Uma das mais destacadas intelectuais em atividade no país, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, foi a convidada para a abertura da 35ª edição do Congresso de Iniciação Científica da Unesp (CIC Unesp), que teve como eixo temático “Desafios na produção do conhecimento: democratização e diversidade”.
Em sua conferência, a historiadora compartilhou com a jovem audiência lembranças do tempo em que fez iniciação científica, pesquisando a escravidão no território hoje pertencente ao município de Ilhabela, no litoral norte paulista. À evocação, seguiram-se falas firmes e assertivas sobre a dívida histórica com a população negra que tem o Brasil, último país a abolir a escravidão mercantil.
Nesta Semana da Consciência Negra, marcada pelo feriado de 20 de novembro, a antropóloga relacionou a data, que registra a morte de Zumbi dos Palmares, à efeméride da Proclamação da República, comemorada em 15 de Novembro, abordando a desigualdade secular que ainda mantém pretos e pardos nas franjas da sociedade nacional. “Há muito entre esses dois feriados”, disse Lilia Schwarcz. “É preciso pensar que república é a nossa. A nossa democracia não acabou [a tarefa] de incluir”, disse.
Depois da palestra, a autora dos best-sellers “As Barbas do Imperador” e “Brasil: uma biografia” tirou muitas fotos com estudantes, conversou com colegas docentes e atendeu pacientemente a pedidos de autógrafos de um público de cientistas iniciantes dos mais diversos. O 35o CIC Unesp reuniu, pela primeira vez, alunos de iniciação científica das outras duas universidades estaduais paulistas, USP e Unicamp, que trocaram experiências com a maioria de unespianos. “A ciência nos fará sempre melhores. Não importa a área em que estão (pesquisando). O importante é perseguir este sonho”, afirmou a palestrante.
Confira abaixo a conversa de Lilia Schwarcz com a reportagem do Jornal da Unesp, centrada nas questões sobre cotas sociais e raciais na sociedade brasileira.
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A senhora já se posicionou de forma contrária ao sistema de cotas nas universidades no início do debate, muito tempo atrás. Hoje, classifica as cotas como o maior sistema de reparação da história do Brasil. Como está enxergando a discussão sobre o futuro das cotas sociais e raciais?
Lilia Schwarcz: A palestra que eu dei hoje tem muito a ver com a minha mudança de posição. No começo, eu acreditava muito que só existia uma raça, a raça biológica. É claro que só existe uma raça biológica, mas a sociedade produz raças, raças sociais. Então, por isso antes eu não era a favor de cotas, foi bem no começo da discussão. Logo virei e mostrei que eu estava errada. Acredito que cientistas sociais fazem isso na vida, reconhecem seus erros, aprendem com a história, aprendem com o mundo. E eu mudei totalmente e tenho me pronunciado muitas vezes neste sentido.
O sistema de cotas é o maior movimento de reparação, porque é preciso ‘desigualar’ para depois igualar no Brasil. Como eu mostrei na palestra, o Brasil é um país muito desigual no que se refere à questão racial. Só desta maneira, que parece uma maneira um pouco artificial, que a gente vai mudar este ambiente. É preciso que a gente continue com essa política e adote outras. Como, por exemplo, a manutenção dessas pessoas na universidade, porque não é fácil também permanecer. Há pouco, conversava com uma estudante negra e ela falou para mim, emocionada, que para ela era muito difícil ser uma estudante negra num grupo tão branco. Então, temos muitos lados a aperfeiçoar, como o nosso currículo… Mas o caminho é bom.
A senhora é a favor da adoção de cotas também na pós-graduação?
Lilia Schwarcz: Sim. No meu departamento, que é o Departamento de Antropologia da USP, nós já implementamos cotas na pós-graduação. Eu acho que essa é uma discussão que precisa crescer e se estabelecer. Temos que tirar critérios como a exigência de língua estrangeira. As pessoas podem aprender uma língua estrangeira depois, se o critério for este, essas pessoas não vão entrar. E combinar cotas sociais com cotas raciais. Na verdade, estamos falando do mesmo universo de pessoas. As nossas cotas sociais vão basicamente bater nesta população negra, composta por pretos e pardos.
Já são visíveis as mudanças no dia a dia da universidade provenientes do sistema de cotas?
Lilia Schwarcz: Vejo no meu trabalho, para não falar dos outros. Como eu disse na palestra, a prática é o critério da verdade. Eu me vali muito do ativismo negro dos meus alunos que entraram. Eles chamaram a atenção para a importância de mudarmos o currículo. Vou lhe dar um exemplo: eu dava um curso chamado “História do Pensamento Social Brasileiro”, que não tinha nenhum negro, a não ser Lima Barreto, que é um autor que eu estudo há muito tempo. Temos que mudar. De alguma maneira, aprender a ver e aprender a enxergar.
Há pressões e manifestações públicas a favor da nomeação de mais pessoas negras no primeiro escalão de cargos públicos, como no caso da questão em torno do próximo ministro do Supremo. Como vê este debate?
Lilia Schwarcz: Estou muito imiscuída nessa discussão, para que o próximo (ministro do STF) seja uma mulher negra para atravessarmos os marcadores de raça, de sexo e gênero. É uma questão importantíssima. Defendo as cotas não só com o fim de reparar, e essas são injustiças do nosso passado que têm uma penetração tremenda no nosso presente, defendo que quanto mais diversos formos melhores seremos. Então, numa empresa, você contar com a experiência de pessoas negras, com o que elas trazem, só pode ser muito bom. Numa universidade, você ter pessoas negras na direção pode mudar o nosso olhar. Sou muito favorável por este lado, digamos entre aspas, também muito positivo das cotas.
A senhora já admitiu erros, pediu desculpas em público, sempre se posicionou favorável ao diálogo. Em debates mais acalorados, como é possível aplacar a violência nos discursos?
Lilia Schwarcz: Se nós dermos a nossa subjetividade, se nós mostrarmos as nossas falácias, se mostrarmos que ninguém está acima do erro, como disse a Sueli Carneiro para mim, todo branco tem seu dia de Princesa Isabel. E eu já tive vários dos meus. Acho que a gente ajuda o diálogo, porque acaba mostrando a nossa face, que é uma face de todos nós. Tem dia que nós brilhamos, tem dia que nós estamos terríveis, tem dia que acertamos, tem dia que erramos. E essa é a beleza da humanidade.
Mas isso contrasta com uma dinâmica própria de julgamentos rápidos das redes sociais.
Lilia Schwarcz: Eu não demonizo as redes sociais. Estou lá, como você sabe, e aprendo muito também com as redes sociais. Temos que enfrentar esse lado.
Imagem acima: Fabio Mazzitelli/ACI.