Eleição de Milei com mais de 55% dos votos válidos expressa descontentamento do povo argentino com política tradicional

Especialista em relações internacionais da Unesp analisa vitória do candidato ultraliberal nas eleições presidenciais do país vizinho e questiona expectativas de que ele se mostre mais moderado como governante do que como candidato. “Nos casos de Trump, nos EUA, e de Bolsonaro, no Brasil, ambos não foram contidos pelo peso dos cargos. Na verdade, as instituições que deveriam contê-los se tornaram mais radicalizadas”, diz.

Com 55,69% dos votos válidos, contra 44,30% dados ao segundo colocado, o candidato de direita Javier Milei, da coalizão La Libertad Avanza, venceu o 2º turno das eleições presidenciais daArgentina em 19/11. O libertário derrotou o representante peronista e atual ministro da economia argentino,  Sergio Massa, do Unión por la Patria. A posse do novo mandatário será em 10 de dezembro, sucedendo o atual presidente Alberto Fernández. Javier Milei será o 12° presidente em 40 anos de democracia na Argentina. Massa reconheceu a derrota nas eleições presidenciais e ligou para dar os parabéns a Javier Milei.

Milei votou em Almagro, bairro de Buenos Aires, acompanhado por sua irmã Karina Milei. Ao chegar ao local de votação,  criticou a campanha de seu adversário. “Estamos muito satisfeitos, apesar da campanha de medo e suja que fizeram contra nós”, declarou. Na reta final da corrida eleitoral do 2º turno, o candidato peronista divulgou uma série de comerciais para estimular o medo contra Milei. O ultraliberal rebateu a campanha e divulgou seu último comercial eleitoral com o slogan utilizado pelo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva em 2022: “A esperança vence o medo”.

Ainda no próprio domingo, Milei fez seu discurso e disse que iniciava “a reconstrução da Argentina”. “Hoje começa o fim da decadência Argentina. Hoje começamos a virar a página. Hoje termina o modelo do Estado onipresente e empobrecedor.”

Por várias vezes, Milei disse representar os argentinos insatisfeitos com a instabilidade econômica no país. A Argentina tem uma inflação anual de 142,7%, juros de 133% ao ano e quase metade da população na linha da pobreza ou abaixo dela.

Durante sua campanha, adotou um tom agressivo contra adversários e autoridades de dentro e de fora de seu país que não compartilham de suas ideias. Autodeclarado “anarcocapitalista”, no passado exibiu um discurso bastante inflamado e defendeu propostas polêmicas, como a liberação da venda de órgãos humanos, o fechamento do Banco Central, a dolarização da economia argentina, a desregulamentação do porte de armas, a militarização das prisões do país e a extinção do Ministério da Educação, dentre outras.

Após o resultado das eleições, Milei foi parabenizado por chefes de Estado de diferentes partes do mundo. Sem citar o nome de Milei, Lula parabenizou o novo governo nas redes sociais: “A democracia é a voz do povo, e ela deve ser sempre respeitada. Meus parabéns às instituições argentinas pela condução do processo eleitoral e ao povo argentino que participou da jornada eleitoral de forma ordeira e pacífica. Desejo boa sorte e êxito ao novo governo. A Argentina é um grande país e merece todo o nosso respeito. O Brasil sempre estará à disposição para trabalhar junto com nossos irmãos argentinos.”.

 Matheus de Oliveira Pereira, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, e membro do GEDES (Grupo de Estudo de Defesa e Segurança Internacional), ligado ao Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, avalia a vitória de Milei como exemplo da fadiga do eleitorado argentino em relação às forças políticas tradicionais do país.

“A Argentina está completando agora um período de praticamente dez anos em que a economia do país está estagnada e em que a inflação é crescente. O desemprego e a pobreza também. Neste período, dois governos se sucederam, o de Mauricio Macri e agora o governo de Alberto Fernandes. Ambos adotaram posturas e abordagens diferentes no enfrentamento dessas crises e nenhum dos dois conseguiu resolver de fato os problemas. Acho que isso produziu um cansaço, um esgotamento do eleitorado que, diante de uma situação em que havia duas opções conhecidas e que já tinham dado errado no passado recente, acabou optando por uma alternativa diferente que se apresentou.”

 Pereira pensa que as mudanças prometidas por Milei podem começar a chegar bem rápido. “Durante o discurso de vitória, ele deixou muito claro que pretende seguir uma abordagem do tipo ‘terapia de choque’. Ou seja, abandonando qualquer tipo de gradualismo e adotando uma série de medidas bruscas imediatamente após assumir a presidência. Essas medidas devem envolver principalmente a desregulamentação da economia, do câmbio, do setor exportador etc”, diz. Tais medidas tendem a promover efeitos nocivos sobre a população, pensa o pesquisador, tais como o aumento do desemprego e a piora os níveis de renda. “A expectativa dele é que, após esse choque inicial, essas variáveis se ajustem e as coisas retornem aos eixos. O problema é que a gente não sabe quanto tempo seria necessário para que essa hipótese se concretizar, e tampouco sabemos se ela vai se concretizar. Então, o cenário não sugere otimismo. A possibilidade mais dramática é o risco de um agravamento profundo da crise social do país, afetando principalmente os segmentos mais pobres e vulneráveis da população argentina.”

Em seu primeiro discurso após a eleição, Milei adotou um tom mais conciliador, e evitou falar de temas polêmicos trazidos com frequência durante a sua campanha. Ele convidou todos os argentinos a se juntarem pela “nova Argentina”. “É mais importante o que nos une do que o que nos separa. Sempre que queiram se juntar à mudança que a Argentina precisa vão ser bem-vindos”, disse. Porém, devido ao seu histórico, fica difícil prever sua postura como líder.

“Muitas pessoas estão destacando o discurso mais moderado. Mas o fato é que essa moderação está sendo apontada em relação à postura que ele adotou durante a campanha, que era absurdamente extremada. Por que digo isso? Porque não acho que o discurso tenha sugerido muita moderação, pelo menos não à primeira vista. Ele foi bastante enfático na defesa de que é preciso fazer uma terapia de choque. Disse que será extremamente rigoroso contra todos aqueles que busquem manter os seus privilégios. Ele apresentou dessa forma, mas a gente não sabe muito bem o que isso significa. Então, acho que é uma lição importante a se extrair de outras experiências em que políticos de extrema direita chegaram ao poder, como é o caso do Trump nos EUA, e do Jair Bolsonaro aqui no Brasil, é que essa leitura de que eles seriam contidos pelo peso do cargo não se mostrou acertada. Eles mantiveram as posturas que já adotavam antes da eleição. Em muitos casos, os grupos, as instituições que supostamente atuariam como moderadores terminaram, na verdade, sendo ainda mais radicalizados pela conduta do presidente. É preciso acompanhar suas primeiras iniciativas, como vão ser esses primeiros meses. Mas não me parece que, por ora, existam sinais claros de moderação”, acrescenta.

Já no campo das relações diplomáticas entre Brasil e Argentina, Pereira diz esperar um momento difícil. A campanha foi marcada por muita hostilidade por parte de Milei em relação ao Brasil e, em particular, ao presidente Lula. Ainda não há indícios de que o governo brasileiro e o novo governo argentino irão construir canais de interlocução. “O Milei mantém um contato muito próximo com o ex-presidente Jair Bolsonaro, e com figuras que estão ali no entorno do Bolsonaro. Tudo isso torna a relação mais difícil, num primeiro momento. Uma questão, inclusive, que acho que já vai funcionar como um primeiro teste é a própria posse. Ainda há dúvidas se Milei irá convidar o presidente Lula para a posse. E se Lula, caso convidado, irá à posse. O Bolsonaro já confirmou que irá. Particularmente, acho muito improvável uma relação amistosa nesse primeiro momento”, diz.

Ainda na linha dos possíveis desdobramentos do novo governo, Pereira enfatiza que uma decisão de Milei de retirar a Argentina do Mercosul levaria ao fim do bloco. “O Mercosul é construído a partir da parceria e da cooperação entre Brasil e Argentina. A eventual saída deles significaria um desmonte. Apesar da retórica do novo líder, não vejo que isso esteja no horizonte. Já há notícias discretas, veiculadas na imprensa, de que Milei fez chegar ao governo brasileiro seu desejo de não deixar o Mercosul. Inclusive por influência do seu próprio entorno político que sabe o impacto negativo que isso pode gerar à própria Argentina. De qualquer forma, creio que nos próximos dois anos o bloco será colocado à prova, sua força será testada e o Mercosul deverá enfrentar anos difíceis.”

A vitória de Milei desacelerou a chamada “onda de esquerda” na América do Sul. Com o resultado do pleito, o Executivo da Argentina passará a ser comandado por uma administração de direita. Desde o início deste ano, quando Lula tomou posse, nove dos 12 países da América do Sul estão sob comando de governos de esquerda. Após a posse de Milei em 10 de dezembro, as 12 nações passarão a ter a seguinte configuração: oito países com governos de esquerda e quatro, de direita.

“Nos últimos anos, as eleições na região envolveram embates entre políticos progressistas de centro contra a extrema direita. Neste momento, me parece que a região encontra-se dividida. Isso dificulta apontar uma tendência voltada mais para a direita ou para a esquerda. Creio que a divisão vai permanecer nos ciclos eleitorais, alternando vitórias entre a extrema direita e os progressistas. Isso não resulta em uma onda específica, para um lado ou outro. Tudo será pautado pelo cenário econômico, será ele que possivelmente vai definir os rumos eleitorais dos países da nossa região.”

Escute abaixo a íntegra da entrevista ao Podcast Unesp.

Imagem acima: Javier Milei participa de evento político na Espanha, em 2022. Crédito: Wikimedia Commons.