Na física teórica, resumem os experts da área, o dia a dia acadêmico é uma busca permanente por aquilo de mais fundamental que está acontecendo, independentemente da matéria em estudo. Em outras palavras, a busca pelos porquês universais. O físico Abraham Hirsz Zimerman, docente do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp, move-se neste sentido há mais de sete décadas, com um viço de fazer inveja aos iniciantes.
Nesta quinta-feira, 13 de julho, professor Zimerman completa 95 anos de vida como um dos pesquisadores mais longevos do país. Bolsista sênior do CNPq, há menos de um mês, acompanhou a defesa da tese de doutoramento de seu orientado, Gabriel Vieira Lobo, intitulada “Transformações de Miura, Bäcklund e hierarquias integráveis”. Na imagem da videoconferência de apresentação da tese, captada da tela do computador, um sorriso largo em sintonia com o momento indica a lucidez de um docente que segue impressionando os orientados com seus conhecimentos e a sua memória.
Gabriel, 28 anos, convive com Zimerman desde o mestrado, iniciado em 2016. Como não se graduou em física, lembra que chegou ao IFT com algumas lacunas a serem preenchidas, momento em que foi apresentado a uma sistemática peculiar de estudo aplicada pelo decano do instituto com seus orientandos, chamada por ele de “método jornalístico”. Consiste em fazer uma primeira leitura do assunto em pauta e apresentá-lo ao professor, mesmo sem deter o conhecimento necessário para problematizá-lo em equações ou realizar exercícios teóricos. Gabriel não tinha estudado mecânica quântica na graduação, Zimerman indicou um livro introdutório sobre a temática, de autoria de Linus Pauling, cientista vencedor do Prêmio Nobel em Química e também do Nobel da Paz.
“Ele sentou comigo e falou ‘olha, você não entende dessa disciplina. Leia esse livro e depois venha aqui para expor para mim’. Foi assim que aprendi mecânica quântica e que começou nossa relação”, lembra Gabriel. “É bem legal este método porque ele é um cara que tem uma ampla formação e de trato muito agradável. Gosta de conversar sobre poesia, música, de discutir economia, gosta de discutir qualquer ideia. Para falar sobre mecânica quântica, ele indicou o livro e me contou sobre o Linus Pauling, que era químico.”
Nascido na Polônia em 1928, Abraham Hirsz Zimerman foi contemporâneo de Pauling e de pesquisadores que marcaram a história da ciência no Século 20. O Instituto de Física da USP guarda em seus arquivos, por exemplo, um ofício de 1957 enviado pelo professor Mário Schenberg, o maior nome da física teórica do Brasil, ao colega Abdus Salam, do Imperial College, de Londres, recomendando Zimerman para uma temporada no centro de pesquisas inglês. Abdus Salam foi um físico paquistanês, vencedor do Nobel de Física, que hoje dá nome ao Centro Internacional de Física Teórica (ICTP), em Trieste, na Itália.
De 1948 a 1951, Zimerman fez graduação em física na USP, onde Mário Schenberg foi diretor do Departamento de Física. Recomendado por ele, não conseguiu suporte financeiro para passar uma temporada em Londres, no Imperial College, no final dos anos 1950, quando Abdus Salam organizou o Departamento de Física Teórica daquele centro. “Zimerman sempre foi muito reservado. Mesmo após anos de convivência, algumas histórias dele ficamos sabendo por acaso”, afirma o professor José Francisco Gomes, que lidera ao lado de Zimerman o grupo de pesquisa no IFT sobre “Hierarquias Integráveis, Solitons e Invariância Conforme”.
Gomes foi orientado por Zimerman em seu mestrado, no início dos anos 1980. Desde então, exceto por alguns pequenos intervalos, divide sua trajetória acadêmica com ele no IFT-Unesp, onde ingressou em 1987. Atualmente, é o companheiro mais próximo, nos encontros online e presenciais e em co-orientações de pós-graduandos, como a de Gabriel Lobo. As reuniões do grupo de pesquisa ocorrem três vezes por semana, impreterivelmente às 15h, por videoconferência. Os contatos por telefone são bem mais frequentes. “Ele acompanha tudo pela internet e, quando vê algo interessante, liga para comentar”, conta José Francisco Gomes, mais conhecido entre os colegas pelo apelido “Frank”. “Tem influência dele em muito do que faço”, afirma o amigo.
Abraham Zimerman parou de frequentar a sua sala no câmpus da Unesp localizado na Barra Funda, em São Paulo, em março de 2020, quando eclodiu a pandemia de covid-19. Tinha 91 anos na época e era conhecido por sua assiduidade: mesmo depois de se aposentar, passou anos frequentando diariamente o prédio do IFT, inclusive aos sábados, como professor voluntário. Com a emergência sanitária, transferiu o computador pessoal e sua famosa pilha de papéis, caoticamente organizados, para a sala de seu apartamento em Santa Cecília, na região central da capital paulista. Foi lá que recebeu a equipe do Jornal da Unesp para uma conversa sobre a sua trajetória, com um sorriso e papéis impressos que indicavam os seus campos de pesquisa no IFT.
Zimerman tem uma jornada eclética pelos campos da física teórica. Autodidata, passou três décadas na academia sem o título de doutorado. Quando lhe foi exigido, por questões mais burocráticas do que comprobatórias de seus conhecimentos na área, ele orientou a si mesmo durante a década de 1980 em um doutorado no campo da supersimetria, área de pesquisa na qual foi um dos pioneiros no Brasil. Já transitou também por física de partículas elementares, teorias de rede e teorias de campos, dentro das chamadas física matemática e física estatística. “Por aqui, consigo acompanhar tudo. É uma maravilha de Turing”, diz Zimerman, apontando para a tela do seu PC e fazendo referência ao matemático Alan Turing, considerado o desenvolvedor do computador de uso geral, outro cientista que marcou a história do século passado.
Testemunha das primeiras iniciativas que deram origem ao septuagenário sistema de pós-graduação brasileiro, no início dos anos 1950, Abraham Hirsz Zimerman tem uma série de reconhecimentos ao longo de sua trajetória acadêmica, como a nomeação como membro titular da Academia Brasileira de Ciências, em 1992, a condecoração com a comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico, em 2007, e a outorga do título de Professor Emérito da Unesp, em 2010. Uma das passagens da qual mais se orgulha em suas sete décadas como pesquisador foi ter ajudado a criar o Programa de Pós-Graduação do IFT, nos anos 1970.
A ligação do físico com o instituto é quase umbilical. Embora tenha ingressado em 1954, dois anos depois da criação do Instituto de Física Teórica em São Paulo, Zimerman estava na mesma faixa etária dos fundadores, os irmãos Paulo e Jorge Leal Ferreira, e participou da formação e consolidação do padrão de nível internacional do instituto, que importou em sua primeira década cientistas alemães e japoneses para a sua direção científica inspirado no modelo do Instituto Max Planck, da Alemanha. O IFT foi uma iniciativa de caráter privado da família do engenheiro José Hugo Leal Ferreira, pai de Paulo e Jorge, e funcionou por décadas em um casarão na Rua Pamplona, próximo à Avenida Paulista, região central de São Paulo, mudando-se para o câmpus da Barra Funda só nos anos 2000.
Em 1987, a incorporação do IFT pela Unesp permitiu a Abraham Zimerman a continuidade dos trabalhos de pesquisa e de formação de físicos teóricos. São 44 mestres ou doutores orientados pelo docente desde a criação do PPG em física do instituto, que tem conceito máximo (7) da Capes no mestrado e no doutorado. O professor da Unesp José Roberto Ruggiero, de 70 anos, foi um deles. Zimerman o orientou no mestrado, no final da década de 70, e no doutorado, nos anos 1980. Segundo Ruggiero, hoje docente do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da Unesp em São José do Rio Preto, as lembranças dos tempos de pós-graduação são as melhores possíveis.
“Fiquei sete ou oito anos com o Zimerman e foi uma experiência muito boa. É uma pessoa afável, de trato tranquilo e um ser humano muito particular. O Zimerman passava boa parte do dia na biblioteca, lia muito e tinha um método interessantíssimo. Escolhia um assunto para que estudássemos e pedia o que ele chamava de leitura jornalística. Tínhamos que apresentar o artigo, mesmo sem ter o domínio completo dele. Esse traço da pedagogia dele me marcou muito porque você tinha que fazer força para entender em pouco tempo para contar o que tinha lido e explicar para ele”, recorda o docente da Unesp. “Pelo método dele, quem ouve ensina e quem fala aprende.”
Ao receber o jornalista em sua casa, Zimerman mais ouviu do que falou. Praticamente inviabilizou uma entrevista em seu molde mais tradicional. Fez a menção a Turing e conversou como tenta reproduzir, no ambiente doméstico, a cena acadêmica a que está acostumado, de reuniões “petit comité” para discutir equações do mundo da física teórica que às vezes demoram anos para serem resolvidas. Mostrou, timidamente, um certo otimismo com a retomada do investimento em ciência, mas não quis comentar sobre política. Foi gentil, sorridente e afável, como descreve quem foi orientado por ele.
Em uma videoconferência de uma doutoranda do IFT orientada pelo seu colega José Francisco Gomes, de seu grupo de pesquisa, o docente participou da discussão teórica apresentada pela estudante com os parceiros de longa data Clisthenis Ponce Constantinidis e Henrik Aratyn, professores da Universidade Federal do Espírito Santo e da Universidade de Illinois (EUA), respectivamente. Em meio às falas sobre equações diferenciais não lineares, professor Zimerman coçava o cavanhaque, levava a mão ao queixo e mantinha um gestual que demonstrava extremo interesse no debate. No encerramento do encontro online de uma hora, quando o docente José Francisco Gomes disse ao jornalista, que pedira para acompanhar as discussões de física estatística como ouvinte, o protocolar “se você tiver qualquer dúvida, me escreve”, Abraham Zimerman riu, ciente de que aquele ensino avançado de física estava longe do alcance do repórter.
O bom humor e a leveza são marcas do decano do IFT, bem como a pontualidade e o rigor com os estudos. Em casa, não gosta de ser interrompido quando está ensinando matemática para o neto de 13 anos e acompanha de perto as atualizações da vida acadêmica de outro neto, que está em um curso superior do Insper, Casado duas vezes, Zimerman tem quatro filhos do primeiro casamento e três enteadas do segundo.
Imagem de abertura: Marcelo Yamashita / ACI Unesp