STF retoma esta semana julgamento sobre descriminalização da posse de drogas sob críticas do legislativo

Placar até agora registra três votos a favor de que posse de pequenas quantidades de maconha deixe de ser classificada como crime, e um que estende benefício a todas as drogas. Presidente do Congresso diz que julgamento usurpa competências do poder legislativo. Professor de direito da Unesp explica que um dos objetivos da iniciativa é corrigir distorções geradas pela atual lei de drogas, aprovada em 2006. Mas lamenta ausência de discussão mais ampla, que trate também de políticas públicas para tratar dos adictos.

A ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal, marcou para a próxima quinta-feira, 17, a retomada do julgamento que avalia a descriminalização da posse pessoal de drogas, colocando uma perspectiva concreta de concluir um debate que se arrasta no plenário do tribunal desde 2015. O julgamento foi retomado em agosto, com um voto do ministro Alexandre de Moraes, no último dia 2, mas foi suspenso no mesmo dia a pedido do relator do processo, o ministro Gilmar Mendes. Mendes havia sido o primeiro a votar, ainda em 2015, e o julgamento recebeu mais dois votos antes que fosse interrompido por um pedido de vistas do falecido ministro Teori Zavascki.

No cento do debate está a possibilidade de reinterpretação da legislação já em vigor para uso e tráfico de drogas, a lei 11.343/2006, que estabelece que a posse de drogas é crime, embora não seja passível de punição com prisão.  O julgamento foi suscitado a pedido da Defensoria Pública de São Paulo a partir de um caso específico: um usuário preso em 2009 com 3g de maconha pretextou que a droga se destinava a uso pessoal.  A longa duração do julgamento está ligada às diversas controvérsias que cercam o debate. Uma delas é a acusação de que o STF estaria usurpando as prerrogativas do Legislativo. Ainda no dia 3, o Presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, se pronunciou enfaticamente para defender que a decisão de descriminalizar ou não a posse de drogas dever caber ao legislativo federal, exclusivamente.

Professor do departamento de Direito Público da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, câmpus de Franca, Paulo César Corrêa Borges acompanha há anos os debates sobre a política de drogas no Brasil a partir de um ponto de vista jurídico e criminal. Na entrevista a seguir, Borges, que também é promotor de justiça do Estado de São Paulo, esmiúça os diversos aspectos envolvidos no julgamento do STF, entre eles as expectativas frustradas com a adoção da própria lei 11.343/2006. “Depois que ela entrou em vigor, o número de prisões cresceu muito e em pouco tempo, e na verdade o objetivo era exatamente o oposto”, explica. Ele também analisa os votos já proferidos pelos ministros, a possibilidade de que a descriminalização seja válida para todas as drogas, ou apenas a maconha, a real efetividade da ação policial no combate às drogas e a possibilidade de efeitos retroativos caso o STF adote a nova interpretação.

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Já existe uma lei de drogas, a 11.343, vigendo no país desde 2006 que fala em penalidades diferentes para tráfico e posse pessoal de drogas. Por que o STF está discutindo esse tema agora? A lei em vigor não é suficientemente clara?

Paulo César Corrêa Borges: No passado, o Supremo já se debruçou a respeito do artigo 28 do texto da lei. Após sua aprovação, por volta de 2007, ficou estabelecido que, uma vez que o texto prevê punições ao usuário de drogas, tais como advertência sobre os efeitos das drogas, a prestação de serviços à comunidade e o comparecimento a programas ou cursos educativos sobre os malefícios das drogas, concluiu-se que continuava sendo crime no Brasil o uso de drogas. 

Mas o debate foi retomado em razão de um recurso que chegou no Supremo. Por ocasião de um caso específico, a Defensoria Pública ingressou no Supremo sustentando que o uso de drogas ofende apenas a saúde do usuário. Trata-se de uma autolesão. Por isso, não há interesse social amplo que justificasse manter a criminalização de um comportamento que atinja apenas o usuário. Esse é o debate no momento. Na verdade, esse julgamento teve início em 2015 e está sendo retomado agora. Na ocasião, votaram o relator, o ministro Gilmar Mendes, e também outros dois ministros, Edson Fachin e Luís Barroso. Na sequência, o ministro Teori Zavascki pediu vistas do processo, e o julgamento foi interrompido. De lá para cá, o ministro Zavascki faleceu e o julgamento ficou parado até a retomada recente, quando tivemos mais um voto, de Alexandre de Moraes.

Na sequência da nova interrupção do julgamento, que será retomado esta semana, o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, criticou o debate no STF, pontuando, entre outros comentários, que ainda que o porte de drogas possa ser liberado, o usuário estaria comprando o produto de criminosos, uma vez que o tráfico permanece ilegal e classificado inclusive como crime hediondo. Não é uma grande contradição descriminalizar apenas a posse, nestas circunstâncias?

Paulo César Corrêa Borges: É uma questão muito polêmica. A liberação das drogas envolve um debate acalorado. Existem argumentos, por exemplo, no sentido de que essa não seria uma matéria sobre a qual o Supremo devesse se debruçar. O próprio Congresso é quem deve alterar ou não essa legislação. Temos aí um debate entre poderes. Por outro lado, Brasil, Suriname e a Guiana são os únicos países na América Latina que mantêm criminalizado o uso das drogas nas suas respectivas legislações. E como esse recurso possui aquilo que é chamado, tecnicamente, de repercussão geral, a decisão que o Supremo tomar valerá não apenas para o caso debatido, mas para o país inteiro.

Os votos dos ministros têm apresentado diferenças significativas. O de Gilmar Mendes se refere à posse de qualquer droga, os dos demais ministros falam em maconha.  Afinal, a votação no STF se limita à posse de maconha ou é válida para todas as drogas? E como se fará para consolidar uma decisão final?

Paulo César Corrêa Borges: Nesse caso, é buscado o que tecnicamente se chama de voto médio. Entretanto, o próprio Gilmar Mendes disse que buscaria uma decisão consensual. O que significa isso? Ele, por exemplo, pode rever sua própria manifestação anterior, na qual declarou que a possibilidade de posse valeria para qualquer droga. É possível que ele busque um consenso para chegar a um voto intermediário. Tecnicamente, ao votar para descriminalizar todas as drogas, o ministro Gilmar Mendes  está sendo coerente. Se se argumenta que o artigo 28 da lei de drogas é inconstitucional no que diz respeito ao usuário, porque ele estaria envolvido em uma autolesão, e isso é algo que não interessaria à política pública de combate às drogas, isso será válido no caso de qualquer droga.

Já o segundo voto, que foi proferido pelo ministro Edson Facchin, também foi em favor da descriminalização, mas ele ressaltou que só deveria valer para o caso da maconha. Por coerência, ele argumenta que [o uso da] maconha resulta em uma autolesão que não tem impactos sociais. Porém, outras drogas mais pesadas, como o crack e a cocaína, trazem malefícios para a sociedade, além de para o próprio usuário. Não seria apenas um caso de autolesão, logo a proibição não é inconstitucional.

Porém, perceba que é uma narrativa que está sendo construída. Tecnicamente, a lei tratou do caso dos usuários de quaisquer drogas. Portanto, a descriminalização deveria ocorrer também em relação a quaisquer drogas. Entretanto, começa a se construir aí uma narrativa que busca uma consensualidade. O que há em comum nos 4 votos já proferidos, que nos permite falar em um placa de 4 x 0 até agora? Foram 4 votos para descriminalizar a maconha. Ou estaremos em um 3×1 um contra o ministro Gilmar? Esse placar contra o voto do ministro Gilmar, e contra a descriminalização do restante das drogas, é o que está implícito nos votos proferidos pelos outros três que já votaram, os ministros  Edson Fachin, Barroso e Alexandre de Moraes. Eles estão dizendo que a descriminalização só vale para a maconha. Gilmar Mendes disse deve valer para todas. Portanto, ele seria um voto vencido em relação às demais drogas. Mas temos um 4×0 em relação à maconha.

Professor, a lei atual não pune o usuário com prisão. Qual seria, então, a necessidade de descriminalizar a posse se o usuário pode ser condenado no máximo a penas brandas, como prestar serviços à comunidade. Por que então rever a penalização?

Paulo César Corrêa Borges: Excelente pergunta. O que está como pano de fundo no debate é a seguinte observação: quando um policial aborda alguém que porta drogas, qualquer que seja a quantidade, e seja usuário ou traficante, não cabe ao policial afirmar “pode ir embora, porque a gente acha que você é só usuário”. A lei diz que se trata de um crime. Então, os agentes de segurança pública irão abordar todos aqueles que também são usuários e apresentá-los em uma audiência de Custódia para que o judiciário possa decidir qual é o caso. A Defensoria Pública e o Ministério Público participam  da audiência de Custódia que avalia se se trata de um usuário, ou se é mesmo o caso de uma prisão em flagrante. E, se se chegar a conclusão de que este é o caso, avalia-se se se trata de uma prisão legítima, se não envolveu algum flagrante forçado. E, no caso de um traficante, avalia-se se são necessárias medidas preventivas, o que pode resultar na conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, de forma que o réu permaneça preso para responder pelo crime.

Então, o que ocorre é que, hoje, pessoas que podem tanto ser usuárias quanto pequenos traficantes são levadas perante o judiciário para responder por seu envolvimento com as drogas. Já nos países em que há liberação do uso de drogas, a polícia não tem por que abordar um usuário, porque não há crime nesse tipo de comportamento. Esse é um aspecto importante nesse debate, porque muitos usuários são acusados de tráfico. E é por isso que, nos próprios votos que estão sendo proferidos, começou-se a discutir quantidades, sustentando que no caso de posses de certas quantidades específicas de maconha, o indivíduo não seria traficante, apenas usuário.

E por que o voto do ministro Alexandre de Moraes fala especificamente sobre a posse  de quantidades entre 25g e 60g? Porque seu voto segue um levantamento nacional de jurimetria, ou seja, nas medições dos casos concretos em que houve prisão de pequenos traficantes. O mininstro Barroso fala em posse de até 25g. Para além dessa quantidade, já seria um caso de pequeno traficante. Já no voto do Alexandre, se a quantidade for até 60g, deve-se presumir que se trata de um usuário, exceto no caso de a polícia identificar algum outro indício de tráfico, como dinheiro em pequenas quantidades, balança de precisão e existência de plantas fêmeas, uma vez que a concentração das propriedades toxicológica e medicinais se dá no botão que a fêmea produz.

O que seria o pequeno traficante? Ele pode ser distinguido do grande traficante?

Paulo César Corrêa Borges: Sim, principalmente pela quantidade. A lei antidrogas, lá no artigo 33, trata do tráfico de maneira geral, fala de organização criminosa e de tudo o mais nesse sentido. Existe o que a doutrina chama de “tráfico privilegiado”. Está previsto no parágrafo quarto do artigo 33 que o pequeno traficante pode ter sua pena reduzida entre 1/6 e 2/3, desde que o agente seja primário, tenha bons antecedentes e não haja provas de que ele se dedique a uma atividade criminosa ligada a alguma organização. Muitos usuários acabam sendo presos acusados de serem pequenos traficantes.

Então a lei já estabelece que quem for preso portando quantidades menores, mas ainda assim ganhe dinheiro com ela, deve ter um tratamento mais brando?

Paulo César Corrêa Borges: Sim. Essa lei veio para despenalizar, no sentido de oferecer um tratamento mais brando para as hipóteses menos gravosas, embora continue mantendo como um crime. Porém, veja que, na prática, um usuário pode ser apontado como um pequeno traficante.  Teoricamente, o número de pessoas presas a partir dessa lei deveria diminuir. Mas, na prática, desde que ela entrou em vigência esse número cresceu muito. E o objetivo original era exatamente o contrário: não colocar em presídios aquele pequeno delinquente, aquela pessoa que cometeu delitos menos graves na área de drogas. Mas ela acabou também sendo qualificada como traficante.

E por que houve essa distorção nos efeitos?

Paulo César Corrêa Borges: Isso envolve as questões práticas do dia a dia da ação policial. A polícia está atuando mais no “varejo”da droga  e não no “atacado”. Isso exigiria um trabalho mais especializado, com mais serviço de inteligência policial.

Mas, no caso de essa nova interpretação vir a ser adotada, a questão que vai ficar é a seguinte: o usuário não vai mais ser criminalizado, mas e o que acontecerá quanto ao tratamento de saúde, que é necessário no caso dos dependentes químicos? Essa questão precisa ser implementada. E isso passa por políticas públicas, um tema que é de competência tanto do Congresso quanto do poder executivo.

E outra questão é: de quem o usuário, que não vai estar cometendo  crime, irá comprar essa droga? No Brasil, não há cadastro de usuários ou fornecimento de drogas para essas pessoas, por exemplo. Isso ocorre em outros países, em que a droga é fornecida a pessoas que possuem um laudo de dependência química. Aqui, o usuário vai comprar droga na boca de fumo. Então essa medida não irá resolver o problema que tanto incomoda nossa sociedade.

Esse problema  precisa ser enfrentado com políticas públicas eficientes. Não basta simplesmente revogar artigos e imaginar que o problema estará resolvido. Continuaremos com um problema que não é apenas uma questão de autolesão, mas possui uma dimensão social. E o custo social para resolver essa questão também é grande, devido a diversos fatores, como a necessidade de força de trabalho e de equipamentos públicos para proceder ao atendimento e ao tratamento dessas pessoas.

Quais podem ser os impactos caso haja uma liberação de posse de maconha para consumo próprio? A medida teria efeito retroativo? Pessoas que já cumprem pena poderiam ser liberadas da prisão, ou estariam liberadas de cumprir punições como prestação de serviços à comunidade?

Paulo César Corrêa Borges: Sim, a gente chama de abolitio criminis, que significa abolição do crime. Juridicamente, quando há uma lei sendo revogada, é mais fácil visualizar a ação ou omissão do Congresso nessa temática. E o Supremo está ocupando esse vácuo, pois é uma competência do Congresso alterar a legislação. Tanto que, no voto do Fachin, ele dizia que essa questão do percentual de drogas a ser levado em conta deveria ser decidida pelo Congresso. Porém, uma decisão do STF que diga que o artigo 28 da lei antidrogas, por exemplo, é inconstitucional, vale tanto para o futuro como para o passado. Aqueles que estiverem respondendo por algum processo, ou já condenados e que estejam cumprindo pena, deixarão de fazê-lo.

Mas vai ser automático ou isso precisará ser solicitado?

Paulo César Corrêa Borges: A revisão da execução penal é obrigatória quando há um regime jurídico alterado, mas sempre depois do trânsito em julgado da decisão do Supremo, pois podem existir embargos de declaração ou restar ainda alguns mecanismos processuais que retardam o trânsito em julgado. Por exemplo, pode ser aprovada no Congresso, em caráter de emergência, uma lei que siga um tratamento na mesma linha, e a decisão [do STF] se esvazie.

Na sexta-feira 3/08, logo após a suspensão temporária do julgamento, o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, se manifestou de forma crítica, alegando que se trata de usurpação de prerrogativa pois cabe ao poder legislativo determinar a pertinência ou não de descriminalizar a posse de drogas no país depois de um amplo debate social. Como o senhor vê essa crítica?

Paulo César Corrêa Borges: O Congresso deixa um vácuo ao não enfrentar problemas importantes como este, de forma objetiva e efetiva. Na medida em que toda a América Latina já revogou isso, esta é uma pauta muito forte e presente. Estamos lidando com esta questão de forma melhor ou pior do que o restante da América Latina, de modo a precisarmos criminalizar o usuário? Estamos tratando esse problema do ponto de vista da saúde, de políticas públicas adequadas? Será que nos países vizinhos eles estão lidando melhor com a saúde dos adictos? São questões importantes que passam pelo Congresso, pelo Legislativo.

Por outro lado, quando o Supremo recebe um recurso num caso concreto para decidir  sobre a constitucionalidade, para declarar se naquele caso está sendo violado ou não o direito individual e a própria Constituição, examina muitos princípios constitucionais implícitos. Um deles, o da lesividade, que é o que está sendo tratado, refere-se a uma autolesão. Qual é a lesividade para a sociedade querer punir criminalmente? Isto está na Constituição, então o Supremo tem também competência para isso. Porém, seria adequado o Supremo dizer que há lesividade numa certa droga e não há em outras drogas? Por que dizer que é só maconha, não todas as drogas? Esse ponto está em aberto, e é ele que tangencia o exercício da competência do Supremo.

Mas há dúvidas se realmente esse assunto compete ao STF, uma vez que é responsabilidade do executivo e do Ministério da Saúde definir quais são as substâncias que devem ser elencadas em uma portaria ministerial e designadas como entorpecentes. Por outro lado, o Supremo está delimitando a quantidade de droga que, indubitavelmente, caracteriza tráfico. Com base em que preceito constitucional isso pode ser afirmado? E se o usuário, por hipótese, comprar droga apenas para ele, mas com o horizonte de durar mais de um ano, sem vender a ninguém? O que mudou do ponto de vista da norma? Nada. Ele continua sendo um usuário. Ele vai receber essa penalidade de traficante? Ou será considerado como usuário, se a decisão se confirmar? Portanto, há alguns pontos em que o Supremo está sim, invadindo a competência do Congresso. Isso é reconhecido, inclusive, no voto do Fachin, quando ele diz que concorda com a descriminalização da maconha, mas a quantidade para caracterizar o tráfico depende de lei do Congresso. Isso mostra que há uma divergência interna, sobre o que pode ser decidido, se a quantidade de temas a serem enfrentados pelo Supremo não invade a competência do Congresso.

Porém, antes de tudo, o mais importante é que a sociedade, juntamente com o parlamento, as agências de segurança pública, o próprio Congresso e o Supremo, se debrucem sobre o tema da discussão da política que vem sendo aplicada do ponto de vista da saúde pública. Se esse modelo tem sido eficiente ou não para quem é dependente químico. Independentemente de haver criminalização ou não, é pauta comum para todos a necessidade de que o dependente químico receba tratamento.

Imagem acima: plenário do STF durante julgamento em 02/08/2023. Crédito: Carlos Moura/SCO/STF.