Mesmo celebrada em dia nacional, Língua Brasileira de Sinais ainda esbarra em preconceito e discriminação

Libras e outros sistemas linguísticos visuais-motores são estigmatizados devido à falsa ideia de que seriam menos complexas do que línguas orais.

“Para os surdos, a língua de sinais é um traço de identidade cultural.”  É dessa forma que a linguista e pesquisadora Angélica Rodrigues, que integra o Departamento de Linguística, Literatura e Letras Clássicas, da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara, expressa a importância da Língua Brasileira de Sinais (Libras) para o cotidiano dos surdos e a possibilidade de estabelecerem relacionamentos com o mundo ao redor. Felizmente, essa centralidade vai sendo, aos poucos, mais reconhecida também pela comunidade ouvinte, e uma das demonstrações deste reconhecimento é a celebração, a cada dia 24 de abril, do Dia Nacional da Língua Brasileira de Sinais. Mas, como mostram os estudos da própria docente da Unesp, ainda há muito o que caminhar para diminuir o preconceito contra os surdos e o uso da Libras no Brasil.

A Libras passou a ser “reconhecida como meio legal de comunicação e expressão” há 21 anos, e segundo dados da World Federation of the Deaf (WFD), o Brasil é um dentre 76 países  que possui sua língua de sinais nacional. Em 2019, pela primeira vez, a Pesquisa Nacional de Saúde, conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), levantou dados a respeito do uso de Libras no Brasil. No levantamento,  cerca de 60% das pessoas entrevistadas com idade entre cinco e 40 anos que se declararam surdas, ou seja, que não conseguem ouvir de modo algum, afirmaram utilizar Libras, totalizando aproximadamente 43 mil respondentes. Mas determinar efetivamente quantas pessoas utilizam línguas de sinais no Brasil é um desafio bem mais complexo. Isso porque, além de existirem ouvintes que sabem Libras, também há surdos que não sabem a língua oficial, mas utilizam línguas de sinais de família ou de suas próprias comunidades e não são contabilizados pelas estatísticas.

Falta de estímulo ainda é problema

Infelizmente, ainda é comum que pessoas surdas sejam privadas do contato com a Libras em detrimento da oralização, isto é, o aprendizado e a utilização da comunicação oral, e também do uso de implantes cocleares e próteses. “Quando o surdo nasce numa família de ouvintes não sinalizantes, não há estímulo para o aprendizado da Libras”, diz Rodrigues. “O estímulo deveria ser proporcionado desde o momento em que a criança tivesse o diagnóstico. Mas sabemos que isso não acontece, tanto por razões socioeconômicas como por questões culturais”, diz.

Tal privação, entretanto, pode ter um impacto no desenvolvimento das crianças surdas. “Quanto mais cedo a criança surda tem contato com a língua de sinais, mais rápido vai ser o seu processo de aquisição e o seu desenvolvimento. A criança poderá se desenvolver no mesmo ritmo de uma criança ouvinte. Quando isso não acontece, o desenvolvimento da criança é retardado, por exemplo, na fase escolar”, explica a professora. No caso das crianças filhas de pais surdos sinalizantes, o aprendizado da língua de sinais ocorre de modo similar ao processo de aquisição da linguagem oral por crianças ouvintes. Ela diz que a aquisição da Libras durante a primeira infância torna a aquisição do português escrito mais fácil, porque a Libras funciona como uma base para o aprendizado do português como segunda língua. “O que acontece com a maioria das crianças é que elas vão ser alfabetizadas em português, que é uma língua que elas não conhecem, e vão frequentar a mesma aula que as crianças ouvintes que já falam português. Por isso, a alfabetização dos surdos fica comprometida”, diz Rodrigues.

A privação linguística na infância pode ser caracterizada, ainda, como uma forma de preconceito contra as línguas de sinais. “Vivemos em uma sociedade capacitista. As pessoas com deficiência são alvo de preconceito, pois são vistas como menos capazes. Esse preconceito, para os surdos, chega na forma de desrespeito a sua singularidade linguística. Para os surdos, a língua de sinais é um traço da sua identidade cultural, e não reconhecer essa língua como uma língua é um tipo de preconceito”, diz Rodrigues.

A falsa ideia de simplicidade

A questão é discutida por Angélica Rodrigues em parceria com Roland Pfau, da University of Amsterdam, em um capítulo do livro recém-lançado “Understanding Linguistic Prejudice”, de cuja organização Rodrigues participou, juntamente com as professoras Gladis Massini-Cagliari e Rosane Andrade Berlinck, também da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara. No capítulo, os autores debatem a inferiorização de línguas de sinais a partir da ideia de que são estruturalmente menos complexas e, portanto, não são consideradas línguas. O mesmo fenômeno ocorre nas línguas orais, por exemplo, quando variações da língua portuguesa consideradas populares (em oposição a normas cultas) são taxadas de inadequadas, ou quando as línguas indígenas são classificadas como rudimentares. Mas, no caso das línguas de sinais, esse descaso seria ainda mais intenso. “De um modo geral, as pessoas tendem a pensar que as línguas de sinais são menos complexas. Isso está diretamente associado ao fato de ser uma língua associada a uma deficiência. Então, é como se fosse menos língua do que uma língua oral”, diz Rodrigues.

Ainda que a Libras seja considerada a língua oficial da comunidade surda no Brasil, outras línguas de sinais se desenvolveram em pequenas comunidades espalhadas pelo país. “A gente chama de línguas minoritárias, línguas familiares, línguas de microcomunidades surdas. Um exemplo são as línguas de sinais indígenas. Nas comunidades indígenas que têm muitos surdos, a gente tem documentado línguas de sinais, como os Ka’apor, por exemplo, no Maranhão”, explica a pesquisadora. Língua de Sinais Ka’apor Brasileira (LSKB) identificada no início da década de 1980 pela pesquisadora Lucinda Ferreira foi a primeira língua de sinais indígena conhecida no Brasil. Segundo Rodrigues, pesquisas mais recentes documentaram a utilização de línguas de sinais entre os povos indígenas Terena, Kaingang e Macuxi.

Pequenos vilarejos onde existem comunidades surdas também foram berço para línguas de sinais. É o caso povoado Várzea Queimada, no município de Jaicós, no sul do Piauí, onde nasceu a Cena, língua de sinais que não tem correspondência com a Libras e que vem sendo estudada por linguistas. Além da Cena, outras seis línguas de sinais identificadas nas localidades de Boa Vista, em Roraima, Buriti dos Lopes, no Piauí, Tiros, Minas Gerais, Umuarama, no Paraná, Vila de Fortalezinha, na Ilha de Maiandeua, no Pará, Centro Novo do Maranhão e Centro do Guilherme, no Maranhão estão sendo estudadas por um grupo de pesquisadores, coordenados por Angélica Rodrigues e com apoio da Fapesp. “O que é interessante, seja nas línguas de sinais indígenas ou nessas línguas de microcomunidades ou familiares, é que há uma diferença em relação à comunidade surda dos grandes centros. Nos grandes centros os ouvintes não aprendem língua de sinais, mas nessas comunidades tanto surdos quanto os ouvintes usam as línguas de sinais”, diz Rodrigues.

A pesquisadora destaca, no entanto, que essas línguas correm o risco de desaparecer à medida que a comunidade que as utiliza deixa de crescer ou passa a utilizar a Libras. “Toda língua que se extingue é uma riqueza da nossa diversidade que se perde, porque quando uma língua morre, morre com ela algum tipo de conhecimento, uma tecnologia. E é algo que a gente não gostaria que acontecesse, mas infelizmente ocorre muito.” Para a pesquisadora, o trabalho de linguistas, nesse cenário, passa pela documentação para que se tenha registro da utilização e pela realização de ações de valorização, que podem prolongar a existência dessas línguas.

Rodrigues lembra, ainda, a importância de se desenvolver pesquisas para identificação e compreensão tanto das línguas de sinais de microcomunidades surdas, como das variações da Língua Brasileira de Sinais. “Vemos que o preconceito também está atrelado ao desenvolvimento científico da área, porque é um campo pouco conhecido, pouco valorizado. É preciso romper muitas barreiras para que as pessoas entendam que é uma língua, que se pode fazer pesquisas sobre ela”, diz. E ressalta que o compartilhamento de informações e a divulgação de dados científicos e de pesquisas desenvolvidas por pessoas surdas podem contribuir para desconstruir os mitos que reforçam o preconceito sobre as línguas de sinais e  sobre as próprias pessoas com deficiência. Afinal, quando o surdo é colocado em destaque por sua atuação no desenvolvimento de pesquisas sobre as línguas de sinais, enfraquecem um pouco os estereótipos capacitistas. .

Para Gladis Massini-Cagliari, uma das organizadoras do livro “Understanding Linguistic Prejudice”, as variações linguísticas demonstram a pluralidade da população. “Mais do que ‘tolerar’ a existência da diversidade linguística, deve-se celebrá-la. Porque cada forma de dizer corresponde a uma diferente forma de ver o mundo. Além disso, o modo de expressão revela traços de identidade. Quando falamos, além de transmitir uma mensagem, marcamos na nossa própria linguagem quem somos: nossa idade, se somos escolarizados ou não, nossas crenças, nosso posicionamento no mundo quanto ao gênero…”, diz. “Não há, em nenhuma língua, evidências provenientes de seus aspectos gramaticais que sustentem a diferenciação linguística a partir do contraste entre línguas de sinais e línguas orais, entre a língua falada por grupos socioeconômicos desprivilegiados e privilegiados, as línguas indígenas e as línguas usadas nos centros urbanos, com tradição escrita. Na falta de evidências científicas sobre essas falsas oposições, a única conclusão possível é a de que o preconceito, na verdade, é social”, diz Rodrigues.

Foto acima: Alyne Pacifico professora de Libras. Crédito: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília