O valor da liberdade de expressão e a Constituição Federal

Poucos anos atrás, o ministro do STF Alexandre de Moraes defendia que até declarações errôneas estão dentro do escopo da liberdade de expressão. Mudanças de entendimento comprometem estabilidade jurídica e podem abrir espaço para tratamentos desiguais. Ideal é que limites a esse direito estejam previstos em lei.

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Decisões do Supremo Tribunal Federal que limitam a liberdade de expressão atingiram diversas empresas como Twitter, YouTube e Facebook, estabelecendo multas e banindo determinadas pessoas de plataformas digitais. Essas decisões são legítimas?

Certamente, não existe nenhum direito absoluto, sem limites. Na doutrina jurídica americana, temos uma conhecida frase do juiz da Suprema Corte Oliver Holmes, que disse: “a proteção mais rigorosa da liberdade de expressão não protegeria um homem que gritasse falsamente ‘fogo’ num teatro e provocasse pânico”. Colocar em risco a vida de centenas de pessoas é uma razão para limitar a liberdade de expressão.

Por outro lado, nossa legislação veda a censura. É o que os juristas chamam “limite do limite”, uma limitação do próprio limitador. A lei do Marco Civil da Internet garante a liberdade de expressão no seu art. 19, dizendo que bloqueios à internet devem se limitar a conteúdos ilícitos. Esse é o limite geral que a lei impõe. Crimes cometidos com emprego de expressões hostis – como ameaças, calúnias, falsos alarmes, assédio, conspiração ou chantagem – não são cobertos pela liberdade de expressão.

Mas há outros tipos de discurso que geram controvérsia. Pode o governo proibir o chamado discurso de ódio contra grupos vulneráveis, uma manifestação para queimar bandeiras, a divulgação de informações confidenciais, a defesa da desobediência civil? Esses são dilemas que todas as democracias têm de enfrentar.

O significado jurídico da liberdade de expressão é que os indivíduos devem manifestar ideias e opiniões através da linguagem oral e escrita, com gestos ou imagens, em qualquer plataforma e em uma variedade de assuntos, da política à religião, da economia à história, sem temer ou sofrer censura ou punição. 

Esse conceito tem elementos comuns em muitos países. O Judiciário nos Estados Unidos e as decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos consideram a liberdade de expressão mais ampla quando se criticam pessoas publicamente expostas, como políticos ou juízes com altos cargos, que devem aceitar críticas mais duras que a maioria da população, inclusive sarcasmo e até inverdades. É uma consequência de sua posição social e do envolvimento em controvérsias políticas.

Assim, pela regra da proporcionalidade dos direitos fundamentais, se deve privilegiar a liberdade de expressão e não a censura e a punição. Isso implica, também, um exame cuidadoso do risco que cada opinião pode implicar. Uma pessoa que grita “fecha o STF” não ameaça automaticamente o regime democrático. É dever do Judiciário comprovar que essas não são apenas palavras ao vento, mas realmente incitam outras pessoas à violência. Sem essa comprovação, feita à risca, podemos estar sujeitos a um regime de censura.

O direito de liberdade de expressão é amplo e engloba o direito de ofender. Como afirmou o filósofo Ronald Dworkin: “Em uma democracia ninguém, independentemente de quão poderoso ou importante seja, pode ter o direito de não ser insultado ou ofendido”.  Tal possibilidade constituiria censura e demonstração de intolerância. A opinião daquele que ofende exerce um papel fundamental em qualquer sociedade que pretende ser democrática. Nos faz refletir sobre nossa própria opinião, sendo o fundamento do pluralismo.

Na democracia, temos o direito de não concordar com a ordem posta. Essa é uma ferramenta de resistência e defesa de direitos fundamentais que chega à chamada desobediência civil. Foi o caso de Rosa Parks, que nos anos 1950 se opôs a uma lei que previa que os negros devessem ceder seu lugar para que brancos se sentassem nos ônibus no sul dos EUA. Parks permaneceu sentada, foi presa e sua prisão resultou em amplos protestos. Tal manifestação política tem como fundamento a liberdade que se expressa em uma conduta que viola a lei, mas que é valiosa manifestação democrática em prol da igualdade racial.

Voltando à legislação brasileira, o Marco Civil da Internet é uma norma de regulação do direito de liberdade de expressão que gerou muitas dúvidas em relação à sua aplicabilidade. O art. 19 da lei, por exemplo, já teve sua constitucionalidade questionada em duas ações junto ao STF, os RE 1.037.396 e RE 1.057.258. Neste debate, ressaltam-se duas questões de (in)segurança jurídica.

A primeira é que, para dirimir dúvidas de interpretação, a Corte Constitucional deve dar a palavra final e esses processos costumam demorar anos. O resultado é que os dispositivos de constitucionalidade duvidosa acabam sendo aplicados por muito tempo.

A segunda está ligada às mudanças de interpretação por parte dos Tribunais. Temos o caso do outdoor colocado por um cidadão para criticar o então presidente Bolsonaro: “Cabra à toa, não vale um pequi roído“. A questão foi julgada pelo Superior Tribunal de Justiça como uma questão de liberdade de expressão. O processo foi trancado em 2021. O relator do processo no STJ citou uma decisão do STF relativa à ADIn 4.451, requerida pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) em 2018, que teve como relator o ministro Alexandre de Moraes. Em seu voto, proferido naquele ano, Alexandre de Moraes escreveu o seguinte:

“O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional”.

Desde então, o ministro mudou seu entendimento, restringindo em suas últimas decisões a liberdade de expressão. Um exemplo dessa mudança, e que gerou grande controvérsia, foi o tratamento que deu às declarações veiculadas pelo youtuber Monark em seu canal na plataforma de vídeos. Nada proíbe que as Cortes Constitucionais mudem de opinião. Mas essas mudanças comprometem a estabilidade e geram tratamentos desiguais.

Quando um youtuber critica duramente instituições do Estado, ou mesmo defende a atuação legal de grupos nazistas, ele exerce seu direito de questionar o Estado. O que devemos analisar são os danos causados a outros direitos fundamentais. Assim, podemos decidir sobre o limite da liberdade de expressão.

O fundamento indicado na decisão do ministro Moraes de 2023 no caso Monark é a necessidade de proteger o Estado Democrático de Direito, dizendo que a liberdade de expressão não pode ser liberdade de agressão. Como dissemos, a posição do Ministro era muito mais liberal em 2018.

Esse aspecto do comprometimento da estabilidade se relaciona à concentração de poderes pelo STF e, individualmente, pelos ministros. Oscar Vilhena escreveu um artigo com o título “Supremocracia” no qual examinou o aumento de poderes da Corte constitucional. Diego Arguelhes e Leandro Ribeiro retomaram a discussão em um artigo sobre “Ministrocracia”, mostrando que temos, atualmente, uma concentração de poderes em Ministros da Suprema Corte, independentemente de votações no Plenário.

Essa concentração se torna mais problemática quando um ministro julga sozinho condutas que o afetam pessoalmente. Por exemplo, quando o investigado critica a atuação do ministro, ou mesmo o insulta. Afinal, a imparcialidade é um requisito básico do processo legal.

Por outro lado, existe a tendência de que se façam acusações ao Supremo Tribunal Federal de que o órgão estaria legislando. Na verdade, isso é consequência de omissões inconstitucionais  por parte do Poder Legislativo, que verificamos em questões relevantes.

Lembremos dos casos da união homoafetiva e da criminalização da homofobia, hoje reguladas pelo STF. Algo parecido ocorre na análise do aborto como decisão da mulher sobre seu próprio corpo, elemento que o legislador não regulamentou. Esse quadro resulta em omissões que violam direitos fundamentais que exigem atuação por parte da Suprema Corte para cobrir um vácuo legislativo.

A Lei que deve controlar as Fake News (Projeto de Lei 2.630 de 2020) deveria ser concreta e indicar em quais casos cabe intervenção do Judiciário. Ora, essa proposta de lei está repleta de normas vagas. Seria melhor, e necessário, que todos soubessem com precisão quais são os limites de um direito, e quais as possibilidades de atuação do Judiciário, do que esperar que, em cada caso, os juízes decidam seguindo opiniões pessoais.

Em resumo, em uma democracia constitucional não temos garantia de que não nos sentiremos desconfortáveis pelas reações de quem não acredita naquilo em que acreditamos. Há espaço para cretinos, mentirosos, reacionários, lunáticos e autoritários. Os limites devem estar previstos em Lei e somente serem invocados quando forem indispensáveis para assegurar outros direitos fundamentais em um regime que maximiza a liberdade e garante a igualdade de tratamento como um dos fundamentos da democracia.

Soraya Regina Gasparetto é Livre-docente em Direito Constitucional e professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus Araraquara. É integrante da comissão de juristas que elabora o projeto de lei do Código de Projeto Constitucional.

Dimitri Dimoulis é professor da FGV-Direito na Fundação Getúlio Vargas SP.

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