Pouco se sabe sobre a participação das mulheres indígenas na formação do território e no mapeamento do Brasil. Temos apenas raros relatos descrevendo suas atividades no cotidiano das aldeias e menções às que se casaram com portugueses, como a índia tupinambá Catarina Paraguaçu, que desposou o náufrago Diogo Álvares Correia, o Caramuru, e com ele iniciou a construção da cidade de Salvador, na Bahia. No entanto, novos estudos começam a mostrar as inconsistências da historiografia oficial a esse respeito.
“Ainda que a presença das mulheres indígenas tenha sido minimizada e relegada ao esquecimento por muito tempo, elas tiveram participação essencial para o funcionamento e o sucesso das expedições exploratórias no século 18″, afirma a historiadora e pesquisadora Denise Moura, professora livre-docente do departamento de História da UNESP, no campus de Franca (SP). “As mulheres indígenas foram um componente ativo e influente na geografia e na territorialidade, além de atuarem como intermediadoras entre as comunidades tradicionais e os colonizadores”, diz. A historiadora é autora de um estudo recente que joga luz sobre a influência das mulheres indígenas no registro e na transmissão dos conhecimentos geográficos na cartografia desse período. Seu primeiro artigo sobre o tema foi publicado no final de 2022 na plataforma Journal OpenEdition, sob o título Aos olhos da mulher indígena: cartografia, espacialidade e gênero em expedições de mapeamento no Brasil meridional (século XVIII). Em junho deste ano, a pesquisadora foi à Alemanha apresentar suas descobertas e novos dados no simpósio Intersections in Map History (ISHMap), promovido pela Sociedade Internacional da História do Mapa com a colaboração do renomado Max Planck Institute for the History of Science.
Os primeiros indícios quanto ao papel desempenhado por essas mulheres indígenas a chamarem a atenção da pesquisadora apareceram em 2015. A historiadora buscava informações sobre procedimentos para o mapeamento do Sul do Brasil no século 18 para embasar sua tese de livre-docência, defendida em outubro do ano passado. “Foi por acaso. Eu pesquisava documentos das expedições exploratórias na região onde hoje é o Estado do Paraná e que era chamada de Sertão do Rio Tibagi”, diz.
Na época, o novo enviado de Portugal para governar a Capitania de São Paulo, Dom Luís António de Sousa Botelho Mourão, recebeu da Coroa Portuguesa ordens para proceder, com urgência, ao mapeamento do território, pois a Coroa pressentia que os espanhóis estavam interessados naquelas terras. “Nas ordens e instruções de Dom Luís sobre os preparativos para a montagem de uma das onze expedições que organizou ao Sertão do Tibagi, cada uma delas com cerca de oitenta soldados, encontrei um documento falando de uma mulher indígena que deveria servir como guia. O governador dava todas as orientações sobre como vesti-la e a posição que deveria ocupar, à frente da expedição”, diz.
Uma nova metodologia
Quando estava já com a tese escrita e prestes a ser defendida, após analisar centenas de documentos e mapas, a professora recordou-se da menção à mulher. “Fiquei pensando no que teria acontecido a ela, que nunca mais foi mencionada em tudo que li. Por que nunca mais apareceu? Caiu num buraco? Eu desconfiei que ela fosse capaz de se comunicar com povos não falantes do tupi-guarani, os quais o governador Dom Luis sabia que habitavam a região a ser mapeada.”
Posteriormente, após o contato entre soldados e indígenas, estes foram identificados como Xuclan e Xokleng. Esta etnia ainda existe, autodenomina-se Laklaño e pertence ao tronco linguístico Jê. No passado, os Laklaño habitaram grandes extensões de terra entre os estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul até serem drasticamente reduzidos por epidemias de gripe e sarampo e perseguições. Intrigada com o destino da indígena apagada dos registros históricos, a pesquisadora voltou aos documentos e resolveu interpretá-los, buscando referências também na literatura antropológica e etnográfica.
“Entendi que seria necessário desenvolver novos métodos para conseguir extrair informações sobre a espacialidade da mulher indígena das muitas camadas da narrativa elaborada pelos soldados (alguns inclusive missionários beneditinos), que foram capazes de apagar a presença dela nos empreendimentos de mapeamento”, diz a pesquisadora.
O caminho imaginado pela pesquisadora, e que deu certo, foi associar recursos da etnografia e do conceito de ciência colaborativa que vem desenvolvendo, a partir de uma perspectiva de gênero, para identificar a contribuição dessas mulheres à cartografia do século 18. “O registro etnográfico, escrito ou visual, embora seja conformado por seleções específicas dos etnógrafos de uma certa época, e também deva ser submetido à crítica, é valioso porque documenta, de forma detalhada e sistemática, as características culturais, sociais e comportamentais de um grupo étnico ou comunidade”, define Denise.
Ciência colaborativa
A ciência colaborativa é uma abordagem que envolve a participação de comunidades locais, grupos de interesse e indivíduos de fora do mundo acadêmico, cujas contribuições podem variar desde a coleta de dados em ambientes naturais à formulação de perguntas de pesquisa. A partir dessas premissas, a pesquisadora, que teve auxílio dos seus orientandos em projetos PIBIC na leitura dos diários e mapas, pediu ao grupo que não se preocupasse em procurar menções explicitas às mulheres indígenas. Deveriam prestar atenção aos nomes de frutos, sinais de florestas, árvores, plantações, árvores, rios, montanhas e às descrições das atividades das mulheres no ecossistema local.
O levantamento conduzido com a nova metodologia mostrou, por exemplo, que as mulheres Laklanõ (ou Xokleng) eram responsáveis pela colheita e coleta de frutos, sementes e castanhas, especialmente de pinhões, um alimento importante na dieta dos povos dessa região. Aos homens cabia a caça.
Na continuidade de sua pesquisa com mulheres indígenas da região do Gran Chaco, nas margens do rio Paraguai, a historiadora descobriu que também era tarefa das mulheres tecer as bolsas com alças muito longas e largas, capazes de serem sustentadas sobre o topo da cabeça, que eram empregadas no transporte e armazenamento dos alimentos. Nas expedições do colonizador, essas sacolas, comuns a outras etnias, eram levadas e reabastecidas pelas indígenas nos locais de cultivo e armazenamento conhecidos anteriormente por elas durante o percurso pelo território.
“Chamado em inglês de tumpline, esse artefato está vinculado ao papel de gênero da mulher indígena. Elas respondiam pelo carregamento de tudo o que dizia respeito aos mínimos vitais do grupo, como água, alimentos, lenha”, diz Denise. O passo seguinte foi relacionar informações como essas às descrições e aos mapas contidos em relatos histórico-geográficos de jesuítas que percorreram o Gran Chaco, como os dois volumes de História de la Compañia de Jesus en la Povincia del Paraguay, de Pedro Lozano, publicados em 1745.
O trabalho de seleção dos relatos e mapas dos jesuítas teve um motivo especial. “Ao invés de recorrerem a informações relatadas por terceiros, os jesuítas foram diretamente ao território e travaram contato direto com as indígenas nas aldeias e nas missões. Tinham grande interesse em observá-las. Elas cuidavam da educação das crianças, da alimentação, conheciam as plantas da região e o território, detendo muitos saberes”, conta a pesquisadora. Nos diários e mapas dos jesuítas, a autora encontrou nomes e traçados de rios, menções e registros de áreas onde havia bananeiras, laranjeiras, florestas, palmeiras, araucárias e algarrobos. “Todos esses eram espaços acessados e frequentados pelas mulheres durante a colheita e armazenamento dos frutos”, relata Denise.
Os dados obtidos por essas fontes vêm sendo complementados com fotografias feitas por etnólogos europeus. Entretanto, a narrativa visual das expedições ao Tibagi produzidas no século 18 pelo artista português Joaquim José de Miranda, sob encomenda pelo governador Dom Luis de Sousa, já mostrava que as indígenas conservavam os pinhões coletados do chão (eles caem das árvores quando amadurecem) em reservatórios confeccionados com fibras e revestidos com cera colocados dentro dos rios. “Os registros dos exploradores falam de um rio que era chamado pelos indígenas de Rio do Pinhão”, diz a historiadora. Outra fonte valiosa de informações vem de registros de indígenas da etnia Pilagá, da área do Gran Chaco, escolhendo vagens de algarrobo, e de uma menina carregando um jarro de água em uma bolsa com alça sobre a cabeça.
Esses registros fazem parte da coleção do etnólogo suíço Alfred Métraux (1902-1963). O material está publicado no Handbook of South American Indian, editado por Julian H. Steward, com patrocínio do Smithsonian Institution, em 1946. “A partir desses materiais, busquei inferir o que seria uma territorialidade feminina e indígena, e seus percursos nos caminhos pelos quais conduziram os exploradores”, diz Denise.
Outra vertente do levantamento mostrou que as indígenas norte-americanas eram também encarregadas de colher raízes e castanhas, segundo relatou Juliana Barr, uma das autoras consultadas na pesquisa. E também os colonizadores do Texas, nos Estados Unidos, colocavam as mulheres indígenas à frente da expedição. “Situar mulheres à frente das expedições de mapeamento conferia uma imagem mais pacífica, diferente da figura masculina associada cada vez mais ao confronto e violência nesse período”, explica Denise.
O processo de buscar os esparsos dados sobre essas mulheres e desenvolvimento da nova metodologia demorou dois anos, até que resultasse, finalmente, no primeiro artigo. “Hoje prossigo com o levantamento de dados e já tenho resultados mais consistentes, que apresentei no evento da ISHMAP em Berlim”, diz a docente. O próximo passo será elaborar um projeto em História da Cartografia com prisma de gênero e que mostre um território da América do Sul produzido por mãos femininas indígenas. Junto com outras duas pesquisadoras, Ana Raquel Marques Portugal, do departamento de História do campus de Franca e Sonia Tell, da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, a professora planeja criar uma base de dados de mapas históricos contextualizados, com referências etnográficas. “Até o momento, a história do mapeamento da América do Sul tem sido contada de forma eurocêntrica e masculina. A perspectiva de gênero, focada na mulher indígena, e a ciência colaborativa podem mudar o foco e a voz dessas narrativas e mostrar a presença e o papel das mulheres indígenas na cartografia histórica.”
Imagem acima: Mulheres indígenas recolhiam as vagens de algarrobo para preparar uma bebida fermentada ritual. Crédito: Handbook of South American Indian.