Cátedra Sérgio Vieira de Mello vai fomentar trabalhos acadêmicos com populações refugiadas

Em parceria com a agência da ONU para refugiados, Unesp é a 40ª instituição do país a constituir a cátedra, uma homenagem ao diplomata brasileiro morto em atentado terrorista no Iraque; para docente coordenador do projeto, engajamento da universidade na questão dos deslocamentos forçados de pessoas é um dever ético

A Unesp formalizou na última quinta-feira, 22 de fevereiro, um acordo de cooperação com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur-ONU) para a instituição da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, voltada à atuação acadêmica com a temática dos refugiados. 

Pelos termos do acordo, a Universidade reforça o seu compromisso com a promoção nas dimensões do ensino, da pesquisa e da extensão universitária de temas relacionados à migração internacional, ao refúgio e ao deslocamento forçado de populações. São exemplos de iniciativas que podem ser potencializadas com a parceria ações para fomentar o acesso e a permanência no ensino superior de pessoas em deslocamento forçado, a revalidação de diplomas dessas pessoas e o ensino da língua portuguesa à população de refugiados.

A Unesp é a 40ª universidade brasileira a instituir a Cátedra Sérgio Vieira de Mello, homenagem ao diplomata brasileiro morto em decorrência de um atentado terrorista no Iraque, em 2003. A cátedra terá como sede a Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), câmpus de Marília, e será coordenada pelo professor José Geraldo Poker, que há anos trabalha a temática com os estudantes do curso de relações internacionais.

A base institucional da cátedra é o trabalho que vem sendo realizado desde 2021 pela Rede de Atenção ao Migrante Internacional (Ramin), uma rede temática de extensão universitária formada por unidades universitárias dos câmpus de Marília, Assis, Araraquara, Franca e São José do Rio Preto. “Trata-se de um engajamento da Universidade na resolução de uma questão social gravíssima, que é a questão da imigração e do refúgio, considerando deslocamentos forçados”, afirma o professor José Geraldo Poker.

A solenidade que marcou o lançamento da Cátedra Sérgio Vieira de Mello foi realizada na última quinta-feira, dia 22, no auditório da Escola Paulista de Magistratura, na região central da capital paulista, e liderada pela professora Maysa Furlan, vice-reitora no exercício da Reitoria. Participaram do evento representantes da administração central da Unesp, do Acnur, de unidades universitárias, dos graduandos em relações internacionais, da Secretaria da Justiça e Cidadania do estado de São Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil e da prefeitura de Marília. Durante a cerimônia, mais de uma pessoa lembrou de uma frase que pode resumir o norte do trabalho com refugiados: criar sonhos e construir futuros.

“A cátedra representa esperança. Uma universidade do porte da Unesp pode contribuir com o poder público e auxiliar na identificação de problemas e criação de soluções. E a cátedra vai fazer isso para que essas pessoas possam reconhecer na universidade um espaço de acolhimento e de geração de conhecimento”, diz a vice-reitora Maysa Furlan. “Não se pode ficar de olhos fechados a deslocamentos forçados e crises humanitárias.”

De acordo com dados do Acnur, existem cerca de 114 milhões de pessoas em deslocamentos forçados no mundo. No Brasil, nos últimos anos, foram marcantes os fluxos migratórios de haitianos, venezuelanos e afegãos. Representante do Acnur no Brasil, o italiano Davide Torzilli destaca que a estrutura multicâmpus da Unesp vai ao encontro da interiorização da população de refugiados. Segundo ele, atualmente, há pessoas refugiadas em todos os estados brasileiros, sendo atualmente o aeroporto internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo, a principal porta de entrada dessas pessoas no país. 

“Ter (parceria com) uma universidade que tem presença em todo o estado é fundamental para apoiar comunidades de refugiados que se integram em todas as partes do estado de São Paulo”, pontua Davide Torzilli. “Pelas experiências que temos, a cátedra tem tido um impacto enorme na vida das pessoas refugiadas. Não é só permitir o acesso ao ensino superior, mas também o compromisso dos professores e dos alunos em apoiar o refugiado no processo de integração à comunidade, tanto legal como cultural e socioeconômica”, diz.

No universo acadêmico, a parceria com o Acnur e a instituição da Cátedra Sérgio Vieira de Mello têm sido recebidas como uma grande oportunidade de enriquecer a experiência universitária dos cursos de graduação, em especial os de relações internacionais oferecidos nas cidades de Marília e Franca, e também dos programa de pós-graduação da Unesp que dialogam com a temática.

“Os alunos da RI (relações internacionais) passam a ter também ampliadas as possibilidades de atuação em instâncias governamentais. Além disso, abrem-se possibilidades de promoção de aproximações e trabalhos colaborativos, na graduação e na pós”, afirma Claudia Giroto, diretora da Faculdade de Filosofia e Ciências do câmpus de Marília.

Presentes à cerimônia, os integrantes do Programa de Educação Tutorial em relações internacionais (PET-RI) celebraram a parceria. Segundo Gabriela Carneiro, estudante de relações internacionais em Marília, o desenvolvimento de um trabalho em rede na Unesp tem potencial para atingir cerca de 20 mil pessoas em deslocamentos forçados. A estimativa foi feita com base nas atividades do Núcleo de Assessoria ao Imigrante e Refugiado (Nair), que atua em Marília e região. “Nossos pilares são os mesmos da cátedra”, diz.

No dia do lançamento da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), o Jornal da Unesp entrevistou o professor José Geraldo Alberto Bertoncini Poker, docente no câmpus de Marília e coordenador da cátedra.

Jornal da Unesp: Qual é a importância desta parceria com o Acnur para o lançamento da Cátedra Sérgio Vieira de Mello na Unesp?

José Geraldo Poker: A importância disso se deve ao fato de que se trata de um engajamento da universidade na resolução de uma questão social gravíssima, que é a questão da imigração e do refúgio, considerando deslocamentos forçados. Quando a gente trabalha com deslocamentos forçados, a gente está pensando num contexto severo de violações de direitos que levam as pessoas a saírem de suas terras de origem para buscar outros lugares para viver. Quer dizer, trata-se de uma luta por sobrevivência e, tratando-se disso, todos nós temos o dever, como diria Kant (Immanuel Kant, filósofo alemão autor de “À Paz Perpétua”), de oferecer acolhimento porque toda situação que viole direitos deve ser entendida como uma ofensa universal. Nesse sentido, portanto, trata-se de um engajamento necessário da universidade, de maneira que isso se reverterá em projetos de pesquisa, de extensão, de ensino que vão por sua vez oferecer melhores condições para os nosso alunos e uma formação ética responsável, uma formação que venha a ser suficiente e necessária para que as pessoas compreendam as questões do tempo de hoje.

Jornal da Unesp: Como a cátedra pode fortalecer esta rede de ações já existentes e dialogar com outras instituições brasileiras que também possuem esta iniciativa?

José Geraldo Poker: Nossa cátedra vem a se somar a outras 39. É um projeto que tende a se desenvolver em todas as universidades exatamente em função daquilo que ele provoca, que é por um lado um despertar ético-político e por outro lado um envolvimento que traz para a universidade a possibilidade de atuar de outra maneira, trazendo conteúdos diferenciados para a sala de aula, oferecer uma formação muito melhor. A Unesp já tem projetos. Já desenvolvemos muita coisa nessa área. Formalizar nosso envolvimento é deixar muito claro que estamos engajados. Vamos fazer mais do que já fazemos.

Jornal da Unesp: Houve recentemente uma interiorização dessas migrações e a Unesp tem 22 câmpus no interior paulista. Como essa capilaridade pode contribuir no acolhimento dessas pessoas?

José Geraldo Poker: Sobre a interiorização das migrações, não é tão recente. Isso ocorre desde os anos 1980 e se intensifica na década de 90. As pessoas vão buscando outras oportunidades no interior a partir do momento em que observam que a capital não oferece mais as melhores condições de permanência. E a condição da Unesp é privilegiada em relação a outras universidades. Temos uma capilaridade que outras universidades não têm e o estado de São Paulo abriga uma quantidade muito grande de imigrantes e refugiados. Nesse sentido, vamos poder atuar de maneira articulada e organizada como universidade na oferta de projetos de ensino, pesquisa e extensão que venham atender a demandas deste público específico.

Jornal da Unesp: O Brasil já recebeu nos últimos anos muitos imigrantes haitianos e venezuelanos, por exemplo. Há alguma população específica que hoje mereça um olhar mais apurado em termos de deslocamentos forçados para o país?

José Geraldo Poker: Afegãos, sobretudo. E agora, em função da guerra entre Hamas e Israel, palestinos. Quer dizer, a gente sempre olha com mais atenção para quem estiver mais fragilizado e, nesse caso específico, estes dois povos vivem necessariamente em situações de privação maiores do que os outros, têm que sair das suas terras de origem sem poder trazer muita coisa. Trazem nada ou quase nada e isso exige de nós, exige do próprio estado brasileiro, exige da sociedade civil, de todas as instituições um esforço para poder cumprir com este dever, que é um dever ético, mais do que um dever moral ou legal, que é o dever do acolhimento.

Jornal da Unesp: Alguns que chegam com quase nada são pessoas letradas, que tinham cumprido com todas as etapas de escolaridade em seus países. A adaptação dessas pessoas é mais fácil?

José Geraldo Poker: Há diferentes tipos de imigrantes, entre os quais imigrantes que vêm do Afeganistão, que vêm da Síria, que vêm do Egito e são imigrantes que têm escolaridade. Encontramos médicos, engenheiros… A adaptação nesses casos é igualmente desafiadora exatamente por causa da língua. Geralmente, imigrantes com escolaridade têm uma segunda língua, falam inglês, mas não necessariamente todos nós brasileiros somos fluentes em inglês. Então, a língua se torna uma barreira importante a ser superada para que a gente tenha possibilidade de uma inclusão mais rápida.