“A democracia brasileira saiu um pouco mais forte, mas ainda é frágil. E a extrema-direita está se organizando.”

Decorrido um ano da depredação das sedes do executivo, do legislativo e do judiciário por uma multidão fanatizada, a maior parte da sociedade reafirma seu compromisso com a democracia. Alguns setores, porém, passaram a se solidarizar com os vândalos, chamando-os de “patriotas”. Autor de quatro livros sobre a extrema-direita brasileira, o cientista político Jefferson Barbosa examina os resultados das investigações sobre as causas e objetivos do ataque e analisa seu impacto sobre a institucionalidade política do país.

À medida que se aproxima a data de um ano dos violentos ataques que vandalizaram as sedes do executivo, legislativo e judiciário na Praça dos Três Poderes, em Brasília,  em 8/1/23, o país ainda procura fechar as feridas e retomar o passo da normalidade institucional. A realização de um ato memorial na capital federal, na próxima segunda, com a previsão de discursos pelos líderes dos poderes e a presença de governadores e outras autoridades, servirá tanto para reafirmar a saúde e a soberania do regime democrático quanto como exortação a que nunca se esqueça a gravidade do que ocorreu naquela triste tarde. 

As cenas de manifestantes vestindo verde-amarelo enquanto desfilavam por Brasília entoando palavras de ordem, invadiam a Praça dos Três Poderes, acuavam policiais, destruíam o patrimônio público e celebravam a conspurcação do coração simbólico da nossa democracia tornaram-se, instantaneamente, parte indelével da história e da memória políticas brasileiras. Cerca de 200 pessoas foram presas na região da Praça dos Três Poderes no mesmo dia, e 1.957 no dia seguinte, acampadas em frente ao QG do Exército.   

Desde a tarde daquele 8/1 a sociedade brasileira se pergunta o que, exatamente, queriam os vândalos com sua explosão de violência, e mais ainda, como foi possível que ela eclodisse naquele que deveria ser o espaço público mais seguro do país. E o fato é que o caminho para estas respostas tem sido lento e não isento de controvérsias.

 Por um lado, o poder judiciário tem conduzido em segredo investigações procurando identificar os protagonistas dos ataques, mas também os seus articuladores e seus financiadores. Em paralelo, foram instituídas ao longo do ano duas comissões parlamentares de inquérito para investigar os eventos de 8/1, uma na Câmara Legislativa do DF e outra no Congresso Nacional, cujos trabalhos já se encerraram e que produziram relatórios públicos, produzidos após a coleta de dezenas de depoimentos.  Paradoxalmente, apesar dos fatos novos que vieram à tona, uma parte da sociedade passou a expressar abertamente solidariedade aos indivíduos investigados e punidos pelos ataques de 8/1. Nestes círculos, eles passaram a ser chamados de patriotas, e há quem defenda um projeto de lei para anistiá-los de qualquer pena.

Desde 2007, o cientista político Jefferson Barbosa, professor da Faculdade de Filosofia e Ciência Política da Unesp, campus de Marília, pesquisa a extrema-direita no Brasil, tendo escrito ou organizado quatro livros sobre o tema. Ao longo do ano, ele acompanhou os desdobramentos e as investigações sobre os ataques, o que incluiu um mergulho nas mais de 1.300 páginas do relatório final da CPMI dos Atos de 8 de janeiro. Em entrevista ao Jornal da Unesp, ele comenta os resultados e as lacunas das investigações, analisa o surgimento de uma narrativa alternativa que procura transformar, a posteriori, os vândalos em “patriotas” e aponta as conexões com eventos semelhantes, como o ataque ao Capitólio nos EUA, dois anos antes. “Há uma dinâmica internacional de tentativa de fortalecimento de agendas políticas muito excludentes, muito antidemocráticas, que em diversos países, como aconteceu no Brasil, acabam descambando em violência”, diz.

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Na próxima semana, completa-se um ano dos ataques de 8/1. O que as investigações que transcorreram ao longo destes doze meses nos mostraram sobre os eventos daquele dia? Sabemos o que aconteceu?

Jefferson Barbosa: Sabemos, pelo menos, quais foram os fatos mais visíveis. Esses fatos visíveis revelam o grau de organização que alcançou essa base de militância radicalizada. O 8/1 não pode ser pensado apenas como um dia, um acontecimento, e sim como um processo de organização de tendências da extrema-direita brasileira que vem se fortalecendo e se aglutinando nos últimos dez anos. Durante todo o período do governo anterior, houve um grande discurso de descredibilização das instituições como TSE e STF, que era divulgado pelo próprio presidente. Esse discurso fomentou, nessa base de militantes, um sentimento de desconfiança dessas instituições e das leis, e contribuiu até para uma perspectiva de revisionismo histórico.

Esse artifício do revisionismo está sendo empregado por intelectuais de extrema direita que fomentam uma releitura de fatos antigos a partir dos seus interesses. Sob esta perspectiva revisionista, havia quem dissesse que um ataque seria um movimento legítimo, uma reação a uma eleição fraudada.

Essa máquina de fake news e propaganda está apresentando esses eventos extremamente nocivos, denunciados pela mídia e investigados pelas forças de segurança —  os ataques aos palácios dos três poderes, o grau de violência dos militantes, os atentados terroristas que antecederam os ataques —, como um processo em que os nacionalistas estariam lutando para salvar as instituições da corrupção, do comunismo, e de um partido que consideram como autoritário.

Esse discurso de descrédito das instituições, e do partido que encabeçava a coalizão vitoriosa nas eleições, sedimentou uma visão deturpada da realidade. E, acima de tudo, havia uma interpretação revisionista da história que ao longo de quatro anos servia para estimular a ação desses grupos. Naquele período, em datas expressivas, como o 7/09 e o 15/11, o presidente e seus apoiadores proferiam discursos inflamados, defendendo a necessidade de salvar o Brasil do comunismo e do perigo da esquerda. E o PT está longe desse perfil, o que ele apresenta é uma agenda levemente social-democrata. Mas na lógica adotada pelo discurso da extrema-direita, tanto no Brasil como no exterior, é necessário que se crie a figura de um inimigo. É a lógica adotada pelo teórico nazista Karl Schimtt: a sociedade é organizada de forma dualista, em amigos e inimigos.

Os ataques foram o ápice de um processo de mobilização da extrema-direita brasileira. Antes, no dia 12/12, data em que ocorreu a diplomação de Lula, uma série de carros foram incendiados em Brasília. Na mesma época, torres de energia estavam sendo atacadas, principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. No dia 24/12, a tentativa de uma explosão de um carro bomba no aeroporto de Brasília.  Esses fatos são de conhecimento comum por parte de quem se informa pelos jornais. Mas a CPMI de 8 de janeiro trouxe dados mais importantes. O senhor George Washington Sousa, detido pela tentativa de explosão no aeroporto de Brasília, tinha em sua posse diversas armas, munições, recibos de pagamentos de contas com empresas que fazem parte dessa rede que também proporcionava as condições materiais para que ocorresse o levante.

Mas qual era o objetivo do ataque, se é que havia algum?

Jefferson Barbosa: Houve uma tentativa de golpe de estado. Foi encontrada a minuta do golpe, e não apenas no celular do [tenente-coronel e ex-assessor de ordens de Jair Bolsonaro] Mauro Cid. Estava também de posse de pessoas importantes da administração do Distrito Federal. Isso mostra que havia uma preparação, que foi comprovada pela investigação das forças de segurança, para uma tentativa clara de golpe de estado.

Então o fato que se coloca é: houve uma tentativa de golpe de estado com movimentações de caráter terrorista e uma grande mobilização em nível nacional, que incluiu a chegada de mais de 200 ônibus no dia 8, e a parcimônia com que agiram certas forças de segurança, permitindo inclusive que manifestantes acampassem por dois meses em frente ao QG do exército.  

E essa hecatombe era previsível. Eu resido na cidade de Londrina, PR. Aqui, e em diversas cidades do Paraná, carros de som percorriam a cidade nos meses de novembro e dezembro transmitindo mensagens assim: ‘patriota, lute pelo seu Brasil. Venha conhecer os acampamentos, vamos salvar o Brasil’. E lá, nesses acampamentos, havia um ambiente permanente de discursos, reuniões, troca de informações. Na véspera do dia 8, saíram daqui quatro ônibus para Brasília. Inclusive, a primeira pessoa condenada pelo financiamento das caravanas é daqui de Londrina. Então, é preciso reconhecer que houve todo um preparativo, um planejamento ao estilo das táticas paramilitares. Mas,  é claro, nem todos que estavam lá eram terroristas.

E o que ainda não foi bem explicado com relação ao que se passou naquele dia?

Jefferson Barbosa: Os dados do relatório da CPMI do Congresso Federal mostram que muitos dos ativistas que estiveram nos ataques tinham conhecimento da estrutura arquitetônica dos prédios, de locais estratégicos, dispositivos de energia e água. Inclusive de objetos de valor ou relevância, e até armas, muitos dos quais foram roubados. O que me parece é que algumas lideranças desses invasores tinham conhecimentos precisos. Agora, é necessário manter o equilíbrio das instituições, e  mediar também no campo das Forças Armadas e da segurança pública. Me parece que o governo e as forças policiais, como a PF, PGR, avançam gradualmente na investigação sobre esses militares e policiais envolvidos. Temos apenas um que foi atingido diretamente, o G Dias, mas os processos estão em andamento.

Na alta cúpula de Brasília, muitos foram detidos e alguns afastados das suas funções, enquanto as investigações caminham. Então, a coleta de dados, o julgamento e a penalização de membros das forças de segurança, seja do Exército, das forças policiais ou de inteligência, ainda estão em andamento. Precisamos ter calma para não incorrer em sentenças ou explicações prontas quando o processo ainda levará algum tempo.

Um ponto interessante é que o governo age com cautela para não projetar a imagem de que está se antagonizando ao Exército, às Forças Armadas. É preciso levar isso em consideração, a diplomacia para lidar com essas diversas forças políticas. De fato, me parece que o governo tem razão. Não é correto assumir que o Exército e a PM do DF estavam do lado dos manifestantes. Esse apoio veio de parte das forças, não foi generalizado. Nesse caso, nenhuma explicação pode ser monolítica. É necessário atentar às dimensões desse acontecimento e às investigações dos envolvidos.

Logo no dia seguinte, vimos aquela imagem do presidente Lula na Praça dos Três Poderes acompanhado de todos os governadores dos estados simbolizando uma união e uma condenação unânime aos atos do dia 8. Mas estamos chegando a esta data com os vândalos sendo chamados de patriotas por uma parte da sociedade. Como e por que passamos de uma condenação unânime para o uso desta palavra patriotas?

Jefferson Barbosa: Após o ataque, nem toda a opinião pública criticou os golpistas. Durante toda a campanha presidencial, a grande mídia esteve em oposição à candidatura de Bolsonaro. Observamos os vários ataques dele a jornalistas e aos meios de comunicação. Então, a imagem apresentada pelos grandes veículos foi que a sociedade brasileira se colocou de forma contrária aos atos. Mas não devemos nos iludir. A base bolsonarista mais fiel entendeu aquilo como um momento de triunfo. Aqueles que foram a Brasília, seus familiares, e os eleitores mais identificados com uma agenda política de extrema-direita, ou de um ultraliberalismo ou de um neoconservadorismo ativista, estes não se colocaram de forma contrária. E foi possível observar isso também nos pronunciamentos de intelectuais e jornalistas nos canais relacionados ao governo anterior, e também a jornalistas da grande mídia com um perfil conservador.

Aqueles que foram para Brasília e participaram da depredação eram pessoas comuns. Pessoas de meia-idade, sem passagem pela policia, poucos eram vinculados a partidos políticos. Eles foram a base mobilizada por sentimentos. Muitos dos que financiaram aquele movimento nem estavam lá. O que resta agora a esta base de militância é transformar esta interpretação dos fatos em capital político. Por exemplo, as tornozeleiras são símbolo de capital politico. Eu falava hoje com um orientando  de mestrado que estuda o bolsonarismo em sua pesquisa, na Unesp de Marília. Ele mora em Tupã. Ele contava como uma das organizadoras da caravana que saiu de Tupã para ir aos atos em Brasília foi presa, já deixou a prisão e diz que se orgulha de usar tornozeleira. As tornozeleiras tornaram-se símbolos de guerra, e o que diz inclusive o relatório da CPMI.

E essa transformação dos fatos em capital político não para por aí. A recente morte de um ativista bolsonarista que estava detido na penitenciária da Papuda é um fator extremamente proveitoso para a construção de uma narrativa favorável aos manifestantes golpistas. Com certeza, com o avanço das investigações, mais elementos serão detidos, e isso também será transformado em capital político.

E não devemos nos espantar que eles se intitulem patriotas. Veja, Getúlio Vargas deu o golpe do Estado Novo a partir de uma retórica nacionalista de proteção do Brasil contra o perigo do comunismo. Durante a ditadura militar, os seus apoiadores se colocavam como patriotas e nacionalistas. Dizia-se que a ditadura era necessária para a proteção do Brasil. Então essa nomenclatura não é algo novo, sempre que os grupos autoritários   promovem rupturas institucionais, utiliza-se a lógica e o discurso do patriotismo. E não somente no Brasil. Os fascistas da Itália, no passado, e os trumpistas de hoje são tendencias políticas com diferenças importantes, porém adotam uma retórica nacionalista. Mas não é qualquer nacionalismo: é um nacionalismo chauvinista, que é agressivo, violento, basicamente fanatizado.

A diferença entre as tendências políticas de caráter autoritário, que também são antidemocráticas, e aquelas de caráter fascistizante é que nestas a mobilização politica é muito maior. É necessário envolver os participantes, despertar neles sentimentos, e para isso são empregados dispositivos psicossociais  de estímulo à base da militância. O relatório da CPMI do 8/1 fala disso em seus capítulos iniciais; que todo esse aparato de mídia revisionista, e a ação de intelectuais como Olavo de Carvalho e de lideranças como os membros da família Bolsonaro davam a ideia de que havia em andamento uma luta para salvar o Brasil. Uma característica dos grupos de extrema-direita é a instrumentalização de um discurso nacionalista radicalizado. Por isso o termo patriotas.

Não devemos nos surpreender com esse acontecimento depois que ocorreu a invasão do Capitólio, nos EUA. Inclusive, mentores da direita norte-americana, como Steve Bannon estiveram em muito próxima relação com a família Bolsonaro e com a família Trump. O The Movement, criado por Steve Bannon, tem Eduardo Bolsonaro como representante na América do Sul, e o próprio Eduardo Bolsonaro, pelo seu think tank chamado Instituto Conservador Liberal, já trouxe para o Brasil Javier Milei, Jose Kast, e o filho de Trump, Trump Jr, participou de um congresso promovido pelo instituto de forma virtual.

Essa retórica da construção do nacionalismo, dos patriotas, não é criação somente do bolsonarismo. É uma tendência internacional. Vide a primeira-ministra Georgia Meloni na Itália. As tendências radicalizadas no Brasil estão conectadas com grupos congêneres no exterior. E há uma dinâmica internacional de tentativa de fortalecimento dessas agendas políticas muito excludentes, muito antidemocráticas, que em diversos países, como aconteceu no Brasil, acabam descambando em violência.

Muitas pessoas, ao analisarem os ataques do dia 8/1, ressaltam que, mesmo que tenha ocorrido uma tentativa de golpe, ela fracassou. Por pior que tenha sido o comportamento dos militares, eles não transgrediram os limites da democracia. Mas, ao mesmo tempo, se um ano depois temos uma fatia da população mais indignada com a repressão aos vândalos do que com o quebra-quebra, isso não mostra que a democracia brasileira saiu bem mais fraca desse episódio?

Jefferson Barbosa: Essa é uma pergunta delicada. Não é o momento para uma resposta definitiva. Me parece que ela saiu mais fortalecida, porque não chegamos a dezembro de 2023 com Bolsonaro ainda ocupando a Presidência da República, sob a alegação de que as urnas e as eleições foram fraudadas. Estamos numa situação positiva, penso eu. Os golpistas foram contidos. É só uma parte da população brasileira que tem essa visão de que os detidos e investigados estavam corretos. E o Brasil continua dividido entre apoiadores e críticos dos ataques, e os críticos, que os condenam, são maioria, indo desde partidos progressistas, de centro-esquerda, até políticos, intelectuais e empresários de centro-direita e de direita. E mesmo muitos dos que votaram no Bolsonaro não concordaram com os ataques. Devemos pensar que se trata de um grupo mobilizado, mas que não é maioria.

Temos um cenário delicado. Acredito que a democracia saiu um pouco mais fortalecida depois dos ataques de 8/1, se mantém estável, mas de certa forma continua frágil. Isso tem relação também com o grau de violência em outras dimensões da sociedade brasileira: a desigualdade econômica, a criminalidade, a desigualdade social, a insatisfação com as políticas públicas… Entendo que todos esses problemas trazem, historicamente, a ideia de que a nossa democracia é frágil. Na verdade, ela sempre foi frágil. 

Imagem acima: reprodução da TV Brasil.