Se Castro Alves cantasse hoje o seu poema “O navio negreiro: tragédia no mar”, neste dia da Consciência Negra, como seria? Esta é a pergunta que está na chamada do livro de Slim Rimografia (“O Navio Negreiro”, Panda Books, 2011), rapper paulista, cujo título retoma o famoso poema abolicionista publicado pela primeira vez em 1869 no jornal literário carioca O Miosótis, republicado como folheto em 1880, para ser incluído na edição de Os Escravos, livro central para a campanha abolicionista que resultou na Lei Áurea de 1888 e que comemora, este ano, 140 anos. Como seria?
Será que o ouviríamos com o som percusivo, meio rap, meio samba, como cantaram Caetano Veloso e Maria Bethânia no disco Livro de 1997? Ou só com a voz de Bethânia no disco ao vivo Diamante verdadeiro, do ano seguinte? E, neste caso, fazendo que os “heróis do Novo Mundo” anunciados pelo poeta baiano venham seguidos pelo “índio” da canção de Caetano, que desce de uma estrela colorida “depois de exterminada a última nação indígena”?
Ouviríamos, além disso, o mesmo texto ou variações dele, com recortes, deslocamentos? A banda O Rappa prefere nos dizer que “todo camburão tem um pouco de Navio Negreiro”. O próprio Slim Rimografia faz movimento semelhante ao transformar a embarcação em viatura policial:
O navio hoje é barca sem vela, só sirene
Navegando na estrada, hoje volante, ontem lemes
O porão é chiqueiro de camburão
Em ambos, em O Rappa e Slim Rimografia, a tentativa de atualizar o poema de Castro Alves, sabendo, contraditoriamente, de sua triste atualidade. Em dados de 2021, negros representam 80% das mortes violentas de jovens no Brasil. Entre 2021 e 2022, negros e pardos foram 84% das vítimas de intervenções policiais, segundo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O camburão, bem como o navio, não são metáforas. São formas visíveis de uma violência física que vem no bojo do que Milton Santos chamou de “cidadanias mutiladas”: no acesso à moradia, à educação, à saúde, ao trabalho digno, à justiça.
O livro Os Escravos é, em grande medida, um retrato disso. Com uma difusão impressionante — há pelo menos cinco edições circulando hoje; houve inúmeras a partir de 1883, com vários fragmentos publicados em edições sucessivas de A Cachoeira de Paulo Afonso — não traz apenas as marcas da violência por meio de temas como o assassinato, o suicídio, o infanticídio. Denuncia as formas mais perversas de desagregação coletiva e familiar em poemas como “A mãe do cativo” ou “A criança”, quando o eu lírico diz para esta: “Perdeste tua mãe ao fero açoite”. Cede a voz poética à enunciação dos escravos desterrados em poemas como “Canção do violeiro”, “A canção do africano” ou “Tragédia no lar”, quando um deles afirma: “Eu não tenho mãe nem filhos,/ Nem irmão, nem lar, nem flores”. Questiona os símbolos da nacionalidade de um país cuja independência havia sido recém proclamada, em versos como “Existe um povo que a bandeira empresta/ P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!” de “O navio negreiro”, ou na epígrafe tomada de empréstimo a Tomás Ribeiro que está no poema “América”:
Acorda a pátria e vê que é pesadelo
O sonho da ignomínia que ela sonha!
Exalta, ainda, a vingança à ordem senhorial ou a revolta, em poemas como “Saudação a Palmares”, quando afirma “Salve! Região dos valentes”. Jamil Almansur Haddad, no estudo mais importante consagrado ao poeta, intitulado Revisão de Castro Alves (1953), lembra-nos desse caráter revolucionário do poeta baiano ao constatar o seu interesse, assim como de Álvares de Azevedo, pela figura de Pedro Ivo, líder da Revolução Praieira, a quem ambos dedicaram poemas. Em Castro Alves, ele é mencionado no livro Espumas Flutuantes de 1871 ao lado de Robespierre e Danton, personagens da Revolução Francesa:
E eu disse: Silêncio, ventos!
Cala a boca, furacão!
No sonho daquele sono
Perpassa a Revolução!
Este olhar que não se move
‘Stá fito em — Oitenta e Nove —
Lê Homero — escuta Jove…
— Robespierre — Dantão.
Foi no jornal O Tribuno editado por Borges da Fonseca, aliás, outro líder da Revolução Praieira e um dos principais propagandistas dos ideais republicanos, que Castro Alves publicou em 1866, em resposta à prisão do editor, o poema “O Povo ao Poder”, que traz alguns de seus versos mais conhecidos:
A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor.
São questões — o abolicionismo, a liberdade de imprensa — às quais veríamos somarem-se outros temas caros à revolução de Pedro Ivo, como o voto livre e universal. Numa alocução recolhida por Jamil Almansur Haddad, o poeta teria afirmado: “A terra que realizou a emancipação dos homens, há de realizar a emancipação das mulheres. A terra que fez o sufrágio universal não tem o direito de recusar o voto da metade da América”.
Foi sobretudo a poesia abolicionista que justificou, entretanto, a notável recepção de Castro Alves. Em vida, foi recebido por José de Alencar e Machado de Assis em visita ao Rio de Janeiro. Teve duas montagens de sua peça intitulada Gonzaga ou A Revolução de Minas, na Bahia e em São Paulo, que relata a história da inconfidência e a de dois escravos, pai e filha, separados pela escravidão, peça que Machado disse ser “com certeza uma invejável estreia”. Joaquim Nabuco, por sua vez, fez do poeta de “O navio negreiro” um de seus interlocutores em O abolicionismo. Dedicou-lhe ainda, em 1873, dois anos após a sua morte precoce, com apenas 24 anos, três artigos publicados no jornal A Reforma, reunidos em livro nesse mesmo ano. Embora não tenha deixado de observar “erros”, por assim dizer, em sua poesia, como o uso exagerado da antítese, viu em Castro Alves a glória de “ter posto sua inspiração ao serviço da liberdade e, em particular, da emancipação dos escravos”, assim como a “ideia republicana”: “dizem que ele era republicano; eu creio que o era no coração”.
Antonio Candido, num artigo intitulado “Radicalismos”, observou um movimento temporário da reflexão de Joaquim Nabuco, nesses anos de militância abolicionista, que está presente em Castro Alves. Viu como a ideia de povo para o autor de O abolicionismo, em contraste com parte do pensamento político anterior, passou a corresponder à “totalidade da população, branca ou negra, livre ou escrava, rica ou pobre, com o direito de se manifestar e de fazer as leis adequadas aos seus interesses, que são os interesses gerais”. Observou em Nabuco, ainda, uma crítica ao latifúndio bem como a ideia de que a abolição da escravidão seria o começo de uma grande reforma social. Trata-se de um movimento mais amplo de crítica política, fruto da efervescência em torno da Faculdade de Direito do Recife, que contou com figuras fundamentais para pensamento socialista brasileiro, como Antônio Pedro de Figueiredo. E que fez da poesia um modo de intervenção pública, de ação política, em sintonia como a ideia de missão civilizatória que caracteriza parte da poesia romântica. Segundo Jorge Amado em Abc de Castro Alves, livro de 1941:
“Os estudantes veem que nesse meio de século alguma coisa que existe e que até então era forte e poderosa estremece nos seus alicerces. A palavra dos poetas e dos tribunos é como o vento que sacode e balança até às raízes a árvore de tudo que é tirania.“
Lembrar de Castro Alves e do livro Os Escravos, é, portanto, lembrar dessa ação mais ampla, de pressões sociais, de outras personagens como José do Patrocínio, jornalista da Gazeta de Notícias que fundou, ao lado de André Rebouças, a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão em 1880. Ou de Luís Gama, que auxiliou judicialmente na alforria de inúmeros escravos, autor de versos como “Meus amores são lindos, cor da noite/ Recamada de estrelas rutilantes”. Permitem que vejamos ou saibamos que a história se fez também de “outros navios”, mais ou menos visíveis, como no título da exposição recente do fotógrafo Eustáquio Neves. São lugares de uma memória difícil, tramada por apagamentos, cortes, sobreposições, conforme indicadas na série “Retrato falado”, em que Eustáquio busca reconstruir a imagem do avô, ausente de todos os álbuns de família. Num deles, há navios que cruzam o oceano no lugar onde deveria haver um rosto. E é como se nos lembrasse que há, em diálogo com a canção de Slim Rimografia, ainda em diálogo com Castro Alves:
(…) um pouco de navio negreiro
embaixo de cada viaduto
em cada lágrima derramada,
em cada mãe que veste luto
(…) no reflexo do espelho
dos que lutaram e morreram.
(…) Tem um pouco de navio negreiro
em cada conquista, em cada vitória
na pele, na memória,
na minha e na sua história.
Pablo Simpson é professor do Departamento de Letras Modernas do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp, campus de São José do Rio Preto.
Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.
Imagem acima: Série Retrato Falado, de Eustáquio Neves.