Após quase um mês de complexas negociações, a posse do novo primeiro-ministro de Portugal, Luis Montenegro, ocorrida no último dia 2/4, foi recebida com um misto de alívio, ceticismo e revolta pelo eleitorado português. A parte da revolta ficou por conta dos adeptos do partido de extrema-direita português Chega!, que aguardavam um convite, por parte de Montenegro, para que a agremiação apoiasse o novo governo e, em troca, administrasse algumas pastas e partilhasse do poder. A coligação de centro-direita Aliança Democrática, que Montenegro integra, obteve uma pequena vantagem sob os demais partidos, levando 80 dos 230 assentos na eleição antecipada da Assembleia da República. Porém, o político escolhido pelo presidente de Portugal para formar um novo governo preferiu compor com seus adversários políticos históricos, o Partido Socialista, buscando assim isolar o partido de extrema-direita.
O Chega! foi o grande fenômeno eleitoral desta eleição, que ocorreu em 10 de março, tendo passado de 12 cadeiras ganhas na eleição de 2021 para 48 cadeiras neste sufrágio. O PS de centro-esquerda, que antes era o partido de situação, obteve 78 assentos. O acordo entre PS e a Aliança Democrática estipula que José Pedro de Aguiar-Branco, que pertence à Aliança Democrática, presidirá a Assembleia da República pelos próximos dois anos, seguido pelos socialistas nos dois anos seguintes. A estranha solução foi o caminho para evitar uma aliança entre a Aliança Democrática e o Chega! O quadro reflete tanto a fragmentação da sociedade portuguesa em blocos bem distintos como o desejo de renovação, depois de décadas de polarização entre PS e a centro-direita, e a canalização desse desejo para a onda de extrema-direita que varre a Europa e o mundo.
O crescimento do Chega! junto ao eleitorado português, que depois se traduziria em sua vitoriosa performance registrada na última eleição legislativa em Portugal, foi o tema da pesquisa de doutorado de Lucas Arantes Zanetti no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Unesp, campus de Bauru. Parte da pesquisa aconteceu em Portugal, durante um período de doutorado sanduíche junto ao Instituto Universitário de Lisboa. Em seu trabalho de campo, ele acompanhou as atividades tanto de coletivos de ativistas migrantes como de grupos que se colocam como contrário à imigração, como a juventude do Chega!.
A tese, intitulada “Esfera pública midiatizada, ativismo migrante e anti-imigração: Disputas identitárias e representação social em Portugal”, foi defendida em 15 de março no departamento de Ciências Humanas da FAAC, poucos dias após o Chega ter alcançado sua votação mais expressiva. Ele conduziu a pesquisa sob orientação da docente Caroline Kraus Luvizzotto.
Zanetti diz que o partido português se inspira nos partidos de extrema direita da Europa, EUA e Brasil, e apresenta certos aspectos semelhantes ao bolsonarismo, com quem compartilha pautas e estratégias políticas. “Discursos agressivos, xenófobos e racistas não são novos, mas o Chega! inflama o cenário político-social português. Certamente, a postura dessa sigla deixa as pessoas que apoiam essas retóricas mais à vontade para praticarem todos os tipos de discriminação”, diz.
Ele explica que a ascensão do partido ocorreu rapidamente e é um fenômeno complexo, que envolve vários fatores. “Primeiro, a economia não está bem. O mercado de trabalho é extremamente restrito e o país depende do turismo e da União Europeia. A corrupção também se tornou um tema central, com vários casos e escândalos envolvendo o Partido Socialista”, diz. Outro problema é o envelhecimento da população portuguesa, em parte devido ao êxodo de jovens que partem em grande número buscando oportunidades de trabalho em outras nações. Aproximadamente um milhão de cidadãos, em sua maioria pessoas entre 15 e 39 anos, vivem fora do território nacional. Por fim, um terceiro fator é o uso das redes sociais e a difusão de fake News. Este fator foi um dos focos da pesquisa.
Zanetti diz ter detectado estratégias que ajudam a viralizar mensagens populistas a partir de discursos construídos para públicos específicos. “No perfil do Chega! no Instagram, encontrei discursos agressivos e incisivos, que emulam indignações e representações sociais na linha de ‘recuperar Portugal para os portugueses’ e ‘restaurar sua glória’. Eles argumentam que o país precisa de uma ‘limpeza’. Mas que tipo de ‘limpeza’ é essa? O que isso significa?”, indaga. Ele também identificou que a maior parte dos conteúdos era produzido por youtubers e influenciadores, ao invés de profissionais da comunicação de formação mais tradicional. Esses produtores tendem a priorizar a busca por engajamento e por visualizações das mensagens que veiculam ou repassam, sem necessariamente se comprometerem com a base factual do que estão comunicando. “Isso abre espaço para discursos falsos e estratégias retóricas, responsáveis por alienar o público que consome esse tipo de conteúdo”, diz.
Assim como ocorreu com o ex-presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, o líder do Chega, André Ventura, começou a ganhar projeção por meio de falas polêmicas divulgadas pela mídia. Entretanto, Ventura foca grande parte das suas críticas e discurso de ódio contra a comunidade cigana, que historicamente é vítima de preconceito e perseguição na Europa. Embora seu partido não se apresente abertamente como defensor de um projeto anti-imigração, pois ainda não apresentou projetos de lei neste sentido, Ventura se opõe à política de fronteiras abertas. Segundo Zanetti, essa contradição se deve ao fato de que, para a sigla, não seria estratégico atacar diretamente comunidades de imigrantes, especialmente a comunidade brasileira que, historicamente, conta com um grande número de eleitores e influência em Portugal. Mesmo assim, brasileiros que buscam novas oportunidades no país sem contarem com uma estrutura de habitação, emprego ou cidadania definida, não são bem-vistos.
“Os resultados indicam uma transformação, na esfera pública portuguesa em relação à imigração nos últimos anos, caracterizada pelo aumento do discurso anti-imigração, da polarização e da radicalização do repertório de ação dos ativistas contrários à presença do imigrante. Apesar disso, não foram identificados grupos organizados de movimentos sociais anti-imigração no país”, escreve ele na tese.
O futuro do cenário político português é incerto. Analistas consideram inevitável que o governo irá se aliar ao Chega! para aprovar determinadas pautas.“Para quem acredita em democracia, justiça social e equilíbrio, as perspectivas não são boas, especialmente para os imigrantes. É necessário refletir sobre o futuro de Portugal, mas principalmente, como brasileiros, pensar nas questões de imigração para Portugal”, diz Zanetti.
Ouça a íntegra da entrevista abaixo.
Imagem acima: O primeiro-ministro de Portugal, Luis Montenegro, durante sua cerimônia de posse. Crédito: @gov_pt.