Exposição e programação comemorativa celebram 60 anos de obra-prima do escritor João Antônio

O livro "Malagueta, Perus e Bacanaço" projetou a cultura da periferia para as rodas literárias, e valeu ao então autor estreante dois prêmios Jabuti. Acervo do jornalista, que será apresentado durante as comemorações, está sob guarda da Unesp.

“À esquina da Santa Efigênia toparam Carne Frita, valente muito sério, professor de habilidades. Havia na cidade e ainda noutras cidades bons entendedores e tacos atilados com capacidade para fechar partidas, liquidando as bolas (…). Eram artistas do pano verde. Mas Frita… quem entendia de sinuca era ele.”

O trecho acima descreve uma cena típica da boemia paulistana, tendo como pano de fundo o popularíssimo jogo de sinuca, parte da cultura brasileira. Esse é o métier de Malagueta, Perus e Bacanaço, tipos paulistanos que exploram as profundezas da metrópole, da Lapa à Santa Ifigênia, de Pinheiros à Barra Funda. Pela escrita de João Antônio Ferreira Filho, ou apenas João Antônio (1937-1996), protagonistas da então marginal “cultura de boteco” ganharam espaço nas altas rodas literárias dos principais centros urbanos. 

Livro de estreia do escritor, a novela-conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, de 1963, venceu dois prêmios Jabuti no ano seguinte. Um na categoria “contos, crônicas e novela” e outro como autor revelação, fato raro e uma reverência do meio intelectual. Este ano, a obra está completando seis décadas na prateleira daqueles livros evocados e valorizados tanto por boêmios quanto por acadêmicos.

Livre-docente em teoria literária, a professora Sílvia Maria de Azevedo, da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp, câmpus de Assis, classifica a obra sexagenária de João Antônio como ponto de inflexão para a “novela-conto” na literatura brasileira. “O conto curto se circunscreve, em princípio, a uma determinada situação, participando um número muito pequeno de personagens e quase sempre ocorrendo em um espaço fechado, que vai ao encontro da própria circularidade que a narrativa propõe. O que percebemos na narrativa do João Antônio é que, diante desse formato, o seu conto ou novela não se encaixa, porque temos vários espaços. Mas, se nós pensarmos na circularidade, ou seja, tudo se passa dentro daquele círculo, essa ideia encontra ressonância em sua obra”, diz a docente.

Em “Malagueta, Perus e Bacanaço”, três malandros, jogadores de sinuca, fazem uma jornada repleta de percalços pela madrugada de São Paulo, com menções a personagens reais do mundo da sinuca, no qual a reputação dos bons jogadores era construída no boca-a-boca suburbano.

“Carne Frita era o ídolo do meu pai”, afirma Daniel Pedro de Andrade Ferreira, filho de João Antônio, sobre o personagem homenageado no livro, citado no excerto que abre este texto. Carne Frita era o apelido do sergipano Walfrido Rodrigues dos Santos (1929-2019), que se radicou em São Paulo no final dos anos 1950. A obra de estreia de João Antônio ajudou a propagar a fama de pelé da sinuca do “mestre” Carne Frita.

Comemoração

A excelência literária e o apelo popular levaram “Malagueta, Perus e Bacanaço” para os cinemas em 1977, em uma adaptação intitulada “O Jogo da Vida”, dirigida por Maurice Capovilla e com os atores Lima Duarte, Gianfrancesco Guarnieri e Maurício do Valle interpretando os protagonistas da novela-conto. O título da adaptação cinematográfica, de certo modo, reafirma o caráter universal da obra premiada. Os 60 anos do livro de estreia de João Antônio são o mote para o evento comemorativo organizado pelo Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (Cedap) e iniciado nesta segunda-feira, 12 de junho, no câmpus de Assis. Na programação, palestras, simpósios, oficinas e atividades culturais, entre as quais um campeonato de sinuca, para discutir a universalidade da obra do escritor e manter viva a sua memória. 

“Vou levar para a Unesp dois dos três Jabutis que o meu pai recebeu”, disse ao Jornal da Unesp o filho do escritor, que vai participar do evento no câmpus de Assis – além dos dois Jabutis recebidos por “Malagueta, Perus e Bacanaço”, João Antônio voltou a receber o prêmio em 1993, com o livro “Guardador”.

Dois anos após a morte do escritor, no bairro carioca de Copacabana, onde vivia, o seu acervo pessoal foi depositado na Unesp, cedido pelo filho Daniel Ferreira em um acordo intermediado pela professora Tânia Celestino de Macedo, amiga pessoal de João Antônio.

“Sabia da riqueza do acervo e como ele preservava cartas, críticas e a biblioteca”, lembra a docente. Segundo ela, o escritor era na vida privada um assíduo consumidor de livros e tinha como principais influências literárias os brasileiros Graciliano Ramos e Lima Barreto e o russo Fiodor Dostoiévski.

Disponível a pesquisadores, o Fundo João Antônio sob a guarda do Cedap é composto por documentos produzidos ao longo da vida do escritor, incluindo objetos pessoais e o mobiliário que utilizava para escrever. Um dos itens mais simbólicos do acervo é uma pequena caderneta na qual ele anotava as gírias que colhia na periferia e que marcam a linguagem coloquial dos personagens.

Profissão: repórter

Forjado no jornalismo diário, João Antônio escreveu “Malagueta, Perus e Bacanaço” inspirado em histórias que levantava ou testemunhava nas ruas da capital. Durante a escrita, superou um contratempo importante: os originais do livro foram destruídos em 1960 durante um incêndio, obrigando João Antônio a reescrevê-los, apoiado na memória de repórter. 

“Malandros, mascates, engraxates, prostitutas, homossexuais, crianças abandonadas, sem falar nos jogadores de sinuca, que frequentavam botequins, bodegas ou biroscas e tinham o futebol ou o jogo de sinuca quase como única opção em periferias ou bairros operários. João Antônio deu voz a essas figuras, com seus dramas pessoais e coletivos, e as tornou universais na literatura”, afirma o pesquisador Josué Santana, doutorando na Faculdade de Ciências e Letras do câmpus de Assis da Unesp e estudioso da obra do autor.

Apontado como um dos precursores do conto-reportagem, o escritor nasceu em São Paulo, foi criado no bairro proletário de Presidente Altino, em Osasco, e teve carreira jornalística expressiva e diversa: trabalhou como repórter no Jornal do Brasil, no Jornal da Tarde, nas revistas Claudia, Manchete e Realidade; foi cronista em O Globo e na Tribuna da Imprensa; e atuou também em veículos da imprensa alternativa, como em O Pasquim.

Daniel Ferreira diz que uma das características do trabalho do pai era mergulhar integralmente nas suas histórias, vivenciá-las como se fizesse parte delas. “Quando meu pai quis escrever “Casa de Loucos”, ele pediu pra minha mãe interná-lo em um hospício”, conta o filho do escritor.

No câmpus de Assis da Unesp, estão abrigados cerca de 4.800 livros da biblioteca particular de João Antônio, além de 500 periódicos e 383 documentos audiovisuais. Há alguns textos em outros idiomas, principalmente em alemão e espanhol. A reprodução para fins de pesquisa é livre, desde que respeitadas as condições de preservação dos documentos. O acervo do Fundo João Antônio é o mais pesquisado do Cedap.

SERVIÇO
Acervo João Antônio em perspectiva:
60 anos de Malagueta, Perus e Bacanaço
Local: Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa “Profa. Dra. Anna Maria Martinez Corrêa” (Cedap), câmpus de Assis da Unesp
Datas: 12 a 14 de junho de 2023
Horário: 9h às 22h
Programação: https://www2.unesp.br/portal#!/acontece/detalhes/v/id::1103/titulo::acervo-joao-antonio-em-perspectiva-60-anos-de-malagueta-perus-e-bacanaco
Contato: cedap.assis@unesp.br