Em dezembro do ano passado, treze pessoas foram atacadas por abelhas em Curitiba, no Paraná. Três delas ficaram em estado grave devido a uma reação alérgica desencadeada pelas picadas. O evento levou o Deputado Ney Leprevost (União) a submeter um pedido para o Ministério da Saúde disponibilizar adrenalina autoinjetável para pacientes com alergias severas. O pedido somou-se a um coro de entidades médicas que chamam à atenção há mais de uma década para a importância de comercializar as “canetas de adrenalina” em solo nacional. Demanda que, até então, não pôde ser atendida.
Ao pensar em alergias, a imagem mais comum que vem à mente é de uma reação cutânea, uma vermelhidão acompanhada de coceira ou formigamento. Apesar de muitas alergias se manifestarem dessa forma, é possível ter reações mais severas. Esses casos são conhecidos como anafilaxia, entre os sintomas mais graves está a queda de pressão e a obstrução das vias respiratórias. A situação demanda atendimento médico imediato porque, se não tratada, pode levar o paciente à morte em questão de minutos.
O tratamento é simples: a epinefrina, ou adrenalina, começa a fazer efeito no primeiro minuto e tem a capacidade de regularizar o paciente. A adrenalina é um hormônio produzido naturalmente pelo corpo humano em momentos de medo ou excitação e é responsável por aumentar tanto o nível de glicose no organismo, quanto os batimentos cardíacos. No tratamento de alergias severas, a adrenalina promove um aumento da pressão e diminui o inchaço das mucosas, impedindo que a pessoa desmaie ou pare de respirar.
A velocidade com que o hormônio age no corpo humano é o que faz dele um aliado tão forte em casos de anafilaxia. Outros medicamentos que costumam ser utilizados no tratamento de alergias têm um tempo de reação muito maior. Anti-histamínicos podem demorar até 20 minutos para começar a agir, enquanto os corticoides levam até duas horas para fazer efeito.
“A reação anafilática é extremamente rápida, ela varia de alguns minutos até, no máximo uma hora, então a ação para conter o avanço dos sintomas tem que ser imediata”, conta Elaine Gagete, alergista e pesquisadora do Departamento de Pediatria da Unesp, câmpus de Botucatu. “As reações costumam ser desencadeadas principalmente por alimentos, picadas de insetos ou medicamentos”, completa a médica, que também integra a comissão de anafilaxia da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI).
Entretanto, para que ele seja efetivo, a adrenalina deve ser aplicada de maneira correta e nas quantidades correspondentes. Do contrário é possível até mesmo piorar o quadro. Por conta disso, as canetas de adrenalina são uma solução bastante simples para os momentos de emergência: além de já trazerem a substância na quantidade necessária, a aplicação é rápida e fácil, podendo ser feita pelo próprio paciente, ou por qualquer outra pessoa, sem que seja necessário treinamento específico.
Apesar de sua importância, o medicamento não é encontrado no Brasil. Caso queiram obter o dispositivo, pessoas com histórico de anafilaxia e de alergias graves devem importar as canetas de outros países, como Estados Unidos, Japão e Austrália. O custo é alto: aproximadamente 1000 reais para um conjunto de duas canetas, com um prazo de validade que pode variar entre um e dois anos. “Para comprar a epinefrina autoinjetável, além do custo alto, é necessário também um cartão internacional, somado a isso está o fato de que, uma vez utilizada, é necessário fazer a reposição do medicamento, o que aumenta ainda mais os gastos. Isso é um grande limitador, especialmente para famílias de baixa renda”, afirma Gagete.
Sem previsão para a comercialização da caneta no Brasil
As canetas de adrenalina foram inventadas em meados dos anos 70 e tiveram sua primeira aprovação pela Federal Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, em 1987. Não é portanto uma tecnologia nova, mas sua comercialização está restrita principalmente aos países desenvolvidos. “Essas fabricantes não são empresas grandes e o que elas afirmam oficialmente é que já atendem grandes mercados e, portanto, não têm capacidade de expandir sua produção”, afirma a alergista da Unesp.
Atualmente, não existe nenhuma tramitação na ANVISA para registro e comercialização da adrenalina autoinjetável no país. O pesquisador Paulo Ricardo Criado, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, explica que, ao contrário do que se pensa, não depende de demandas de associações médicas ou pedidos de políticos, mas sim do interesse das empresas fabricantes do medicamento. “Todas as marcas de epinefrina autoinjetável que existem são estrangeiras e nenhuma delas teve interesse comercial de pedir o registro na Anvisa. Então, na verdade, nós não temos no Brasil porque os fabricantes nunca fizeram o pedido e não porque a Anvisa negou o registro”, diz Criado, que também é membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
A falta de levantamentos relacionados aos casos de anafilaxia é outro fator que afeta o pedido para comercialização das canetas em território nacional. Segundo dados ASBAI, um em cada 200 atendimentos nos serviços de emergência são para tratamento de reações alérgicas graves. Estima-se que aproximadamente 2% da população já sofreu ao menos um episódio de anafilaxia. Além disso, estudos têm apontado um aumento nos casos de anafilaxia no Brasil e no mundo. Um artigo publicado em 2022 na Clinical & Experimental Allergy apontou um aumento de 2,4% ao ano nas internações e 3,8% ao ano nos óbitos por anafilaxia entre 2011 e 2019.
Ainda assim, acredita-se que exista uma subnotificação de quantas pessoas sofrem da condição ou já tiveram reações anafiláticas. Além de não existir a obrigatoriedade para os médicos reportarem o atendimento desses casos, a Classificação Internacional de Doenças (CID), em sua décima versão, não contemplava o diagnóstico de anafilaxia. “O médico até pode registrar a CID T78, por exemplo, que diz respeito ao choque anafilático por intolerância alimentar. Só que choque já é o estágio final do processo de anafilaxia. É um paciente que está na UTI, mas nem sempre a anafilaxia é grave assim. Se o pesquisador considerar apenas o código T78, ele vai deixar passar um monte de outros casos de anafilaxia onde não houve o choque”, comenta Gagete. Esses problemas de notificação limitam a compreensão da real condição da doença, uma vez que torna difícil identificar com precisão as regiões ou populações mais suscetíveis, assim como a evolução de casos com o passar dos anos. Em janeiro de 2022, entrou em vigor a CID-11, que só recentemente ganhou uma tradução em português. “A anafilaxia está muito bem especificada na CID-11, mas ela ainda não está sendo amplamente usada por convênios e pelo SUS. A adoção da nova versão é outra luta que as sociedades médicas precisam fazer”, destaca.
Para gerar um mapeamento preciso do quadro no Brasil, desde 2021 está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1945/21, que obriga médicos, clínicas, hospitais e centros de saúde de todo o país a notificarem o Ministério da Saúde sobre ocorrências de choque anafilático. Em dezembro de 2023, o projeto foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família e seguiu para aprovação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, onde aguarda parecer. “Esse é um projeto muito importante porque, uma vez que a lei entre em vigor, muito rapidamente será possível ter um mapa da distribuição e dos casos de anafilaxia, o que poderá servir de base para o interesse de farmacêuticas em comercializar as canetas de adrenalina no Brasil, e também para nós desenvolvermos políticas mais eficientes para esses casos”, afirma Gagete.
Enquanto o projeto não é aprovado, pesquisadores têm investido em iniciativas de mapeamento local. Em Botucatu, Gagete, juntamente com o professor Jaime Olbrich Neto, do Departamento de Pediatria da Unesp, e com a estudante Letícia Sanches Oezau, do Programa de Pós Graduação em Pesquisa e Desenvolvimento (Biotecnologia Médica) também da Unesp, estão desenvolvendo um projeto para mapear a incidência de casos de anafilaxia em escolas da cidade.
A pesquisa, intitulada “Construção, Aplicação e Validação de um Instrumento Tecnológico e Informatizado para Identificação de Risco de Anafilaxia em Crianças e Adolescentes” teve início em 2023 e consiste em um questionário aplicado em todas as turmas de escolas públicas e privadas da região. O objetivo é não apenas desenvolver um mapeamento da condição na área, como também fundamentar a criação de um ambulatório voltado para o tratamento de reações alérgicas graves em Botucatu. Até o momento, mais de mil pessoas preencheram o questionário, a aplicação continuará nos próximos meses para gerar os primeiros resultados.
Adrenalina em ampola não é uma solução
Sem perspectivas de comercialização da adrenalina autoinjetável, um segundo projeto de lei foi apresentado. O PL 2527/2023 prevê a venda de epinefrina em ampolas sob prescrição médica em farmácias de todo território nacional. Além disso, também aponta para a distribuição gratuita da substância pelo SUS.
A adrenalina em ampolas já é um medicamento registrado pela Anvisa, entretanto, atualmente sua comercialização é permitida apenas para uso hospitalar. A proposta visa permitir que a população tenha acesso à compra da substância, sob a justificativa de que ela é muito mais barata do que a importação das canetas auto injetáveis, com um valor aproximado de dois reais por ampola.
Ao contrário do uso das canetas, que é de fácil aplicação e praticamente livre de riscos, o manuseio da adrenalina em ampolas demanda mais cuidados. Em caso de uma crise anafilática, é necessário que a pessoa quebre a ampola e aspire a substância com uma seringa, tendo cuidado para que seja feito na quantidade correta. Após isso, deve ser feita a aplicação da injeção, também de maneira adequada para alcançar os músculos.
Médicos avaliam com desconfiança o PL devido às dificuldades do manejo e aplicação do medicamento, que vem acompanhado de uma série de riscos, especialmente quando aplicado por pessoas não treinadas. “A adrenalina tem o potencial de desencadear eventos como infarto agudo do miocárdio, hipertensão ou acidente cérebro-vascular em indivíduos com essa tendência. Além disso, quando não é aplicada na área adequada, ela pode levar a um fechamento dos vasos sanguíneos, limitando a circulação na região, que pode escalar para uma necrose”, explica Criado.
Gagete afirma que a ASBAI não apoia o projeto de lei justamente pelos riscos envolvidos na aplicação por uma pessoa não treinada. “A venda de adrenalina em ampolas deveria ser facilitada para médicos e outros profissionais da saúde, como dentistas. Para o paciente a aplicação já é um processo difícil, em situações de estresse se torna algo mais complicado ainda”, comenta.
Em contrapartida, a caneta vem com a substância na dosagem adequada, assim como a agulha conta com uma espessura e tamanho apropriados. Basta a pessoa apertar um botão no dispositivo e posicioná-lo na coxa para ativar o mecanismo e receber o medicamento. O processo pode, inclusive, ser realizado por cima de roupas.
Para Criado, uma solução seria aproveitar que a adrenalina já é comercializada no país e desenvolver um dispositivo de auto-aplicação nacional. Essa iniciativa permite que o país não fique dependente dos interesses das farmacêuticas estrangeiras para a comercialização do medicamento dentro do território brasileiro. “O Brasil já conta com produção nacional de epinefrina, seria necessário desenvolver apenas o dispositivo para a autoaplicação. Provavelmente isso seria uma solução muito mais barata e nós teríamos uma fonte da medicação dentro do país que não dependesse de insumos estrangeiros”, diz.
Imagem acima: exemplo de caneta de adrenalina vendida em diversos países da Europa e nos Estados Unidos (Crédito: DepositPhoto)