Novo soro para tratamento de ataques de abelhas africanizadas tem patente reconhecida junto ao INPI

Desenvolvimento levou cerca de 15 anos, e envolveu pesquisadores da Unesp, do Instituto Vital Brazil e do Instituto Butantan. Produto não tem semelhante no mercado, e há potencial inclusive para comercialização com o exterior.

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No último dia 2 de janeiro, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) deferiu o pedido de patente do soro antiapílico, resultado de pesquisas conduzidas por docentes da Unesp em parceria com profissionais do Instituto Vital Brazil e do Instituto Butantan. O deferimento da patente pelo órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços atesta o caráter inovador e inventivo do trabalho, além de garantir o direito sobre a propriedade intelectual da inovação. O autor da patente é Rui Seabra Ferreira Júnior, coordenador executivo do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos (Cevap) da Unesp, e os coautores são os docentes da Unesp Benedito Barraviera, da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) e Ricardo de Oliveira Orsi, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia de Botucatu,  e Luis Eduardo da Cunha Ribeiro, diretor científico do Instituto Vital Brazil, e Daniel Pimenta, pesquisador do Butantan.

Os primeiros passos para o desenvolvimento se deram quando Rui Seabra Ferreira Júnior fazia seu pós-doutoramento no Instituto Butantan, sob supervisão de Osvaldo Augusto Brazil Esteves Sant’Anna, e tendo como colaborador Daniel Pimenta. No total, transcorreram 14 anos até a patente. “A colaboração teve início ainda na concepção da ideia. Depois vieram os estudos básicos, o desenvolvimento da metodologia, do produto, a submissão da patente, a publicação de artigos, a produção dos lotes do medicamento e por fim os testes em humanos na fase II”, diz Ferreira Júnior. “É raro que um mesmo grupo participe de todo o processo, desde o início até a patente.”

As fases I e II foram conduzidas simultaneamente. Para estes testes foram selecionados 20 pacientes, que haviam recebido entre sete e 2.000 picadas cada um, com o objetivo de avaliar a segurança do medicamento e determinar a dosagem ideal para tratamento. Os resultados detectaram melhora em todos os pacientes após a inoculação do soro. O estudo completo foi publicado em 2021, na revista científica Frontiers in Immunology.

Atualmente, os pesquisadores estão avaliando, junto ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e ao Ministério da Saúde, a obtenção dos recursos para a iniciar a terceira e última fase de estudos clínicos, que deve ter um custo em torno de R$ 20 milhões. Após esta etapa, que irá envolver entre 150 e 200 pacientes, será possível solicitar registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e autorização para sua produção pelo Instituto Vital Brazil, que fica em Niterói, RJ.

Número de ataques cresceu

Ferreira Júnior explica que o soro antiapílico é o primeiro produto desenvolvido especificamente para atender pessoas vitimadas por picadas múltiplas da Apis mellifera, a abelha africanizada, popularmente conhecida como “abelha assassina”. Nesses eventos mais graves, em que uma pessoa chega a ser picada por centenas de abelhas, ocorre uma injeção massiva de veneno no organismo que pode ocasionar sintomas como dor generalizada, insuficiência respiratória e falhas nos rins. “Nos casos mais leves, é possível tratar sintomas como alergia e dor por meio de medicamentos. Por isso, preferimos focar os estudos nas substâncias tóxicas responsáveis por matar pacientes, pois não existe um tratamento para estes ataques que envolvem muitas picadas de Apis mellifera”, diz Ferreira Júnior.

Nos últimos anos, a presença desses insetos nas proximidades das cidades tem aumentado, o que se reflete no número de acidentes associados a eles. Segundo dados do Ministério da Saúde, de 2007 para 2022, o número de incidentes envolvendo picadas de abelhas aumentou mais de quatro vezes, passando de 5.370 acidentes ao ano, para 23.849. O número de mortes também seguiu a tendência: saltando de 18 óbitos registrados em 2007, para 78, em 2022 (os números dos últimos três anos são preliminares e estão sujeitos a revisão por parte do Ministério da Saúde). E ataques são registrados também em diversos países da Europa, África e Ásia. Logo, o fato de ser um produto sem similar abre caminho para que o soro possa vir a ser exportado no futuro.

Dada a demanda pública para tratamento de indivíduos atacados, caso os resultados dos estudos de fase III se mostrem promissores, há possibilidade de que o soro antiapílico receba um registro provisório da Anvisa, o que permitiria a sua distribuição por meio do Ministério da Saúde. “A concessão da patente pode ajudar a sensibilizar os nossos gestores da saúde brasileira na aprovação do registro junto à Anvisa, além de enaltecer a capacidade de gerar biotecnologia de fronteira em uma universidade pública brasileira”, diz Ferreira Júnior. “A população vai ser beneficiada por esta pesquisa. É a ciência, a inovação, a tecnologia aplicadas diretamente no braço de uma pessoa, que pode vir a ter sua vida salva graças ao trabalho da universidade”, diz o diretor da Agência Unesp de Inovação (AUIN), Saulo Guerra. A AUIN foi responsável pelo processo de patenteamento, e a ela caberá as eventuais negociações para licenciamento.

Instituição parceira produz soros há um século

Assim como no caso dos soros produzidos contra picadas de cobras, escorpiões e aranhas, a substância contra o veneno de abelhas é produzida a partir da extração do veneno e inoculação em cavalos, responsáveis por produzir os anticorpos contra as toxinas presentes. A seguir, ocorre a coleta de sangue, que contém os anticorpos desenvolvidos pelo animal e que serão utilizados na produção do antídoto.

Ao seguirem o mesmo procedimento utilizando o veneno das abelhas, porém, os pesquisadores constataram que os cavalos apresentavam reações adversas, como dor intensa, reações alérgicas e choques anafiláticos, impedindo a produção dos anticorpos necessários. Buscando solucionar essa questão, o então pós-doutorando Rui Seabra, juntamente com seu colaborador Daniel Pimenta, do Laboratório de Bioquímica do Butantan, conduziram um mapeamento da composição bioquímica do veneno para compreender sua composição e identificar quais componentes, entre aminas biogênicas, proteínas, enzimas e peptídeos eram necessários para promover a produção de anticorpos.

Graças a essa caracterização, os pesquisadores identificaram duas proteínas responsáveis pelo efeito tóxico: a Melitina e a Fosfolipase. Ao isolar as duas toxinas dos demais componentes, responsáveis pelas reações alérgicas e de dor, foi possível desenvolver um veneno que pode ser inoculado nos cavalos.

Uma vez produzido, o veneno é enviado para a fazenda do Instituto Vital Brazil, próxima de Niterói, onde é feita a produção do soro antiapílitico, sob a responsabilidade do médico veterinário Luis Eduardo da Cunha Ribeiro, diretor científico do Instituto Vital Brazil. A etapa seguinte consiste em injetar o veneno nos cavalos e extrair o plasma dos equinos, com os anticorpos necessários para o soro. Em seguida, é feito o tratamento e a purificação do plasma, para se tornar o produto final. Entre os processos necessários, está a adição da enzima pepsina, utilizada para partir a fração do anticorpo responsável por identificar que ele foi produzido em cavalos. graças a este expediente, quando o produto final é injetado em humanos, a probabilidade de reações alérgicas ou choques anafiláticos é menor.

“O Vital Brazil tem mais de 100 anos de prática na obtenção e tratamento de plasma”, diz Cunha Ribeiro. “Temos muita experiência para saber como fazer um produto concentrado de boa qualidade, potente e que neutraliza o veneno bruto das abelhas”. Com o plasma tratado, ocorre a fase final do processo, que envolve o armazenamento em ampolas para a utilização em humanos.

Metodologia não mata abelhas

A extração do veneno das abelhas também exigiu soluções criativas. Uma das técnicas existentes consistia em arrancar manualmente um ferrão por vez, para ter acesso ao repositório do veneno. Além dessas dificuldades, o processo também causava a morte das abelhas, porque o ferrão era arrancado juntamente com o intestino do inseto. Isso tornou a técnica impraticável porque, para a produção de um grama de veneno, são necessárias, pelo menos, 20 mil abelhas.

A alternativa foi desenvolver uma aparelhagem baseada em uma placa de acrílico atravessada por fios de cobre eletrificados. Ao encostar em um desses fios, a abelha sofre uma pequena descarga elétrica, fraca o suficiente para impedir sua morte, mas na intensidade necessária para que ela identifique a placa como uma ameaça e deposite pequenas quantidades de veneno em sua superfície.

Com isso feito, as gotas de veneno secas são raspadas e coletadas, sendo enviadas para o Cevap, onde é feita a purificação e o tratamento do veneno, sob a coordenação do docente Ricardo Orsi, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, campus Botucatu. O veneno é, então, encaminhado para o Instituto Vital Brazil, no Rio de Janeiro, onde se procede então à inoculação nos cavalos e à produção final do soro.

Acesso ao soro

Atualmente, o Brasil conta com três instituições responsáveis por produzir soros: o Instituto Butantan, em São Paulo; o Instituto Vital Brazil, em Niterói no Rio de Janeiro e a Fundação Ezequiel Dias, em Minas Gerais. As substâncias produzidas nos centros são compradas pelo Ministério da Saúde e então distribuídas pelos hospitais do país. Uma vez que seja aprovado o licenciamento do soro antiapílico, a expectativa é ele percorra o mesmo trajeto e esteja disponível no Sistema Único de Saúde, em hospitais e em demais unidades de saúde acessíveis à população.

O diretor da AUIN, Saulo Guerra, enfatiza o caráter multidisciplinar do trabalho, que envolveu professores de diversas áreas da ciência com o objetivo de preencher uma lacuna no sistema de saúde. E destaca a possibilidade de que se torne um exemplo de sucesso na conexão entre a ciência produzida na universidade e a indústria. “Quando você tem uma tecnologia com o potencial de resolver problemas na sociedade por meio da ciência, é preciso que ela deixe a casa do conhecimento, que é a universidade e, por meio da AUIN, se estabeleça o diálogo com a sociedade”, diz. “Esse é um medicamento de interesse público nacional, são instituições públicas envolvidas, com recursos que vêm dos nossos impostos. Temos de ter responsabilidade sobre tudo que envolve a produção, e sua comercialização é função da indústria”, diz Ferreira Júnior.

Imagem acima: colméia de abelhas da espécie Apis melifera. Crédito: Depositphotos.