Aos poucos, o litoral norte de São Paulo vai se recuperando da devastação que varreu a região em fevereiro passado, que resultou em 65 mortos, 560 desabrigados e a decretação de estado de calamidade pública por 180 dias nas cidades de Bertioga, Guarujá, Ubatuba, Ilhabela, São Sebastião e Caraguatatuba. Já há sinais de que o poder público não está se preocupando apenas em reconstruir, e sim em evitar que novas tragédias aconteçam. Mas ainda parece carecer de estratégias adequadas para isso.
Um exemplo foi a operação que a Polícia Militar desencadeou em 28 de março, um mês após a tragédia, no bairro de Sítio Velho, em São Sebastião. Os PMs chegaram de surpresa e anunciaram aos moradores o objetivo de desapropriar casas localizadas em áreas de risco. Na prática, a ação pretendia demolir essas residências, o que gerou decidida oposição por parte dos moradores locais. Diante da mobilização dos populares, a PM foi obrigada a se retirar.
Facilitar a atuação preventiva do poder público nas áreas de risco, com o intuito de evitar novas tragédias na região do litoral norte de São Paulo, é o objetivo de uma pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desastres Naturais. O estudo apresenta um levantamento das áreas de risco de alagamentos e inundações no município de Caraguatatuba, e também traz propostas de intervenções urbanas que podem reduzir as chances de perda de vidas humanas na eventualidade de novos fenômenos naturais extremos, como chuvas fortes e duradouras. A pesquisa foi conduzida pelo arquiteto, professor e pesquisador Aloísio Lélis de Paula. O programa é fruto de parceria entre o Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Unesp, e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden),
De Paula conduziu um estudo sobre a incidência de alagamentos e inundações na bacia do rio Juqueriquerê, localizado na cidade de Caraguatatuba. A pesquisa foi apresentada na tese “Análise participativa da criação de risco de desastres nas cidades costeiras brasileiras: aproximar universidades e comunidades através de métodos de ciência cidadã”. O estudo teve como orientadores Tatiana Sussel Gonçalves Mendes, docente do Departamento de Engenharia Ambiental do ICT, e o sociólogo Victor Marchezini, pesquisador do Cemaden.
Aposta na ciência cidadã
O doutorando, que é arquiteto e professor universitário, deu início em 2020 a um projeto de extensão intitulado “Rios urbanos: rio Juqueriquerê, é preciso preservar”, com o objetivo de contribuir para a sustentabilidade ambiental da região. Para obter os dados, o docente optou pela abordagem conhecida como ciência cidadã, engajando os gestores públicos, moradores locais e os estudantes de arquitetura e urbanismo que também residem na região. Bastante comum em alguns países, as iniciativas de ciência cidadã utilizam metodologias participativas acessíveis a pessoas comuns, frequentemente em colaboração com pesquisadores profissionais. Essas metodologias muitas vezes se valem de ferramentas digitais, como aplicativos e celulares, para permitir que qualquer pessoa, em qualquer lugar, possa submeter informações por meio da internet, auxiliando assim os pesquisadores profissionais a coletarem grande volume de dados com um investimento menor.
A opção por envolver os alunos foi estratégica para alcançar um nível de detalhamento inédito. “A abordagem da ciência cidadã permitiu aproveitar o conhecimento das próprias pessoas que vivem no lugar e convivem com os riscos de acidentes e desastres, e que podem explicar isso de alguma maneira”, diz o pesquisador. O resultado foi um mapeamento das zonas mais críticas no território do município (veja arte).
Algumas dessas zonas estão situadas na área de serra e nos seus arredores, outras em regiões de várzea do Juqueriquerê e de seus afluentes onde a ocorrência de enchentes tem sido cada vez mais comum. E não é que, necessariamente, as pessoas que se instalaram nesses locais ignorem que estão se expondo ao perigo, explica o pesquisador, ao comentar a questão das ocupações na serra. “Elas ocupam essa área de risco porque é o espaço que há. Boa parte dos moradores daquele bairro trabalham nos condomínios do outro lado da rodovia Rio-Santos, e não gostariam de morar longe. Ali, basta atravessarem a pista para chegarem ao trabalho.”
Ocorre que a camada de terra que recobre estas encostas é extremamente fina. “Quando ocorrem chuvas intensas e o índice pluviométrico aumenta, a encosta recebe essa água, a terra se movimenta e ocorrem os deslizamentos”, diz o arquiteto. Quanto mais próximas as casas estiverem da serra, maiores serão os danos. As ocupações situadas no pé da serra, que foram construídas com fragilidade e geraram escavações, são destruídas pela terra que desce das encostas. “A ocupação das áreas de risco é uma tragédia anunciada. Ficar na beira do rio é esperar a enchente, morar na encosta é aguardar que o morro caia”, diz.
Contudo, ele ressalta que a população permanece nessa condição não por opção, mas pela falta de alternativas melhores. Os moradores desses locais são forçados a conviver com alagamentos, habitações em más condições, dificuldades de transporte, deficiências de infraestrutura urbana, de coleta de lixo, de iluminação pública e “de, uma infinidade de coisas que quem tem muitas vezes nem se dá conta. Essas pessoas carecem de saneamento básico, de água potável, de coleta de esgoto. É muito difícil”, diz o arquiteto.
O trabalho de mapeamento das áreas de risco permitiu também a identificação das edificações situadas dentro das áreas mais perigosas, num total que ultrapassou a marca de 400 imóveis. Este é um obrigatório primeiro passo para uma eventual transferência de seus habitantes para um lugar seguro. Após a remoção desses imóveis, a proposta, no caso das áreas sujeitas a enchentes, passa pela recuperação das margens dos rios, principalmente com o resgate da mata ciliar e a construção de intervenções urbanas que possam integrar as duas margens dos rios.
Mas a possibilidade de que tal transferência ocorra num curto ou mesmo no médio prazo não está dada. “A municipalidade não tem força suficiente para desocupar estas faixas marginais de proteção e áreas de risco, principalmente pela quantidade muito grande de edificações”, analisa o pesquisador.
Para que essas propostas venham a ser implementadas, será necessária uma integração entre os setores de urbanismo, habitação e meio ambiente por parte da administração pública. Como parte da investigação, os alunos de de Paula organizaram um seminário para o qual foram convidados os secretários municipais das três áreas. “Os estudantes conversaram com os gestores públicos sobre os problemas que eles enfrentam, e analisaram o território para identificar, em detalhes, quais eram as carências “, diz o docente.
Uma das estudantes foi Marina Gonçalves de Mattos, aluna do programa de mestrado em desastres naturais, que ingressou no projeto no primeiro semestre de 2020, quando ainda era aluna do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo. “Formamos um grupo de pessoas e fomos, com nossos celulares, coletar alguns dados. Primeiro fizemos a análise de toda a orla do rio Juqueriquerê, para conhecer o lugar, porque mesmo que a gente more aqui, não conhecemos tudo”, diz. Após o mapeamento do território, cada grupo de alunos ficou responsável pela coleta de dados em determinada área.
Ela relata que também colaborou com a pesquisa por meio de uma iniciação científica. “Em 2021, a rotina foi de leitura de relatórios e levantamento da legislação. Com os dados que levantei, faço meu TCC sobre a regeneração urbana no setor que estudei no projeto de extensão”, diz. Os dados em questão foram colhidos através de um aplicativo instalado nos celulares dos próprios alunos. Denominada “Monitorando a Cidade” (Promise Tracker, no original), a aplicação foi desenvolvida no final de 2013 pelo Centro de Mídia Cívica da universidade estadunidense Massachusetts Institute of Technology (MIT) com o objetivo de apoiar o cidadão em processos de controle social e acompanhamento de promessas políticas. Nele, é possível coletar informações sobre infraestrutura urbana, saneamento básico, mobilidade urbana, trânsito, dentre outros.
“Esses dados permitiram uma análise georreferenciada mais detalhada e atual da área de estudo, que resultou em um diagnóstico ambiental, de vulnerabilidade e de risco de desastres”, diz Tatiana Sussel Gonçalves Mendes, docente do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) e co-orientadora do projeto. “Essas informações foram utilizadas para complementar a análise espaço-temporal realizada a partir de uma série histórica de dados de uso e cobertura da terra, usando imagens da série dos satélites Landsat, e de pesquisa de documentos e fatos com o objetivo de compreender como se deu a evolução da ocupação territorial na região e, como consequência, a produção do risco de desastres”, diz.
Gonçalves é engenheira cartógrafa especializada em sensoriamento remoto, nome dado a um conjunto de técnicas para obter informações sobre a natureza e o meio ambiente usando imagens captadas por sensores em satélites ou aeronaves. Essas imagens são processadas por algoritmos de computador que permitem melhorar sua qualidade e extrair informações úteis. O passo seguinte é a inserção dessas informações em um Sistema de Informação Geográfica (SIG). “A integração dessas informações em ambiente de Sistema de Informação Geográfica permite uma análise espacial do meio físico ou dos fenômenos que nele ocorrem, como inundações e deslizamentos de terra, de modo a contribuir para a sua compreensão e para o acompanhamento de sua evolução”, diz ela.
Possibilidade de replicação
O pesquisador do Cemaden Victor Marchezini, orientador do estudo, destaca a possibilidade de replicação da metodologia em outras áreas brasileiras como um importante avanço da pesquisa, uma vez que ela foca a análise de vulnerabilidades das zonas suscetíveis às inundações e aos deslizamentos. “Todas estas técnicas, como uso da análise urbana e ambiental em combinação com imagens de sensoriamento remoto e a coleta de dados em campo através do uso de aplicativos, podem ser replicadas. E o mais importante é que elas dispõem de metodologias para envolver quem vive nessas localidades mais sujeitas aos deslizamentos, inundações e outras ameaças.”
Marchezini também destaca a participação dos alunos estudantes no projeto que resultou na pesquisa de Aloísio Lélis de Paula. Eles cursam graduação em Arquitetura e Urbanismo em uma universidade de Caraguatatuba. “Desde o início, os estudantes voltaram-se aos problemas do território onde estavam, e puderam criar um engajamento com gestores públicos. O fato de que a pesquisa lida com os problemas do próprio território, a necessidade de identificar os problemas, mas também propor soluções e mostrar aos gestores públicos essas possibilidades, tudo isso é uma relação importante da metodologia”, diz. “Não é uma pesquisa que, uma vez concluída, entrega-se o produto final. As pessoas se envolvem ao longo do processo. Elas podem acompanhar as etapas e aprender a metodologia. Quem sabe, no futuro, professores ou outros profissionais também possam replicar a metodologia nas suas esferas de trabalho”, diz.
O sociólogo aponta questões levantadas pela pesquisa de doutorado. “Nesse processo de reconstrução e recuperação, o que os governos farão para conter a especulação imobiliária? Como as autoridades planejarão a ocupação do espaço para evitar que novas áreas de risco de inundação e deslizamento sejam criadas ou intensificadas?”, indaga.
Imagem acima: Equipes da Prefeitura de Caraguatatuba promovem limpeza de ruas atingidas pelas chuvas (Foto: Divulgação/Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Caraguatatuba)