Tese premiada mapeia o tortuoso debate sobre fracking no Brasil

Uso da técnica para extrair gás de xisto e outros recursos energéticos não convencionais contribuiu para diminuir dependência dos EUA da importação de petróleo. Brasil possui a décima maior reserva do gás no planeta, mas ação de frente de oposição, que combina ambientalistas e empresários do agronegócio, já conseguiu convencer prefeitos e governadores a promulgar legislação proibindo sua utilização em centenas de municípios.

A exploração de petróleo e de gás de folhelho por fraturamento hidráulico, conhecida como fracking, é proibida por lei em nada menos do que 391 municípios e dois estados brasileiros, devido aos grandes impactos ambientais a ela associados. Mesmo assim, desde 2013 o Estado brasileiro busca encontrar meios para estimular os primeiros passos da atividade no país, e algumas cidades de pequeno e médio porte já se mostraram interessadas em conhecer melhor os possíveis benefícios que a prática extrativista pode ocasionar, mas outros tantos se opõem frontalmente a esta atividade econômica. Servindo de pano de fundo a estes avanços e recuos, defensores e detratores da técnica se enfrentam na arena da opinião pública, esgrimindo argumentos para defender tanto sua implementação como seu banimento definitivo.

Agora, uma pesquisa de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP, campus de Presidente Prudente, analisou as bases do debate sobre a exploração do gás de xisto – também conhecido cientificamente como gás de folhelho – e o uso do fracking no Brasil. O trabalho recebeu o prêmio de melhor tese em geografia física na 15ª edição do Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia, organizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia.

O gás de folhelho, recurso energético não convencional mais abundante, é constituído majoritariamente de metano, e se forma a partir da decomposição da matéria orgânica acumulada, ao longo do tempo, em áreas formadas a partir da deposição de argila de origem marinha ou de lagos. Nestes lugares, os efeitos da pressão produziram um tipo de rocha nomeada de folhelho, pois lembra um acúmulo de folhas, é nesta rocha sedimentar de baixa permeabilidade que o gás está disposto. A dificuldade de acesso a esse recurso demanda que para sua extração, seja usada uma técnica muito específica, o fraturamento hidráulico ou fracking. Tal método é chamado de não convencional, pois os fluidos não podem ser extraídos valendo-se das conhecidas técnicas de extração de petróleo e gás convencionais. Embora fosse conhecida há décadas, a técnica só começou a ser empregada com intensidade a partir dos anos 2000, nos EUA.

De olho no desenvolvimento das fontes não convencionais de energia, o Departamento de Estado dos Estados Unidos lançou, em 2010, a “Iniciativa Global de Gás de Xisto”. Em 2011, a Administração de Informação de Energia dos Estados Unidos (EIA – na sigla em inglês) publicou um relatório – que foi atualizado em 2013 – com a localização e avaliação das principais reservas globais. O relatório identifica 41 países que possuem um total de 7.299 trilhões de pés cúbicos de reservas de gás de xisto recuperáveis. Dentre os países citados destacam-se a Argentina, apontada como detentora das segundas maiores reservas do gás, e o Brasil, com a décima maior reserva mundial. Graças à exploração desta fonte energética, os Estados Unidos puderam diminuir significativamente sua dependência do petróleo vindo do exterior, e se tornaram um dos grandes exportadores mundiais de gás. A partir da movimentação nos EUA, o interesse pelo gás de xisto e o uso do fracking se difundiram para outras partes do mundo nos anos seguintes.

Exploração de recursos antes inacessíveis

O grande mérito do fracking está em permitir a exploração de fontes energéticas que previamente eram consideradas inalcançáveis, devido às condições do terreno. Em situações favoráveis, a retirada de  petróleo e gás convencionais  é feita através da perfuração de um poço vertical, que se estende da superfície até a camada subterrânea onde se localiza os combustíveis fósseis. Nestes casos, a simples diferença de pressão verificada entre a superfície e o subsolo impulsiona os fluidos que estão depositados na rocha – que apresenta boa permeabilidade – permitindo sua coleta na superfície.

Entretanto, há casos em que as reservas de petróleo e gás estão depositadas sob rochas sedimentares de baixa permeabilidade e argila, impossibilitando sua retirada da forma convencional. É neste contexto que se utiliza o fracking. Nessa técnica, poços horizontais são perfurados – a partir do poço vertical – nos quais são injetados água, areia e produtos químicos em alta pressão, provocando rachaduras, ou fraturas, nas camadas de rochas mais rígidas, tornando-as mais permeáveis, e possibilitando que os recursos energéticos subam para a superfície devido à diferença de pressão (veja arte abaixo). Também podem ser inseridos gases – como propano ou nitrogênio – e ácidos, como o clorídrico. Após a fratura da rocha, parte dos líquidos introduzidos retornam à superfície e são realocados em lagoas de contenção ou poços vazios, os poços sumidouros, a fim de evitar ou minimizar os impactos de uma possível contaminação na superfície e subsolo.

 “Por ora não existe alternativa ao fracking para extrair esses recursos energéticos”, diz o doutor em geografia Alessandro Donaire. Ele é o autor da tese Fracking na nossa terra não!”: conflitos ambientais em torno de recursos energéticos não convencionais no Oeste Paulista e Centro-oeste Paranaense, que foi premiada durante o Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia.

Aqui no Brasil, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) se baseou no relatório da EIA para conduzir, em 2013, uma licitação que permitiu a pesquisa e a extração de recursos energéticos de fontes não convencionais através do fraturamento hidráulico. Um leilão de áreas de interesse foi realizado ,ofertando blocos de terra exploratórios em diversas regiões brasileiras, incluindo áreas na região do oeste paulista e centro-oeste paranaense, ambas conhecidas pela atividade agrícola. No Paraná, nada menos do que 11 blocos foram concedidos para pesquisa e extração à iniciativa privada. Isso não impediu que, em muito pouco tempo, o estado adotasse legislação proibindo o uso da técnica. Já no oeste paulista, 5 blocos foram arrematados.

A perspectiva de que o fracking crescesse no Brasil levou à organização de uma coalizão de opositores. Os primeiros a se levantarem foram cientistas, povos indígenas e ONGs ambientalistas. Dessa movimentação inicial surgiu a organização Não Fracking Brasil, que produz e divulga muitos materiais sobre os perigos da técnica. Em sua tese, porém, Donaire mapeou outro grupo de ativos opositores: os empresários do agronegócio. “Eles mobilizaram o discurso de salvaguarda ambiental, ainda que, na verdade, estavam mais preocupados  em garantir a manutenção de seus interesses econômicos em territórios que dominam há décadas”, explica. A combinação destes atores, guiados por interesses diferentes, resultou em uma pressão muito grande sobre governadores e prefeitos, que postergaram os eventuais planos de permitir a adoção da metodologia, e, em muitos municípios, chegaram a estabelecer uma proibição pura e simples. Além disso, ações civis públicas foram solicitadas pelo Ministério Público Federal na maioria das regiões que tiveram blocos concedidos, o que tornou nulos, na prática, os efeitos da 12ª Rodada de Licitações, que concedia áreas para exploração dos recursos. Tal situação pode ser alterada em instâncias superiores, já que as empresas vencedoras e a ANP recorreram para reverter a decisão.

Essas proibições, porém, nem de longe colocaram uma pedra no assunto. Basta lembrar que, em 2020, o governo de Jair Bolsonaro chegou a aprovar o lançamento de um programa de estímulo à exploração de petróleo em jazidas não convencionais no Brasil, mirando particularmente o gás de xisto. Denominado programa Poço Transparente, seu objetivo principal consiste em mostrar a segurança operacional da atividade para a sociedade e, assim, quebrar as resistências e fomentar o início dessa atividade no país. O projeto traz, inclusive, a possibilidade de conceder incentivos fiscais, como a cobrança de alíquotas menores a quem quisesse apostar em novas fontes. No entanto, o mandato de Bolsonaro terminou antes que o programa produzisse resultados relevantes, e até o momento o projeto ainda não foi efetivado.

Donaire sustenta que há bons motivos  para defender a proibição do fracking. Entre eles está o consumo exorbitante de água necessário para operar um posto neste sistema,  dados sugerem que pode chegar a incríveis 15,1 milhões de litros, e resultar na contaminação do solo, de aquíferos e nascentes superficiais e subterrâneas nas proximidades. Outros problemas envolvem a poluição sonora decorrente do uso das máquinas, intenso tráfego de caminhões  e a ocorrência de terremotos nas áreas ao redor. “E há também o surgimento de conflitos com os grupos que vivem nos territórios onde a exploração acontece, como agricultores e povos indígenas, entre outros”, diz Donaire. “Além disso, a vida útil de cada poço é muito pequena, entre 5 e 10 anos. Por isso, é preciso perfurar vários poços, senão o empreendimento se torna inviável economicamente”, explica.

O uso do fracking na Argentina

Para conhecer de perto a realidade da indústria do fracking, o geógrafo conduziu trabalho de campo na Argentina, o país da América Latina onde esta indústria está mais desenvolvida. Historicamente, a Argentina sempre foi dependente de recursos fósseis, até por possuir grandes reservas de petróleo e gás em seu território. Após a publicação do relatório da EIA – no qual a nação teve muito destaque – as autoridades se interessaram em abrir frentes de exploração energética em regiões onde, anteriormente, isto era tecnologicamente impossível.

“A partir de 2010, o governo argentino começou a fazer estudos com o objetivo de descobrir a potencialidade do país nesse aspecto, sempre alegando, nos discursos oficiais, visar o desenvolvimento territorial e a soberania energética”, diz o geógrafo.

Bombas de extração de petróleo no deserto na Patagônia. Crédito: Alessandro Donaire.

O governo argentino, com o apoio de petroleiras, iniciou em 2013 a exploração do gás de folhelho na Patagônia, especificamente na região de formação geológica conhecida como  Vaca Muerta, na Bacia Sedimentar de Neuquén. A iniciativa impactou positivamente a economia na região, resultou na exportação de gás de folhelho e outros tipos de recursos não convencionais para outros países e abriu novos postos de trabalho. Porém, esses benefícios não chegaram necessariamente à vida das pessoas que residiam nos territórios onde ocorria a extração.

“A atividade petrolífera exige uma mão de obra mais qualificada. As populações mais pobres, sem essa escolaridade, não conseguem emprego. Durante a tese, entrevistei uma senhora argentina que ficou muito feliz ao ver que a atividade petroleira estava chegando à região em que ela morava. Mas, quando seus filhos e vizinhos buscaram emprego, foram recusados por falta de qualificação. Nesse momento, ela percebeu que a prática estava gerando mais problemas para a comunidade do que oportunidades”, diz Donaire.

Proibido no PR, permitido em SP

Mesmo assim, o interesse de certos prefeitos e de outras lideranças políticas, tanto de direita quanto esquerda, em explorar as eventuais reservas de gás e petróleo que existam nos seus territórios mantém o debate vivo e muito longe de alcançar algum consenso, seja no sentido de implementá-lo ou de estabelecer uma proibição definitiva em âmbito federal. Para identificar as diferentes atitudes em relação ao tema, Donaire analisou dois estados contíguos, Paraná e São Paulo, que adotaram posições antagônicas.

No estado de São Paulo, a proibição chegou a ser  aprovada na Assembleia Legislativa. Porém o governador à época encontrou uma forma de contorná-la, alegando que se tratava de uma medida inconstitucional, uma vez que somente o poder federal poderia legislar acerca dos recursos energéticos encontrados em subsolo. “Não seria conveniente para o estado de São Paulo vetar a exploração de um recurso que poderia futuramente reverter em dividendos e desenvolvimento territorial”, diz Donaire. “Ainda mais em se tratando da possibilidade de que a exploração do gás fosse conduzida em regiões do estado que há décadas enfrentam dificuldades econômicas.”

Porém, no estado vizinho do Paraná, foi aprovada uma legislação anti-fracking com um texto-base bastante similar ao que foi aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo. Donaire diz que a lei foi aprovada por pressão do agronegócio, muito presente e influente no centro-oeste paranaense, que buscava assegurar o domínio econômico sobre as terras da região, hoje majoritariamente aproveitadas para a produção agrícola. Ele diz que o fato de que uma mesma legislação tenha sido aprovada em um estado e vetada em outro vizinho mostra que o debate sobre fraturamento hidráulico no Brasil se dá no contexto de uma disputa que opõe interesses políticos e econômicos variados, e que o lado vitorioso até agora é aquele que conseguiu mobilizar maior influência política. Esse quadro de disputa entre poderosos grupos econômicos e ideológicos leva o pesquisador a apostar numa continuidade do status indefinido da exploração do gás de xisto no Brasil nos próximos anos, “pelo menos até que o Supremo Tribunal Federal seja provocado e dê a palavra final”, analisa.

Imagem acima: Depósito de rejeitos gerados pela extração do gás de xisto na cidade de Añelo, Argentina. Crédito: Alessandro Donaire.