No início do século 20, a cena cultural de São Paulo passava por um momento contraditório. Por um lado vivia-se uma época de efervescência, com novos teatros, como o Santana, o São José e o Boa Vista, sendo inaugurados num intervalo de poucos anos. Porém, a imensa maioria dos espetáculos que ocupavam os palcos vinha da Europa ou mesmo do Rio de Janeiro, e a produção artística local ainda crescia de forma tímida. Com o objetivo de mudar esse quadro, e fomentar no campo cultural a mesma proeminência que a cidade já desfrutava na economia, inaugurou-se, em 1906, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, escola de música e artes cênicas. O Conservatório esteve ativo por 100 anos, até 2006.
Ao longo de sua trajetória, a escola teve um grande número de alunos, embora tenha observado uma expressiva discrepância entre o destaque dado aos cursos de música e de teatro. A maioria optava pelo curso de música com especialidade em piano. A diferença de procura era tamanha que, durante algumas décadas, o curso de artes cênicas deixou de existir. “O Conservatório foi a primeira instituição de ensino musical do estado de São Paulo e uma das primeiras do Brasil”, explica o musicólogo Paulo Castagna, professor do Instituto de Artes da Unesp, câmpus de São Paulo. Pelos seus bancos passaram nomes como o compositor Francisco Mignone e os intelectuais Oneyda Alvarenga e Mário de Andrade. O próprio Mário de Andrade, aliás, seria professor da instituição posteriormente, ao lado do compositor Camargo Guarnieri e do instrumentista Isaías Sávio. “Passou por ali uma grande quantidade de professores muito representativos, a nata da música paulistana. Também havia muitos docentes da Europa, especialmente italianos”, diz Castagna.
Embora tenha fechado suas salas de aula, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo deixou como um de seus legados um vasto acervo documental, estimado em dezenas de milhares de itens. Sua coleção musicográfica foi considerada de utilidade pública por decreto municipal e posteriormente, em 2011, foi oficializada como patrimônio da Fundação Theatro Municipal de São Paulo. Desde 2021, Paulo Castagna vem se dedicando ao trabalho prévio de organização, codificação e inventariação dos documentos, visando sua preservação e disponibilização ao público. O projeto é uma parceria entre a Unesp, a Fundação Theatro Municipal de São Paulo e a Sustenidos Organização Social de Cultura.
O trabalho teve início em 2021, mas ganhou um novo impulso recentemente com a concessão de um apoio por parte da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “Obtivemos um auxílio regular, com duração até fevereiro de 2025, e graças a ele temos quatro bolsistas para trabalhar no processamento do material”, diz Castagna. A expectativa é concluir a organização física e a inventariação de todos os materiais da sessão no primeiro semestre de 2025. Posteriormente, o inventário do acervo será disponibilizado on-line para pesquisadores e interessados. “É um acervo remanescente, não é integralmente preservado. Sabemos que houve muitas perdas e extravios”, diz Castagna. Mesmo assim, estima-se que o total de documentos a serem catalogados e organizados chegue a 30 mil itens.
O acervo abriga impressos e manuscritos musicais, produzidos desde o início do século 19 até fins do século 20, que foram comprados ou doados. Destaca-se o material para piano composto por autores europeus, principalmente italianos, o que está relacionado com o fato de o ensino de música ter sido a atividade principal. “Mas também há peças para orquestra e banda, e peças solo para instrumentos como violão, cavaquinho, bandolim, coro e canto”, diz o pesquisador. Há também alguma documentação de música popular, mas o foco está no clássico. “É um repertório extraordinário, primeiro por conta das obras de compositores brasileiros que contém. Também se encontram nele edições antigas de obras, que não estamos habituados a ouvir, tocar ou estudar”, diz. Além da produção musical da escola, o acervo contém também documentos de cunho administrativo, que podem ajudar a reconstruir a história do Conservatório, mapear os métodos de ensino e identificar as identidades dos alunos e professores. Há ainda uma vasta coleção de livros e revistas sobre música, que foram comercializadas durante os séculos 19 e 20 no Brasil e na Europa.
O material documental está dividido em duas partes, identificadas como seções A e B. É a seção A que é objeto do atual projeto apoiado pela Fapesp, e a seção B será tratada posteriormente. Os materiais da seção A receberam um tratamento básico, que inclui a limpeza de infestações, o armazenamento em caixas e o inventário preliminar. Até agora, porém, o tratamento não havia envolvido a participação de pesquisadores especializados em música, algo essencial quando se trata de partituras e outros documentos da área. “Esse trabalho requer conhecimento musical e de leitura de partituras”, diz Castagna. Além do próprio musicólogo e dos quatro bolsistas, a equipe será integrada também pelo professor Paulo Moura, que é docente do IA e Coordenador da Coordenadoria de Ação Cultural da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Unesp.
“Encontramos um testemunho parcial do que foi a atividade musical em São Paulo e arredores. O acervo revelou um patrimônio musical que era desconhecido ou raro, e permitirá um estudo importante da atividade musical do passado paulista e brasileiro”, diz Castagna.
Foto da fachada do Conservatório (crédito: Cecília Bastos/Usp Imagens).