Gilberto Gil, 81 anos: um dos grandes nomes da MPB se mantém influente e é destaque até nos streamings de música

Pesquisador da Unesp analisa legado de seis décadas de carreira do compositor baiano, que concebeu uma obra em diálogo com o mundo e nunca desistiu de explorar novos caminhos com sua música.

“Eu soube que a música era minha linguagem, mesmo. Que a música ia me levar a conhecer o mundo, ia me levar a outras terras. Porque eu achava que tinha a música da terra e a música do céu.” (Gilberto Gil).

Considerado um dos principais nomes da música e da cultura brasileira em atividade, o cantor, compositor, escritor e multiartista Gilberto Gil celebrou 81 anos de idade em 26 de junho. Gil comemorou a data de forma discreta, recebendo homenagens de familiares e amigos, ao vivo e nas redes sociais. Mas, com certeza, deve estar pensando em celebrar também no palco. No caso, o palco do mais tradicional festival de jazz do planeta, o Montreux Jazz Festival. Gil estará entre as atrações do evento, que ocorre na Suíça até 15 de julho, e contará com outros grandes nomes como Bob Dylan e Iggy Pop. Sua participação no encontro em 2023 mostra que sua paixão pela música continua pujante, mesmo após mais de seis décadas de trajetória artística.

Gilberto Passos Gil Moreira nasceu em 26 de junho de 1942, em Salvador, Bahia. Era o primogênito de José Gil Moreira (1913-1991), médico formado pela Universidade da Bahia, e de Claudina Passos Gil Moreira (1914-2013), professora de ensino básico. No início da década de 1940, a família residia no Tororó, um bairro simples de Salvador. Devido a dificuldades em encontrar trabalho, o Dr. José Moreira decidiu mudar-se com a esposa para a cidade de Ituaçu, no interior do estado. O casal retornou temporariamente a Salvador para que a criança nascesse na capital. Três semanas após o nascimento, a família retornou a Ituaçu, e lá Gil passou toda a sua infância.

Sua relação com a música foi percebida ainda em tenra idade, quando o menino se encantava com os sanfoneiros, cantadores, violeiros e bandas locais. Eram artistas cujo trabalho remontava aos antigos trovadores medievais, que compunham versos de improviso, fazendo desafios entre si, e contando estórias e histórias. Esses cantadores chegavam às regiões mais longínquas do interior, e serviam como uma das principais fontes de informação da população nordestina brasileira. E outra fonte de descoberta eram as músicas das rádios do Rio de Janeiro e o repertório executado nos gramofones da cidade, que incluía cantores como Orlando Silva, Bob Nelson e Luiz Gonzaga.

Ele iniciou sua carreira musical tocando acordeon, ainda nos anos 50. À época, ele se inspirava na obra de Luiz Gonzaga, nas músicas que ouvia pelo rádio, nas procissões que assistia na porta de casa e na cultura sonora do sertão. Na sequência, tomou contato Dorival Caymmi, cujas canções praieiras retratavam um mundo litorâneo, tão diferente do universo em que o menino Gilberto vivia. Posteriormente, vieram João Gilberto e a Bossa Nova. Posteriormente, Gil deixou de lado o acordeon e empunhou o violão, ao qual, muitos anos depois, se juntaria a guitarra elétrica, na qual compõe as singulares harmonias de sua obra até hoje.

Em 1959, fez parte do conjunto “Os Desafinados”, que se apresentava em pequenos eventos em Salvador. Em seguida gravou alguns singles, demos e se apresentou em programas de televisão. Suas canções desde cedo retratavam seu país, e sua musicalidade tomou formas rítmicas e melódicas muito pessoais. Seu primeiro LP, Louvação, lançado em 1967, concentrava sua forma particular de musicar elementos regionais, como nas conhecidas canções “Louvação”, “Procissão”, “Roda” e “Viramundo”.

Em 1963 conheceu o amigo Caetano Veloso, na Universidade da Bahia. Ali tinha início uma das grandes parcerias da música brasileira, e que lançaria as bases para um movimento açambarcava a música, o cinema, as artes plásticas e o teatro, numa perspectiva de diálogo com a produção artística mundial. A Tropicália, ou Movimento Tropicalista, envolveu artistas autênticos e plurais como Gal Costa, Tom Zé, Rogério Duprat, José Capinam, Torquato Neto e os Mutantes, entre outros. Este movimento foi recebido com cara feia pela ditadura vigente no Brasil, que enxergou, em seu tom libertário, uma ameaça à sociedade, e acabou por exilar seus mentores, Gil entre eles.

O exílio em Londres contribuiu para colocar Gil em contato com novos artistas de diferentes partes do mundo, e ampliar a influência que ele já sofria de nomes como Beatles, Jimi Hendrix e de todo o universo pop que despontava na época. Este contexto estimulou Gil a gravar um disco em Londres, com canções em português e inglês.

Em 1972, ao retornar ao Brasil, o artista baiano deu continuidade a uma rica produção fonográfica e cultural que perdura até os dias atuais. São quase 60 álbuns e em torno de 4 milhões de cópias vendidas, tendo sido premiado com 9 Grammys. Entre LPs, CDs e DVDs, despontam títulos que se tornaram clássicos, como Expresso 2222, Refazenda, Viramundo, Refavela, Realce, UmBandaUm, Dia Dorim, Raça Humana, Unplugged MTV, Quanta, Eu Tu Eles, Kaya N`Gandaya, Banda Dois, Fé na Festa, Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo com Orquestra… A lista é extensa.

Um de seus mais recentes trabalhos, Gilbertos Samba, é uma reinterpretação de canções gravadas por João Gilberto é uma homenagem do “discípulo para o mestre”. Já em 2018, lançou o álbum Ok Ok OK em que pode falar da família, da doença que experimentou e questionar o posicionamento que a sociedade lhe exige. O álbum foi vencedor do Grammy Latino em novembro de 2019 na categoria Melhor Álbum de Música Brasileira.

Durante todos esses anos, Gil realizou diversas turnês pelas Américas, Ásia, África, e Oceania, e conquistou um público cativo em todas essas regiões citadas. Sempre disposto a realizar apresentações nacionais e internacionais para cada novo projeto, Gil é presença confirmada anualmente nos maiores festivais e teatros da Europa e segue consolidando sua obra.

Entre 2003 e 2008 atuou como Ministro da Cultura, e passou a circular também pelo universo sócio político, ambiental e cultural internacional. No âmbito da pasta da cultura, desenhou e implementou novas políticas que foram desde a criação dos Pontos de Cultura até a presença protagonista do Brasil em Fóruns, Seminários e Conferências mundo afora, trabalhando temas que passaram por novas tecnologias, direito autoral, cultura e desenvolvimento, diversidade cultural e o lugar dos países do sul do planeta no mundo globalizado. Gil foi também embaixador da ONU para agricultura e alimentação. Em 2021, foi eleito para a cadeira de número 20 da Academia Brasileira de Letras.

Thiago Vieira, historiador, doutorando e membro do Grupo de Estudos Culturais do câmpus da Unesp em Franca, diz que a relevância musical e cultural de Gilberto Gil está relacionada à amplitude de sua obra e relação com outros povos e culturas. “Gil é alguém que contribuiu efetivamente para a consolidação do que chamamos de MPB. Ele traz inovações estéticas e ajuda a estruturar tudo isso desde a década de sessenta. E não apenas pela sua filiação ao Movimento do Tropicalismo ao lado de outros grandes artistas, mas como uma herança, algo diferente com esse traço de trazer contribuições de outras partes do mundo, pensar outros ritmos, de somar a música brasileira com a música universal”, destaca. “Além disso, Gil é um artista vinculado à cultura negra da diáspora. Um artista que se vincula à música africana, ele insere as tradições africanas na sua música, se aproximou dos cantores negros norte-americanos, artistas jamaicanos, enfim, ele tem uma singularidade incrível que colaborou na construção da música da segunda parte do século 20 dentro e fora do país. Ele é um artista do mundo, sua relevância rompe as fronteiras do Brasil”.

De acordo com o pesquisador da Unesp, dentre sua vasta trajetória, um momento significativo da carreira de Gil foi o Festival de Música Popular Brasileira de 1967, ou seja a terceira edição do Festival de MPB organizado pela TV Record. O festival aconteceu entre 30 de setembro e 21 de outubro daquele ano, com todas as apresentações sendo realizadas no Teatro Record Centro, em São Paulo.

“Foi um grande momento para o Gil. Primeiramente por haver um processo de incursão pelo nacional popular. Em segundo pelo fato de aparecer o Tropicalismo, uma outra dimensão estética, ou seja, a canção estava se transformando. É justamente naquele momento que ele se coloca com uma composição provocadora, levando a guitarra elétrica e radicalizando a estrutura da época. No caso ele levou uma canção extremamente interessante que foi ‘Domingo no Parque’, acompanhado dos Mutantes, sendo considerada marco inicial da Tropicália. Uma canção que aborda um conflito suburbano o qual ganha uma dimensão épica”, relata. “Vale sinalizar que foi um festival marcado por excelentes músicas e composições. A canção vencedora do festival foi “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam, interpretada pelo primeiro e por Marília Medalha. Domingo no Parque ficou em segundo. No entanto, outras canções notáveis foram apresentadas originalmente para o festival, como Roda Viva, de Chico Buarque e Alegria, Alegria, de Caetano Veloso”.

Ainda de acordo com Vieira, esse período também colabora para impulsionar a imagem do Gil, pois ele começou a aparecer de forma corriqueira nos programas de televisão, inclusive, no final da década de 60, os tropicalistas ganharam um programa na TV Tupi intitulado “Divino Maravilhoso”, ampliando espaços e reverberando novas nuances dentro da MPB.

Para o doutorando da Unesp, Gil segue influenciando novas gerações e colaborando na continuidade da construção da música brasileira. “É muito significativo o papel intelectual dele dentro da música popular brasileira. O Gil colabora nos moldes da canção, em termos de MPB, não seríamos os mesmos sem a contribuição do Gil, assim como Caetano e Milton Nascimento. Ele tem uma preocupação em estar vinculado ao que é bom, contatos com os mais novos, mas também com músicos de outras gerações. Isso tudo mostra que ele permanece ativo. Atualmente, se apresenta com seus netos, com canções pertinentes, destaques nas plataformas de streams, e são esses meninos que os acompanham em suas turnês atuais. Então, nós precisamos olhar, ouvir e conhecer a obra de Gilberto Gil.  Ela é um referencial para todos”, diz.

Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.