Nos anos 1990, ocorreu a primeira descoberta de um vírus de alta periculosidade no Brasil. Denominado Sabiá (SABV), é transmitido por roedores silvestres e pode causar a febre hemorrágica brasileira, patologia de alta letalidade. Felizmente, é raro; ainda assim, dois casos foram diagnosticados em São Paulo em 2019. No entanto, ainda que a febre hemorrágica brasileira seja uma ameaça aos brasileiros, é nos Estados Unidos que estão armazenadas todas as amostras conhecidas do SABV, e lá são conduzidas as análises que podem identificar os casos de contaminação. Essa dependência dos laboratórios norte-americanos decorre da ausência de instalações laboratoriais de alta segurança no Brasil, dotadas da infraestrutura e dos recursos adequados para a manipulação e as análises desses vírus muito perigosos. Felizmente, este quadro está para mudar, e o Brasil já planeja a construção do Orion, seu primeiro laboratório de categoria NB-4, que é a de máxima biossegurança.
Na verdade, o Orion será um complexo laboratorial com área de 20 mil m2. Além do primeiro laboratório de categoria NB-4 a funcionar em toda a área da América do Sul, Central e do Caribe, abrigará também um da categoria NB-3 e outras instalações. O Orion será construído no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O orçamento total será de R$ 1 bilhão, e cerca de R$ 240 milhões já foram repassados ao Fundo nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. A expectativa é que a construção seja concluída até o segundo semestre de 2026.
Há décadas, a construção de um laboratório NB-4 era reivindicada por importantes atores da comunidade biomédica brasileira, como a Fundação Oswaldo Cruz. O tema ganhou uma urgência inédita após a pandemia de Covid-19. O vírus causador da doença, o SARS-CoV-2, pegou o país despreparado em vários aspectos, o que ficou evidente diante da necessidade de adquirir em outros países provisionamentos para os mais diversos itens, desde máscaras, luvas e aventais até ventiladores mecânicos e insumos para produzir vacinas. Determinado a não ser surpreendido uma segunda vez, o governo federal anunciou em agosto passado a inclusão do projeto do Orion no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
“A pandemia abriu os olhos do mundo para muitos aspectos da segurança biológica” , avalia Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde. “Ela mostrou que a pergunta a ser proposta sobre as chances de que uma epidemia localizada se transforme em pandemia não é se isso pode acontecer, mas sim quando vai acontecer, e qual será o patógeno envolvido.”
Guimarães, que é médico, vê a construção do laboratório NB-4 como uma iniciativa estratégica para o país. “Ao longo de muitas décadas temos descoberto novos vírus, principalmente hemorrágicos, que podem ser transmitidos por mosquitos, mas também por via aérea. Se não receberem a devida atenção, podem se transformar em problemas muito mais sérios. Na Amazônia, por exemplo, temos um celeiro de possibilidades de novos patógenos, e é absolutamente necessário um ambiente seguro para estudá-los”, analisa.
Além do já mencionado Sabiá, outros patógenos de nível 4 que circulam na América Latina, como o Junín, o Guanarito e o Machupo, causadores de febre hemorrágica, também devem ser alvo de atenção. “Como não sabemos o que vem por aí, precisamos investir em tecnologia e estar preparados”, diz João Pessoa Araújo Júnior, que é professor titular de microbiologia do Instituto de Biotecnologia (IBTEC) da Unesp, em Botucatu. Responsável pelo Laboratório de Virologia e Diagnóstico Molecular do IBTEC, ele foi um dos especialistas consultados pela equipe do CNPEM na etapa inicial do projeto, em que foi debatida a planta do laboratório e os equipamentos que obrigatoriamente a nova facility deveria abrigar. “A falta de um laboratório NB-4 nacional dificulta a preparação para potenciais epidemias na região, o que mostra a importância das instalações do Orion para permitir pesquisas e medidas preventivas adequadas”, diz ele.
Araújo Júnior enumera outros benefícios que o Orion pode trazer. Entre eles está o apoio para as instalações do tipo NB-3 já em operação no país. “O Orion também servirá como centro de excelência em treinamento para quem quiser trabalhar em nível 3, e beneficiará os grupos que precisarem montar um laboratório de nível 3 em suas instituições”, diz. E destaca também o fortalecimento da cultura de pesquisa em rede. “É uma mudança de logística, e um esforço para mudar culturalmente a forma pela qual se faz pesquisa, principalmente, quando a pesquisa envolve equipamentos de grande valor. Estes muitas vezes são concedidos a universidades e a alguns pesquisadores, que os guardam em seus laboratórios e não permitem utilização coletiva”, diz. “Se for bem organizado, pode se tornar um exemplo de laboratório multiusuário e multicêntrico, que talvez possa ser replicado em outras regiões do país.”
Por dentro de um NB4
Os níveis de segurança em laboratórios são classificados de acordo com a periculosidade dos vírus, bactérias, fungos ou parasitas que manipulam. “Os laboratórios de segurança nível 1 (NB-1) são dedicados a estudos de micro-organismos como vírus e bactérias inofensivos, enquanto o nível 2 trabalha com patógenos mais perigosos, como os que causam doenças controláveis, como o sarampo. O nível 3 é destinado a agentes para os quais não há vacina ou tratamento específico, como inicialmente foi o coronavírus, ou ainda grandes quantidades de agentes de nível 2. O nível 4 envolve micro-organismos muito perigosos ou não pertencentes à fauna local e que podem ser letais, como o ebola. Normalmente, ficam em prédios isolados dos demais”, explica Nicolas Ciochetti, neurocientista e pesquisador na Universidade de São Paulo.
Por isso, um laboratório NB-4 é uma instalação planejada com níveis de segurança maiores, como sistemas de filtragem de ar para evitar a fuga de agentes patogênicos, controle rigoroso de acesso, equipamentos de proteção individual especializados e procedimentos de descontaminação. “Estamos falando de um nível inimaginável de segurança para manipular vírus e também toxinas extremamente perigosas, capazes de matar ou provocar grandes epidemias e pandemias, para não deixar esses patógenos escaparem”, diz Guimarães.
O fator Sirius
Além de seu pioneirismo na América Latina e Central, o projeto também introduz inovações em relação às outras estruturas NB-4 existes no mundo devido à sua associação com o Sirius, o acelerador de partículas que funciona no mesmo CNPEM. Considerado a mais complexa infraestrutura científica do país, o Sirius é uma fonte de luz síncroton de quarta geração, utilizado em uma grande variedade de pesquisas científicas e tecnológicas.
A luz sincrotron é usada para investigar a composição e a estrutura da matéria em suas mais variadas formas, inclusive em organismos vivos, em áreas que vão da saúde a tecnologias para agricultura, meio ambiente, novas fontes de energia e materiais mais sustentáveis. A segunda fase do projeto do Sirius, também incluída no PAC, prevê a construção de 10 novas estações de pesquisa. A estimativa é de que o Sirius tenha 38 linhas de luz sincroton, sendo três conectadas ao laboratório NB-4 Orion, cada uma com diferentes escalas de observação.
A primeira linha de luz síncroton ligada ao Orion fornecerá imagens de alta resolução de células individuais, permitindo o estudo detalhado das alterações que ocorrem durante uma infecção viral. A segunda facilitará a investigação de tecidos, órgãos e insetos. A terceira linha possibilitará acompanhar a evolução da doença em modelos animais.
Como parte do planejamento, a equipe de técnicos do CNPEM tem realizado visitas técnicas em instituições da Europa e América do Norte. “Em particular, temos tido um relacionamento bastante próximo com times dos laboratórios NB-4 ligados ao NIAID do NIH dos Estados Unidos. Essas parcerias, mesmo que informais, têm sido muito importantes para a evolução do projeto”, diz o físico José Roque, diretor do CNPEM.
Ele explica que o planejamento inclui estágios e treinamento dos pesquisadores brasileiros que irão atuar no Orion em laboratórios NB-4 no exterior, para que adquiram a experiência e as certificações necessárias, e possam conduzir estudos preliminares com amostras do próprio vírus Sabiá, entre outros. “E além do aspecto da pesquisa avançada com diversos patógenos de interesse estratégico, por terem sido identificados em países vizinhos, a infraestrutura do Orion vem sendo projetada para dar suporte também a trabalhos de vigilância em saúde, como desenvolvimento de novos métodos de diagnóstico, vacinas e medicamentos”, diz José Roque.
Possíveis vantagens econômicas
“Além de proporcionar um laboratório NB-4, que não temos, o Orion vai servir como centro de pesquisa em tecnologia de ponta mundial, com um potencial inédito. O projeto tem recebido bastante atenção em todos os lugares onde tem sido discutido”, diz o virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP)
“Ao oferecer acesso a laboratórios de alta segurança e tecnologia avançada, o Orion irá atrair tanto o interesse de órgãos estatais quanto de indústrias da iniciativa privada”, diz Nogueira. Ele que critica quem considera o investimento alto. “Vou repetir as palavras da Márcia Barbosa , secretária de Políticas e Programas Estratégicos do MCTI, sobre esse projeto: O Brasil não pode pensar pequeno.”
Laboratórios NB-4 são tendência global
A ameaça de novos patógenos também tem levado a um aumento significativo no número de laboratórios de alta segurança em todo o mundo. Um artigo publicado pela revista Science, da American Association for the Advancement of Science (AAAS), apontou a existência de 51 laboratórios NB-4 em operação no mundo, distribuídos em 27 países, principalmente na Europa e na América do Norte. Isso significa aproximadamente o dobro do número existente há cerca de uma década. A revista apontou também a existência de planos para a criação de ao menos mais 18 laboratórios (o Orion dentre eles), a maioria deles na Ásia.
De acordo com o artigo, a expansão da rede de laboratórios NB-4 está fazendo soar alguns alertas entre os especialistas em biossegurança. Um dos motivos é o fato de que muitos desses laboratórios estão situados em áreas urbanas, o que eleva o risco de contaminação em caso de acidentes. E, com exceção do Canadá, que possui uma legislação mais rigorosa, a falta de normativas mais robustas, em alguns países, para supervisionar e regulamentar os experimentos conduzidos em laboratórios de alta segurança é mais um motivo para preocupação, diz a Science. A conclusão é que, em todo o mundo, as medidas de segurança e regulamentação devem ser revisadas e reforçadas para garantir a segurança dos profissionais que atuam nestes laboratórios, e da população em geral.
Imagem acima: ilustração das futuras instalações do Orion. Crédito: CNPEM/Assessoria de Comunicação.