Pioneiro do punk brasileiro celebra os 42 anos de estrada dos Inocentes

Clemente viu nascer o movimento musical e comportamental de contestação, e integrou a primeira banda do estilo formada no país. Mas foi com o Inocentes que assinou alguns dos clássicos do rock pesado nacional.

Clemente Tadeu Nascimento, ou simplesmente Clemente para os fãs, nasceu em 12 de maio de 1963 na cidade de São Paulo, e é considerado um dos pioneiros do punk rock no Brasil.

Ao lado de outros jovens amigos da Vila Carolina, Zona Norte da capital, iniciou sua carreira musical tocando como baixista naquela que foi considerada a primeira banda punk do país, a Restos de Nada, em meados dos anos 1970. Em 1979 entrou para a banda N.A.I. (Nós Acorrentados do Inferno), que posteriormente mudou de nome para Condutores de Cadáver e conquistou alguma fama. Ficou até o encerramento da banda, em 1980, e no ano seguinte, ainda como baixista, criou os Inocentes. Ao seu lado estavam o guitarrista Antônio Carlos Callegari e o baterista Marcelino Gonzales. Para os vocais, os três convidaram o jovem Maurício.

“Tudo começou ali na Vila Carolina. Era uma coisa bem de bairro mesmo, amigos que se juntavam para fazer um som e se divertir. Existiam várias bandas na cidade na época. Os primeiros shows aconteceram no nosso colégio, a Escola Estadual Tarcísio Álvares Lobo. Inclusive, foi ali também o primeiro show do Cólera, ainda com uma formação diferente da que veio a fazer sucesso. Posteriormente, criamos o Inocentes”, lembra Clemente.

Ele conta que o nome Inocentes foi inspirado em uma música dos primórdios do punk inglês, Innocents, composta por um poeta performático inglês de nome John Cooper Clarke. A canção fazia parte da coletânea Streets, editada pelo selo Beggar’s Banquet. “Ele participava dos festivais punks e cantava meio declamando a tal faixa que se chamava Innocents. Eu gostava daquela música, e falei ‘esse é o nome da banda’, Inocentes.” 

Os integrantes do grupo eram influenciados por bandas hoje consideradas clássicas como The Clash, Sex Pistols, Buzzcocks, Generation X, New York Dolls e Ramones. Em 1982, junto com Cólera e Olho Seco, foram convidados a participar da coletânea Grito Suburbano, o primeiro registro fonográfico das bandas punks brasileiras. O petardo saiu naquele ano pelo selo Punk Rock Discos.

“Ali estavam as três bandas seminais do movimento em São Paulo. Esse é o primeiro registro que, aliás, foi relançado e virou um box bem bacana. Agrega gravações de estúdio e ao vivo, além de fanzines e outros artefatos relacionados às bandas e à época”, conta.

O estouro do Punk

Com o estouro do movimento punk paulistano, no começo dos anos 1980, o Inocentes conseguiu projeção nacional e se tornou um de seus porta-vozes. Os jovens viraram personagens do vídeo documentário Garotos do Subúrbio, dirigido pelo então jovem diretor Fernando Meirelles, e exibido no MASP em 1982, e do curta Pânico em SP,  dirigido por Mário Dalcêndio Jr. No fim do mesmo ano, já com Ariel Uliana Jr como vocalista, participaram do festival O Começo do Fim do Mundo no SESC Pompéia. O festival foi registrado ao vivo e lançado em disco no ano seguinte em forma de coletânea.

Em 1983, integraram a chamada “invasão ao Rio de Janeiro por punks paulistanos”, tocando no Circo Voador com sete bandas punk paulistas e mais Paralamas do Sucesso e Coquetel Molotov, do Rio de Janeiro. Nesse mesmo período, entram em estúdio para gravar seu primeiro LP, Miséria e Fome. Porém, durante o processo de gravação, todas as treze músicas compostas para o disco foram censuradas pela ditadura. O jeito foi alterar as letras de três delas, que foram registradas no compacto Miséria e Fome.

“O Festival O Começo do Fim do Mundo foi o ápice daquela fase do movimento punk, daquele início. Na época foi um dos maiores festivais punks do mundo”, conta o músico. “Houve eventos bem legais como o lançamento do livro “O que é punk”, do Antônio Bivar. Pela primeira vez tocamos em um lugar que fazia parte do circuito cultural da cidade. A grande imprensa cobriu, e  a gente realmente teve uma exposição muito grande”, diz.

Porém, depois do ápice veio a queda, como acontece em qualquer onda. “Apesar de ter sido um marco, acho que o Sesc deve se arrepender até hoje. O Sesc Pompeia, recém-inaugurado, tinha a estética perfeita. Mas, cara, colocar 3 mil punks lá por dia foi uma loucura. O pau quebrou geral. Infelizmente isso fez muito mal para o movimento e criou rótulos, estereótipos de violência. E isso desencadeou uma série de tretas”, diz.

Ele conta que, durante o ano de 1983, as brigas entre as gangues de jovens voltaram com mais intensidade. Isso resultou no cancelamento de shows e na perda de espaços onde era possível se apresentar. À época, a banda até deu uma parada. “Pensamos ‘poxa, isso não faz sentido’. Punk não é isso; quando um não quer, dois não brigam. Eles querem brigar? Deixa para lá. A gente estava ali para fazer um som e curtir com os amigos.”

Clemente diz que a definição de movimento  punk inclui a atitude de contestação, a música propriamente dita e a abordagem tipo faça você mesmo, responsável por abrir passagem para novas experimentações sonoras e mobilizações que em tudo diferiam da juventude dos anos 1960.

“Apesar da associação com o anarquismo, nem tudo envolvia a política. Nem todo punk é ou era anarquista. E você não tem que ouvir determinado tipo de música para ser de esquerda ou anarquista. Um forrozeiro pode ser anarquista. Essa dimensão política não demonstrava a realidade. Muita gente que estava ali nem sabia ao certo o que estava acontecendo, muitos não entendiam o movimento. A palavra anarquia virou sinônimo de bagunça por aqui. Nós tínhamos nosso embasamento teórico que pautava os discursos, mas líamos muitos autores. Porém, a maioria dos caras ali nunca leu um livro sobre os assuntos que abordamos”, relata.

Posteriormente, surgiram vertentes no movimento, como os anarcopunks,  combinando teoria e alguma atitude. Outros falavam sobre destruir o sistema, mas sequer sabiam o que era o tal sistema. “Mas, pegando o lado musical, vale destacar que do punk saiu o indie rock, o pós-punk e um monte de banda legal. Tem muita gente que hoje toca jazz, por exemplo, mas começou no punk”, diz Clemente.

O contrato com a Warner

O retorno do grupo ocorreu em 1984 com uma nova formação: Antônio “Tonhão” Parlato na bateria, André Parlato no baixo, Ronaldo dos Passos na guitarra e Clemente nos vocais e na guitarra. Junto, veio uma nova proposta: um som mais próximo do pós-punk e o desejo de se aventurar para além das fronteiras do movimento punk, passando a integrar a cena do rock paulista onde já se destacavam bandas como Ira!, Mercenárias, Voluntários da Pátria, Smack e 365, entre outras. Tocaram nas principais casas de show e teatros do circuito alternativo da época, como o teatro Lira Paulistana, o Zona Fantasma,  o Via Berlim, o Rose Bom Bom e o Circo Voador, no Rio de Janeiro, onde fizeram a abertura de um show da Legião Urbana.

Nesse mesmo ano, o disco Grito Suburbano foi lançado na Alemanha com o nome de Volks Grito pelo selo Vinyl Boogie, e a banda foi incluída na coletânea Life is a Joke, que contou  com bandas punk do mundo inteiro, lançada pelo selo Weird System, também da Alemanha.

Em 1986, o Inocentes iniciou uma das suas melhores fases, após o cantor Branco Mello, dos Titãs, levar uma demo deles para a gravadora Warner. Eles foram contratados, e lançaram o mini-LP Pânico em SP, produzido pelo próprio Branco e por Pena Schmidt, tornando-se  a primeira banda punk brasileira a gravar por uma multinacional. O disco foi bem recebido pela mídia e a banda excursionou por todo o Brasil pela primeira vez. As vendas na Warner foram boas, mas abaixo do esperado pela gravadora. Apesar disso, o grupo conquistou respeito de crítica e público. O disco apresentava uma sonoridade mais limpa, mas sem perder as raízes punk rock do grupo, incluindo a regravação de (Salvem) El Salvador, do compacto  Miséria e Fome, e músicas antigas que ainda não haviam sido gravadas, como o ska Não Acordem a Cidade.

Já o segundo álbum, Adeus Carne, saiu em 1987 e foi produzido por Geraldo D’Arbilly e Pena Schmidt. Continha músicas que se tornaram hits da banda, como Pátria Amada. O show de lançamento, realizado no Center Norte, no estacionamento do shopping na zona norte de São Paulo, reuniu mais de 10 mil pessoas. Apesar desses bons sinais, a gravadora deixou a banda de lado por considerá-la “difícil” de trabalhar, e Adeus Carne vendeu cerca de 30 mil cópias.

O terceiro álbum pela gravadora saiu em 1989, produzido por Roberto Frejat, do Barão Vermelho. Um disco um tanto confuso, desde a capa, onde a banda aparece nua e algemada, até a sonoridade. Tudo isso foi resultado da pressão exercida pela gravadora em cima da banda, que fez com que o clima interno desandasse. As gravações foram um tanto tumultuadas e a banda prefere esquecer os shows de lançamento em São Paulo e no Rio. O resultado de toda essa confusão foi a saída de Tonhão e de André Parlato, substituídos por César Romaro na bateria e Mingau  no baixo, e a saída da banda da Warner.

“O André Midani (ex-diretor da Warner Brasil) foi muito atencioso com a gente. Um cara muito bacana, mas também muito claro. Ele disse que estava nos contratando porque o som era bom, mas que não eramos uma banda para tocar nas rádios, não havia apelo comercial no som do Inocentes. Ele acreditava num projeto internacional que nós ainda não conhecíamos, mas que poderia ser muito bom para a banda no futuro, uma tal de “MTV”, que nos daria a oportunidade de gravar clipes e atingir um público diferenciado. Porém, a MTV só chegou no Brasil no início da década de 1990. Nessa altura, nosso contrato com a Warner já havia acabado e corríamos atrás de novos rumos”, conta Clemente.

Abrindo para Ramones e Sex Pistols

No começo da década de 1990, a banda estava sem gravadora, com poucos shows e verba escassa. O Inocentes vislumbrava rumos cada vez mais distantes do punk rock. Em 1991, uma demo com a música O Homem Negro chegou à rádio 89FM e foi muito executada na programação da emissora. Uma sonoridade que misturava punk rock, rap e rock, conquistou novos fãs e dilatou horizontes. Em 1992 lançam Estilhaços, um álbum quase acústico, pelo selo Cameratti. 

Em 1994, as raízes punk rock retornaram no álbum Subterrâneos, lançado pela gravadora Eldorado. A banda participou do curta-metragem Opressão, de Mirella Martinelli, onde interpretou a si mesma e Clemente era assassinado em pleno palco por um bando de skinheads nazistas. O filme ganhou vários prêmios pelo mundo. Nessa época, Clemente gravou com Thaíde & DJ Hum, uma versão de Pânico em SP que acaba resultando em mudanças na letra e até no título, que passa a ser Testemunha Ocular. A música fez parte da coletânea No Majors Baby, produzida por Marcel Plasse para a gravadora Paradoxx, e foi a primeira colaboração oficial entre músicos de rock e rap em São Paulo.

No mesmo ano, o Inocentes fez abertura do show dos Ramones realizaram no Olympia, extinta casa emblemática de shows em São Paulo. Essa apresentação teve grande repercussão e, no final de 1995, a banda entrou em estúdio e gravou o álbum Ruas, que foi lançado em 1996, pela gravadora Paradoxx. 

O novo álbum retomou a pegada punk rock, com destaque para a faixa A Cidade Não Pára. O Inocentes participou a seguir do primeiro festival Close-Up Planet ao lado de nomes como Sex Pistols, Bad Religion, Silverchair e Marky Ramone. Este último se tornou um amigo da banda, e dividiu com ela vários shows pelo interior. A apresentação no Close-Up Planet repercutiu bem e novamente caíram na estrada, chegando até Recife, onde se apresentaram no Abril Pro Rock de 1997.

No ano de 1998, entraram em estúdio e gravaram Embalado a Vácuo. O álbum chegou a ser lançado pela Paradoxx, que depois o revendeu para a gravadora Abril Music. Esta relançou a obra em 1999, com direito a capa nova e duas faixas bônus. A música Cala a Boca tocou nas rádios rock, e chegou a ficar dois meses em primeiro lugar na rádio Brasil 2000, sendo  desbancada apenas pelo Kiss, que desembarcou à época no Brasil para um show no autódromo de Interlagos.

O último trabalho pela Abril Music foi O Barulho dos Inocentes, produzido por Clemente e Rafael Ramos. O repertório era composto de versões de várias canções punks nacionais de que a banda  gostava. Chegaram a fazer uma versão para I Wanna be your Boyfriend, dos Ramones.

Em janeiro de 2001, gravaram um disco ao vivo no SESC Pompeia, em São Paulo, chamado 20 Anos ao Vivo, que foi licenciado para o selo RDS. Fizeram o show de abertura do Bad Religion no Credicard Hall. Em 2004, gravaram o álbum Labirinto pelo selo Ataque Frontal, produzido pela própria banda. A primeira prensagem esgotou em menos de uma semana e a música Travado começa a ser executada nas rádios de rock.

A partir deste mesmo ano, Clemente assumiu o segundo vocal da Plebe Rude. Desde então, divide-se entre as duas bandas e desenvolve também atividades musicais solo, como a apresentação do programa “Estúdio Showlivre”.  Já em 2011, em comemoração aos 30 anos dos Inocentes e 25 anos de Pânico em SP, primeiro álbum da banda, a WEA relançou os três primeiros álbuns da banda (Pânico em SP Adeus Carne e Inocentes). Na época, ocorreu a produção de um minidocumentário comemorativo.

Em 12 de abril de 2019, lançaram em vinil de 7 polegadas e nas plataformas digitais o EP Cidade Solidão, pela gravadora paulista Hearts Bleed Blue (HBB). Em 29 de agosto, saiu o clipe da música Donos das Ruas. Em 28 de julho de 2022, lançaram o single duplo Queima!. Em outubro do mesmo ano, lançam o videoclipe da faixa  Eu Vou Ouvir Ramones, labo B do single Queima!.

Conhecidos na Finlândia

Segundo Clemente, o movimento punk paulistano sempre manteve contato com pessoas do mundo inteiro, o que abriu muitas possibilidades. Era uma cena mundial onde os grupos se correspondiam, e desde 1981, eles trocavam cartas com  bandas da Polônia, Alemanha, Itália, Paraguai, Uruguai e Argentina, entre outros países, com destaque para o fanzine da Califórnia / EUA, chamado Maximum Rock and Roll que divulga até hoje ações da cena global do punk.

“Durante esses 42 anos de banda, muitas coisas bacanas aconteceram. Mas sempre lembro de uma passagem na Finlândia, em 2019. Um finlandês me abordou pelo nome e disse que gostaria de me pagar uma cerveja. Ele estava muito feliz com a nossa passagem pelo país, pois éramos uma das poucas bandas punks brasileiras que ainda não havia excursionado por lá. Ele tinha visto Cólera, Olho Seco, Ratos de Porão, mas faltava ver os Inocentes. Disse que nos acompanhava desde os anos 1980. Além disso, um jovem nos procurou após a apresentação, comprou nosso compacto e disse que o nosso show foi um dos melhores que ele assistiu, e que ficou impressionado. Acho que se você vai tocar no outro lado do mundo e alguém conhece o seu som, isso é um reconhecimento de toda a sua história”, diz Clemente.

Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.

Imagem acima: divulgação.