Nos Jogos Paralímpicos, projeto do Brasil para se firmar como potência esportiva global já se concretizou

Em menos de uma década, combinação de financiamento, boas instalações de treino e prospecção de novos talentos consolidou status do país entre os dez maiores ganhadores de medalhas nas últimas quatro edições. Dirigentes apostam em resultados ainda melhores nas Paralimpíadas de Paris, que se iniciam em agosto próximo.

Estamos já a menos de 100 dias do início dos Jogos de Paris 2024 e a delegação brasileira está animada com as perspectivas positivas para a sua participação no evento. Viajarão à capital francesa cerca de 250 pessoas, entre dirigentes, técnicos e atletas, que competirão em uma vintena de modalidades. A projeção dos dirigentes é que o país irá superar as 72 medalhas conquistadas em Tóquio 2020 e chegar a, pelo menos, 75 —  há quem sonhe com 90 medalhas, das quais 20 de ouro. Tal resultado daria ao Brasil uma colocação entre o quinto e o oitavo lugares na classificação geral, e talvez uma performance superior à registrada nos Jogos de Tóquio, quando alcançamos a sétima posição e ficamos à frente de potências esportivas tradicionais,  como a França e o Japão.

Para aqueles que talvez estejam um pouco surpresos com a perspectiva de resultados tão bons para a equipe verde-amarela nos Jogos de Paris, cabe ressaltar que estamos falando dos Jogos Paralímpicos, que ocorrerão a partir de 28 de agosto —  e não dos Jogos Olímpicos, que acontecerão um pouco antes, entre 26 de julho e 11 de agosto, também na cidade luz. Mas os fãs do esporte paralímpico sabem que há bons motivos para que nossa delegação desembarque em Paris sentindo-se otimista. Afinal, nosso país tem exibido um progresso consistente em sua performance na competição, passando de um décimo quarto lugar no quadro geral de medalhas em Atenas 2004 para um lugar fixo entre as dez nações mais vencedoras nas últimas quatro edições. Ficamos  em nono em Pequim 2008 com 47 medalhas, sétimo em Londres 2012 com 43 medalhas, oitavo nos jogos de 2016 no Rio de Janeiro e novamente sétimo em Tóquio 2020, em ambos os casos arrebatando 72 medalhas. E, se adotarmos como parâmetro de comparação as sete medalhas conquistadas em Barcelona 1992, encontramos um crescimento de 1.028%. Nas Olimpíadas, o Brasil ainda está distante de resultados mais consolidados. Os melhores resultados viveram nos jogos de Tóquio 2020: 21 medalhas, e a décima segunda posição no quadro geral.

A comparação das medalhas e classificações alcançadas pelas equipes Olímpica e Paralímpica brasileiras nos últimos jogos ajuda a dimensionar o salto que o esporte paralímpico brasileiro alcançou no espaço de menos de uma década, consolidando-se como potência esportiva. É claro que esses resultados se devem, em boa parte, à dedicação e ao talento dos atletas brasileiros (veja boxes ao longo do texto), mas também são fruto de planejamento, políticas públicas, apoio político e continuidade administrativa,  que coalesceram na forma de três pilares fundamentais: a construção do Centro Paralímpico Brasileiro, o desenvolvimento de um sistema de financiamento que vem das loterias, e a captação de novos atletas.

De Fundação Casa a Centro de Treinamento

Um dos elementos-chave para a guinada do esporte paralímpico brasileiro começou a tomar forma durante uma conversa descontraída em novembro de 2011, no restaurante Picanhas do Sul, em Brasília. À mesa estavam Mizael Conrado, 46 anos, então vice-presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro (ele hoje é o presidente) e o chefe de gabinete da Secretaria dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Estado de São Paulo, Alexandre Perroni. Perroni perguntou o que faltava para o Brasil se tornar uma potência paralímpica e Conrado respondeu rapidamente que a construção de um centro de treinamento para atletas paralímpicos “de primeiro mundo” seria fundamental.

Perroni recordou-se de que sua secretaria havia recebido como doação, por parte do Governo do Estado, um terreno enorme, com 130 mil metros quadrados, onde anteriormente havia funcionado a Fundação Casa. Os dois homens conversaram e concluíram que, devido às suas dimensões, o local parecia ideal para abrigar o novo centro. Sem muita expectativa, entraram em contato com Linamara Rizzo Battistella, chefe de Perroni e titular da Secretaria. Ela se mostrou entusiasmada, e a ideia aos poucos foi amadurecendo.

Em 2012, o presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro, Andrew Parsons, estava em Londres e assistiu à Paralimpíada. Com o mesmo objetivo estava na capital inglesa o então ministro dos Esportes do primeiro governo Dilma, Aldo Rebelo. Rebelo havia feito toda a sua carreira política no PCdoB, tinha boa interlocução com a presidente e se manteria politicamente fiel a ela até sua cassação, em 2016.

“Eu estava na Paralimpíada e me entusiasmei com o rendimento dos atletas brasileiros”, recorda Rebelo. “Então, perguntei ao Parsons como o governo federal poderia ajudar. Ele respondeu que seria com a construção do Centro Paralímpico. Falei com a presidente Dilma e ela me deu cartão verde para tocar. Na hora, mandou construir”, diz. “Foi minha obra mais importante.”

O CRAQUE DO GOABALL

Pai, mãe e irmãos unidos em um grande abraço coletivo. As 12 mil pessoas que lotavam a Arena do
Futuro enlouquecidas. São as últimas imagens que Leomon Moreno guarda na memória. A partir daquele 16 de setembro, quando saiu do banco para levar o Brasil à medalha de bronze no goalball na Paralimpíada, a retinose pigmentada, doença genética e degenerativa, tomou força, e aquele que seria em pouco tempo o maior jogador do mundo na modalidade perdeu a visão de vez.

O jogo contra a Suécia, o jogo do bronze, começou a marcar a carreira de Leomon. No dia anterior, ele havia jogado mal, cometido oito penalidades e prejudicado o Brasil, que perdeu para os Estados Unidos o direito de ir à final. Na disputa do terceiro lugar, começou no banco. E o Brasil perdeu o primeiro tempo por 4 x 0. Ele entrou na quadra, fez dois gols e levou o jogo para o empate. Mas a Suécia fez o quinto gol. Parecia o fim, mas Leomon empatou quando faltavam sete segundos. A disputa foi para a prorrogação. E, com dez segundos, ele fez o gol de ouro. Gol de bronze. Depois, festa e escuridão.

Leomon, na verdade, estava mais preparado para a escuridão do que para a festa. Foi diagnosticado ainda criança com a mesma doença dos irmãos Leandro e Leonardo. “Minha mãe me preparou para a vida. Não queria que eu dependesse de ninguém.” Com quatro meses, foi matriculado em um CEDV – Centro Especializado em Deficiência Visual – para receber estímulos precoces.Cresceu adorando o esporte. Praticou futebol, natação e ciclismo, mas seguiu o caminho dos dois irmãos no goalball. Como a doença ainda não tinha tomado toda sua visão, aproveitava para acompanhar as partidas quando ia buscar os irmãos nos treinos.O goalball é jogado em uma quadra com as mesmas dimensões do vôlei, com nove metros de largura, 18 metros de comprimento e 1, 30 m de altura. As partidas têm dois tempos com 12 minutos cada e três minutos de descanso. Cada time tem três jogadores que atacam e defendem.

A bola  possui um guiso em seu interior para que os jogadores possam se orientar. É pedido silêncio total da torcida, a não ser para comemorar gols. O arremesso deve ser rasteiro ou tocar pelo menos em uma das áreas pré-determinadas.“Eu sou o jogador que encontra soluções para situações difíceis. Por isso, sou considerado o melhor do mundo”, diz Leomon, que já atuou pelo Sporting, de Portugal, onde recebeu o apelido de Cristiano Ronaldo do goalball.

A fama de melhor do mundo se cristalizou na Paralimpíada de Tóquio, quando o Brasil ficou com o ouro após uma goleada por 7 x 2 contra a China. “Não parece, mas foi difícil”, conta Leomon. Ele é conhecido pela força do arremesso. Usa muito o giro de 360 graus para ganhar força e gosta do arremesso picado, para enganar os adversários.

Rebelo procurou o então governador Geraldo Alckmin, do PSDB, que havia sido derrotado por Lula na eleição presidencial de 2006, mas que mantinha boas relações com Dilma Rousseff. “Éramos de partidos diferentes, mas já havíamos feito um trabalho conjunto no projeto Minha Casa, Minha Vida”, relata Alckmin, que dez anos depois surpreenderia inclusive muitos de seus eleitores ao articular uma chapa presidencial com Lula para as eleições de 2022 e tornar-se vice-presidente da República. “A conversa foi rápida e acertamos tudo. Dei o terreno e o Centro foi construído, com inversão conjunta de R$ 400 milhões. Hoje, o Brasil vai melhor na Paralimpíada do que na Olimpíada”, diz.

Outro fator que contribuiu para que a obra do Centro Paralímpico saísse do papel foi o fato de que o governo federal já disponibilizava verbas e programas visando preparar o Brasil para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, num total de 400 diferentes iniciativas. “Eu disse ao Ricardo que, entre 400 obras, ele poderia dedicar pelo menos uma para o paralimpismo. Ele aceitou, claro”, conta Conrado, referindo-se ao então secretário nacional de esportes de alto rendimento, Ricardo Leyser Gonçalves, 54 anos. O prestígio dos diversos padrinhos políticos que apoiaram o  empreendimento à época pôde ser medido pelas autoridades que compareceram à cerimônia de inauguração das obras, em janeiro de 2013; além de Alckmin, vieram o então prefeito de São Paulo, ex-ministro de Lula e presidenciável Fernando Haddad e a própria presidente Dilma Rousseff.

Paridade com o esporte olímpico ajudou

Hoje, o Centro de Treinamentos Paralímpicos serve de base para a preparação de atletas de 17 modalidades esportivas os quais, junto com seus treinadores, ficam instalados em um hotel de 300 leitos enquanto se preparam para competir. Ocupa uma área de 140 mil metros quadrados, dos quais 95 mil são de área construída, o que faz dele a quarta maior instalação do gênero, atrás apenas de equipamentos semelhantes instalados no Japão, Coreia e Rússia. De maio de 2016, quando foi inaugurado, a dezembro de 2023, recebeu 1.916 eventos esportivos.

Para Ricardo Leyser Gonçalves, que hoje atua como consultor e é membro independente do conselho de administração do Comitê Olímpico Brasileiro, o salto dado pelo esporte paralímpico começou a ser ensaiado nove anos antes que Mizael e Perroni se encontrassem para jantar juntos em Brasília e sonhar com um centro de treinamento.

“Tudo começou em 2001, com a assinatura da Lei Agnelo Queiroz, que destinava 2% de todo o dinheiro arrecadado com loterias para o movimento olímpico e paralímpico. O Brasil saiu na frente, já a partir do ano seguinte”, diz. A posse de Lula como presidente, em 2003, trouxe mais um elemento decisivo. “Lula, quando gosta de um assunto, de uma causa, ele se envolve muito. Ele recomendou ao Agnelo Queiroz , que estava como ministro dos Esportes, que tudo o que fosse feito para o esporte olímpico deveria ser replicado com o esporte paralímpico. Isso aconteceu com o bolsa atleta, o bolsa pódio, todos os programas”, diz Leyser Gonçalves. Desejoso de projetar o Brasil como polo de soft power mundial, o governo Lula abraçou a candidatura do Brasil a sediar a edição de 2007 dos Jogos Panamericanos, e, em paralelo, do Parapan. “O Parapan de 2007 foi um sucesso enorme, o Comitê Olímpico Internacional o considerou melhor que a Olimpíada de 2004. Foi todo bancado pelo governo federal”, diz Leyser Gonçalves.

A TERCEIRA TATUAGEM

Na lateral da perna direita, perto do tornozelo, há uma tatuagem do símbolo da Paralimpíada Rio-16, com a inscrição silver (prata em inglês). Mais acima, na panturrilha direita, o desenho é maior, simbolizando a conquista maior. O logo é de Tóquio 2020 e a medalha representada é de ouro (gold,  medal). 

Se quisesse, a judoca Alana Maldonado, de 27 anos, poderia fazer de seu corpo um outdoor, mostrando conquistas. Se falarmos apenas em ouro, estariam lá os Mundiais de 2018 em Lisboa e de Baku, no Azerbaijão, em 2022. Menos importantes, mas também de ouro, estariam representados o GP de Baku em 2021, o de Tashkent em 2019 e o Aberto da Alemanha em 2019. Desde que chegou à seleção nacional em 2015, com 18 anos, Alana esteve em todos os pódios de todas as provas que disputou. 

A carreira no paradesporto começou em 2014, quando entrou na faculdade, mas o judô era um velho conhecido. Nascida em Orlândia e vivendo em Tupã, no interior de São Paulo, chegou ao tatame com quatro anos. Quando foi diagnosticada com a doença de Stargardt e começou a perder a visão, já tinha uma base que foi importante na sua carreira. “Foi uma vantagem para mim, não comecei do zero. São os mesmos golpes, o mesmo treinamento.”

  Agora, o foco é Paris. Alana está na Geórgia, junto com o restante da equipe, treinando duro. Uma repetição do que faz no Brasil, no Palmeiras, seu clube. São quatro horas diárias, em dois períodos. No sábado, a carga diminui para uma hora e meia de treinos e o domingo é de descanso, que ninguém é de ferro. Passa o dia com Wedja, sua mulher. “Ela é judoca também, me ajudou na preparação para Tóquio e a gente começou a namorar. Meu casamento é muito tranquilo, todos me respeitam, assim como respeito a vida dos outros.” Os treinos preparam surpresas para as representantes da China, Azerbaijão e Uzbequistão, as concorrentes mais duras que encontrará em Tóquio. “Estamos buscando novos recursos, mas não apenas falando de golpes, também de tática e técnica. Precisamos surpreender. Não vejo diferença entre o judô olímpico e paralímpico.”

Mesmo uma carreira vitoriosa de uma campeã apresenta percalços. Em 2022, Alana pensou em parar. Depois do ouro em Tóquio, tirou férias que não foram férias. Muitas entrevistas, muito assédio e nada de descanso. Então, a volta aos treinos e lesão no menisco do joelho. Cirurgia. Machucou-se de novo, e veio a vontade de largar tudo. “Em junho de 2022, percebi que meu corpo estava pedindo para eu parar. Minha saúde mental não estava nada boa.” Teve o apoio de Wedja e de uma psicóloga. Em setembro, voltou a competir. Em novembro, foi campeã mundial. Alana está quase pronta para a Paralimpíada. E está pronta para uma nova tatuagem, claro. Em seu Instagram há uma enquete aberta. A conquista, se vier e há boas chances de vir, será retratada na perna ou no braço.

Originalmente, a repartição dos 2% estabelecidos pela Lei Agnelo Piva eram divididos em 1,7% ao esporte olímpico e 03,% ao esporte paralímpico. Em 2015, Dilma Rousseff promulgou a Lei da Inclusão e a divisão passou a ser diferente. Dos 2,7% arrecadados, 1,73% ficaram com o olimpismo e 0,97% com o esporte paralímpico.

“No ano passado, nosso orçamento anual foi de R$ 248 milhões, um valor já superior aos R$ 217 milhões de 2022. Nem dá para comparar com o ano de 1996, quando precisamos de 25 patrocinadores para conseguir R$ 2,5 milhões”, conta Conrado, cujo mandato como presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro está chegando ao fim.

Mas, para além da construção do Centro de Treinamento, da continuidade dos investimentos e da criação de um amplo sistema de identificação de talentos, outro fator que desempenhou um papel importante no crescimento do esporte paralímpico brasileiro foi o senso de oportunidade demonstrado por dirigentes e políticos, ainda que talvez essa não fosse uma prioridade. Pois, como reconhece Leyser Gonçalves, é mais fácil para um país destacar-se no universo paralímpico do que no olímpico — pelo menos por enquanto.  “É mais fácil. Até por uma questão de história, uma vez que o segmento paralímpico é mais recente. A maior parte das nações ainda destina bem menos atenção e investimentos a ele. Isso facilita o processo necessário para que um país se posicione na frente”, avalia.

O jornalista Fernando Gavini, que é editor do site Olimpíada Todo Dia, especializado em esportes olímpicos e paralímpicos, aponta as diferenças. “Alguns fatores facilitam o rendimento paralímpico. Existem potências olímpicas, como os EUA, que não dão tanta importância. Por exemplo, lá não existe um comitê paralímpico independente, essas atribuições ficam com o próprio comitê olímpico”, diz.

Ele também destaca a carência dos espaços de inclusão social disponíveis para as pessoas com deficiência no Brasil. “O esporte se torna uma grande oportunidade para que essas pessoas se integrem à sociedade e possam ganhar um bom dinheiro. Poucos países oferecem incentivos como bolsa, Bolsa Pódio e salário. No Brasil, todo atleta paralímpico ganha bem”, diz.

Por fim, o fato de haver muitas classes diferentes de deficiência leva a um número menor de atletas disputando provas, o que pode facilitar a vitória. “Em Tóquio 2020 foi preciso juntar duas classes diferentes para que acontecesse uma prova de corrida. Mesmo assim, só oito atletas participaram. O brasileiro Vinícius Rodrigues, que é amputado de uma perna, perdeu para um atleta russo que era amputado de braço”, diz Gavini.

UMA MEDALHA ADIADA

Thiago Paulino, arremessador de peso, vai a Paris em busca da medalha sonhada desde 2010 e que acredita ter sido roubada em 2020. Um final feliz para uma história que começou quando ele ainda estava no hospital, recuperando-e de um acidente, e que, a bem da verdade, vai depender da superação das marcas de um certo atleta iraniano.

A viagem de Orlândia a Ribeirão Preto – distância de 60 quilômetros – era corriqueira para Thiago. Diariamente, pegava a moto para ir trabalhar de segurança, profissão adequada ao seu porte de 1,90 m e 117 quilos. Até que um dia, a moto derrapou. No hospital, recebeu um duro diagnóstico: seria preciso amputar a perna esquerda. “Eu fiquei triste, claro, mas a visita de meu cunhado mudou minha vida. Ele me mostrou um vídeo sobre esporte paralímpico. E eu resolvi que ia fazer arremesso de peso”, conta.

Depois de receber alta do hospital, Thiago decidiu relaxar com um dos seus hobbies favoritos: assistir ao treino do time de futsal de Orlândia, onde a época atuava o astro Falcão. “Conversamos. Falei do meu sonho e ele, sem eu pedir nada, comprou o material para que eu pudesse começar meus treinos.” Seis meses depois, os treinos começaram. O primeiro resultado notável foi o bronze no Parapan do Canadá em 2015, que veio, também, por uma mudança na forma de competir. “O amputado pode arremessar em pé, saltando ou sentado em uma cadeira, amarrado. Quando mudei de estilo, melhorei as marcas.”

Um detalhe fez toda a diferença na Olimpíada de Tóquio, em 2021. O arremessador não podia receber um impulso vertical, ou mexer o glúteo de maneira alguma. A delegação chinesa, imediatamente após o final da prova, pediu a anulação dos três primeiros arremessos de Thiago, que lhe assegurariam a medalha de ouro com folga. A reclamação não foi aceita. Os chineses protestaram em uma instância superior. A Thiago restou apenas um protesto no pódio, ao ficar com o bronze. “Nós, do Brasil, não pudemos nem ver o vídeo que deu razão a eles. Tenho certeza de que não fiz nada de errado. A medalha é minha.”

Thiago seguiu treinando e foi medalha de ouro no Mundial de Londres em 2017 e no de Dubai em 2019. Em 2021, perdeu a medalha de ouro em Tóquio, mas mesmo assim o caminho para a medalha de ouro paralímpica em Paris 2024 parecia traçado. Mas, no mundial disputado em 2023, surgiu uma surpresa. Thiago arremessou 15, 09 m —  marca muito boa. O iraniano Yasin Khosravi, porém, bateu o recorde mundial de 15,26 m, que pertencia a Thiago, com um excepcional arremesso de 16m01. “Sem dúvida, ele é meu rival mais forte, mas minha meta é conseguir o ouro. Estou treinando muito.”

Mesmo que a medalha não chegue, Thiago se sente feliz e realizado como atleta. Chegou a dizer que o acidente foi a melhor coisa que lhe aconteceu. “Eu vivia na balada, gostava de briga. Hoje, sou um atleta profissional, me dedico ao esporte e à minha família. Sou muito feliz. E estarei no pódio em Paris.”

De craque a dirigente

A verba que Conrado administra como presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro fica em torno de R$ 20 milhões por mês, e é dividida para atividades como a manutenção do Centro Paralímpico, treinamentos, torneios e captação de atletas com o know-how de quem já esteve em campo.

 “Nasci cego, e depois de três operações passei a enxergar, aos três anos. Aos nove, tive descolamento de retina e fiquei cego novamente”, diz. Ainda criança, apaixonou-se pelo futebol. “Minha última lembrança de enxergar alguma coisa foi a decisão do campeonato brasileiro de 1986”, relata. Para conseguir perceber alguma coisa, assistiu com o rosto grudado  —  “grudado mesmo”  — à televisão ao dramático jogo, que opôs as equipes de São Paulo e Guarani. O posicionamento lhe permitiu ver o momento em que o são-paulino Wagner Basílio deu um chutão para a frente. “Pita ganhou de cabeça de Ricardo Rocha e a bola sobrou para Careca, que acertou o chute sem pulo. O São Paulo empatou com o Guarani em 3 x 3, e depois ganhou nos pênaltis.”

Certo dia, no pátio do Instituto Padre Chico, instituição paulistana destinada à educação de cegos e crianças com deficiências visuais, questionou de onde vinha um som de guiso. “São crianças jogando bola”, respondeu a religiosa. Por meio daquele som, veio o desejo de praticar o esporte e iniciou-se uma trajetória que o levaria a ser artilheiro na paralimpíada de Sydney 2000 e ao reconhecimento como o melhor jogador do mundo na modalidade de futebol de cegos.

Conrado explica como se articulou a captação de novos atletas, o terceiro pilar que explica o crescimento do movimento paralímpico no país. “Oferecemos cursos de ensino a distância para orientar os professores de educação física como tratar melhor alunos com deficiência, e promover inclusão. Anunciamos o curso no site do Ministério da Educação e Cultura, mas é preciso uma parceria mais efetiva. Por enquanto, ela envolve apenas divulgação, mas, mesmo assim, 50 mil professores já participaram”, diz.

O processo de captação de novos talentos segue um escopo amplo, abrangendo de crianças a militares. ‘’São profissionais que se tornaram deficientes no exercício da profissão e que podem ser ótimos atletas.  Quanto às crianças, temos 72 escolinhas espalhadas pelo Brasil, são centros de referência. Atendem seis mil crianças. Este ano, fizemos um festival paralímpico e tivemos 21 mil crianças participando em 119 cidades diferentes. E temos também competições universitárias”, diz.

Os atletas captados vão até o Centro Paralímpico e são avaliados por profissionais capacitados. É a classificação funcional, que avalia a funcionalidade do corpo e o insere na classe que mais se adapta à sua debilidade físico-motora. Existe um departamento especializado, com médicos e fisioterapeutas que acompanham os atletas em competições e treinamentos. Uma pessoa que perdeu o dedo mínimo não pode disputar o paraciclismo, por exemplo, porque sua debilidade não atrapalha em nada. A gente analisa tudo e vê em qual categoria o atleta se insere”, conta Mariane Lima, uma das avaliadoras.

Conrado acredita que os Jogos Paralímpicos de Paris 2024 serão a última competição em que o Brasil estará fora dos cinco primeiros colocados na contagem geral de medalhas. “Hoje a inclusão é algo universal, o mundo inteiro está se preparando para lidar com isso. Uma criança cadeirante que vê alguém semelhante a ela ganhar uma medalha passa a ter um exemplo a seguir. Nós também estamos fortes e na Paralimpíada seguinte, que vai ocorrer em Los Angeles 2028, estaremos entre os cinco primeiros. E, em 2040, seja onde for a competição, estaremos incomodando a China, que sempre fica com o primeiro lugar”, diz.

Imagem de abertura: Alana Maldonado leva a medalha de ouro no Judô, categoria ate 70 kg, nos Jogos Paralímpicos de Tóquio. Crédito: Matsui Mikihito/CPB