produtores – no caso, daqueles localizados nas regiões dos campos de altitude – com a preservação dos ecossistemas ali presentes. Com a experiência de quem trabalha na área de gestão ambiental no setor privado, Manfredini vê como natural que de tempos em tempos as leis sejam revistas e aprimoradas para se adequarem aos novos conhecimentos, demandas e tecnologias que surjam na sociedade.

“O problema é quando, em meio a esse processo de revisão da legislação, alguns lobbies que possuem mais força entre os legisladores tentam defender o seu quinhão. Muitas pessoas não sabem, mas a legislação ambiental existe para garantir um mínimo de condição da vida humana no planeta. Numa atividade produtiva, o empreendedor tem o seu bônus, que é o lucro, e nós, a sociedade, temos um ônus, que é o impacto dessa atividade no meio ambiente. A legislação ambiental, portanto, não deve atuar para promover o crescimento econômico, mas sim caminhar ao lado do crescimento econômico.”

Imagem acima: Depositphotos