Seres humanos são os maiores predadores do planeta, mas nem sempre para se alimentar

Levantamento inédito aponta que perfil altamente generalista do comportamento humano afeta um terço das espécies de vertebrados. Alimentação predomina, mas entre os animais terrestres o uso de espécies para estimação e cativeiro é quase duas vezes mais comum que para comida

Vários documentários sobre o mundo animal vendem a imagem de tubarões, onças, orcas e leões como sendo os grandes predadores do planeta. Os resultados de um estudo internacional publicado no mês passado, entretanto, mostram outra realidade. De acordo com um artigo que tem um pesquisador da Unesp entre os autores, o título de grande predador da Terra cabe ao Homo sapiens, e nem sempre essa exploração está relacionada a motivações alimentares. 

Embora metade desses animais de fato acabem virando alimento para o ser humano, a outra metade é explorada de outras formas. Pesquisadores apontam, por exemplo, o tráfico para obtenção de animais de estimação e cativeiro ou para a produção de ração animal. Neste estudo, os pesquisadores consideraram a retirada de uma espécie do seu habitat como uma forma de predação, ampliando um conceito que costuma estar ligado exclusivamente à alimentação. 

“Nossa comparação mostra que os humanos têm uma dieta de presas muito mais generalista, o que afeta a sobrevivência de muitas espécies, levando inclusive algumas delas à beira da extinção”, afirma Mauro Galetti, professor do Departamento de Biodiversidade da Unesp, no câmpus de Rio Claro, e um dos autores do artigo publicada no periódico Communications Biology no final de junho deste ano e que conta com a colaboração de 12 cientistas de Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Brasil.

O estudo analisou o banco de dados da IUCN (International Union for Conservation of Nature), organização civil que reúne a maior quantidade de informações do planeta sobre o estado de conservação das espécies. Os dados sobre o uso e o comércio de 47 mil vertebrados apontaram que o homem preda 15 mil espécies, ou seja, praticamente um terço do total. “E dentro desse conjunto de animais, 5 mil espécies estão ameaçadas de extinção pela nossa voraz dieta”, explica Galetti.

Na comparação feita com outros animais no topo da cadeia, também predadores generalistas, o devastador comportamento do homem fica ainda mais evidente. “Os humanos predam entre 5 e 300 vezes mais presas do que qualquer predador. Ou seja, somos um super predador do planeta. É uma abordagem quantitativa que nunca havia sido feita”, afirma o pesquisador da Unesp em Rio Claro.

Oceanos são os mais impactados pela predação humana

De acordo com a metodologia usada pela pesquisa e detalhada no artigo científico, enquanto a baleia orca, por exemplo, preda 121 espécies, os seres humanos, dentro do mesmo nicho marinho em que vivem as grandes baleias brancas e pretas, afetam a vida de 10.460 espécies. Como existe uma sobreposição, neste caso, de 69% das espécies predadas tanto pela orca quanto pelo ser humano, a super exploração humana dos mares, cada vez mais, vai afetar as cadeias ecológicas desse tipo de ambiente. Os números relacionados aos grandes tubarões brancos são semelhantes, de acordo com as análises.

Em termos de habitat, os oceanos são as áreas mais impactadas pela cultura humana. As pessoas exploram 43% das espécies marinhas, a grande maioria, segundo a pesquisa, é de peixes. Na sequência, aparecem os grupos de água doce, com 35%, e os animais terrestres. Neste caso, a exploração atinge 26% das espécies [ver infográfico].

Conceito de predação abrangente

Apesar do conceito ecológico de predação estar diretamente relacionado com a captura para a alimentação, no caso do estudo, os pesquisadores consideraram a retirada de uma espécie do seu habitat, de forma mortal ou não, como uma predação. Mesmo que para outros fins que não fosse a obtenção de comida. E o processamento desses dados veio atrelado a uma surpresa.

Praticamente metade das espécies atacadas pelo homem viram comida no prato. A outra metade tem outras destinações, como virar matéria-prima para ração animal, medicamentos, venenos e roupas – usos menos comuns. Além de uma outra categoria que engloba bichos de estimação (ou seja, animais de companhia ou em cativeiro) e caça/coleção esportiva que é bastante representativa em algumas regiões.

De acordo com o trabalho, no ambiente terrestre, o uso da exploração da natureza para obtenção de animais de estimação é quase duas vezes mais comum (74%) do que o uso alimentar (39%). A caça desportiva e outras formas de predação (isto é, para a obtenção de troféus e ornamentos) estão na base da utilização de 8% das espécies terrestres exploradas pelo homem. Os peixes e mamíferos são usados principalmente como alimento, enquanto aves, répteis e anfíbios são mais visados para virarem animais de estimação. “Sem dúvida nos deparamos com uma enorme pressão da captura de animais para tráfico de animais vivos (pet trade), mas a caça para alimentação ainda é muito forte em muitas áreas”, contextualiza Galetti.

Boa parte da exploração de aves para cativeiros ou de peixes para aquários está atrelada ao comércio ilegal. E algumas demandas, inclusive, surgem a partir de conexões bizarras. Em reportagem sobre o mesmo artigo científico para a agência de notícias da Dalhousie University, o ecologista marinho Boris Worm, que também é um dos integrantes do time de pesquisa, relatou uma experiência que presenciou na Indonésia há alguns anos.

Ao conversar com um comerciante que vendia corujas selvagens acabou informado sobre o aumento repentino na demanda pelo pássaro. A hipótese mais plausível na época, era de que o lançamento então recente dos filmes de Harry Potter, que apresentavam as aves noturnas como destaque, estavam por trás da alta procura. Enredo parecido, segundo Worm, também ocorreu nas vendas de peixes de estimação para recifes, após o lançamento do filme Procurando Nemo, mesmo a mensagem da obra de ficção estando atrelada à preservação ambiental. “São bons exemplos de onde um fenômeno cultural impulsiona a superexploração de uma espécie selvagem. Por meio de nosso fascínio por essas espécies, às vezes as amamos até a morte”, afirma o pesquisador da instituição de pesquisa do Canadá.

Cientistas sociais pode ajudar a atenuar o problema

Diagnóstico feito, os cientistas, na conclusão do artigo científico, também esboçam caminhos de como essa questão pode ser endereçada. Um dos trilhos leva a conexão que precisa ser cada vez mais forte entre cientistas naturais e sociais. Dessa forma, escrevem os pesquisadores, será possível elencar soluções sobre como as práticas sociais e culturais podem mitigar a tendência da humanidade de super explorar as populações de presas ao longo do tempo.

Um dos exemplos citados no texto é de como a pesca sustentável de arenque do Pacífico (Clupea pallasii) por comunidades indígenas ao longo de milênios se desenvolveu antes da espécie de peixe ser alvo da superexploração industrial, o que vem causando rápidos colapsos populacionais da espécie. Sobre isso, existem fartas evidências baseadas tanto em histórias orais, colhidas por historiadores, quanto em informações arqueológicas.

“Independentemente da abordagem de conservação, sugerimos de forma mais ampla que as sociedades reconheçam plenamente os efeitos abrangentes que o enorme nicho predatório da humanidade exerce tanto nas espécies-alvo quanto em seus ecossistemas”, concluem os autores da pesquisa. Para o grupo, embora os desdobramentos da atuação humana sejam aparentemente irrestritos, e os avanços tecnológicos reforçam ainda mais essa bola de neve, as taxas de exploração das 45 mil espécies de vertebrados devem ser reduzidas para que os processos ecológicos que conectam os animais do planeta não entrem em colapso. Sem isso, “a superexploração continuada provavelmente terá consequências profundas para a biodiversidade e as funções ecossistêmicas” dos ambientes marinhos, dulcícolas e terrestres, afirmam os autores da pesquisa.

Imagem acima: Apreensão de filhotes de papagaio na Bahia, em 2008. Crédito: Depositphotos