Fabio Mazzitelli e Renato Coelho
Comícios suprapartidários com mais de 1 milhão de pessoas em praça pública, donas de casa batendo panelas nas janelas de seus apartamentos e um espírito de renovação e convergência de ideais para um projeto de nação democrática materializados em uma frente política que mobilizou o país em torno de uma emenda constitucional que restituía as eleições diretas para presidente da República.
O Brasil de 1983, em certa medida, tem algo a ensinar ao Brasil de 2023, na visão do cientista político Milton Lahuerta, professor da Faculdade de Ciências e Letras do câmpus de Araraquara da Unesp (FCLAr). Em sua participação no podcast Prato do Dia, uma produção da Assessoria de Comunicação e Imprensa (ACI) da UNESP, Lahuerta sustenta que o Movimento Diretas Já, que está completando 40 anos, devolveu uma visão de país, mais plural e soberana, interrompida com o regime militar iniciado em 1964 e que nos últimos anos, em especial com a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência, ficou à margem de um debate público que cultivou discursos de ódio e narrativas históricas tortuosas dos tempos da ditadura, ofuscando a memória histórica acerca do que foi a conquista da democracia no nosso país.
O Projeto de Emenda Constitucional nº 5, de 1983, que passou a ser chamado de Emenda Dante de Oliveira, nome do então jovem deputado que a propôs, foi rechaçada no Congresso Nacional. Em eleições indiretas, o mineiro Tancredo Neves, um dos líderes da frente democrática, foi eleito presidente. Após a sua internação na véspera da posse e o seu falecimento, José Sarney assumiu como presidente da República e fez o governo de transição para retomada democrática plena, instalando uma Assembleia Nacional Constituinte em 1986, que resultou na Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã.
“Penso que seja fundamental que, neste momento em que estamos de certa maneira comemorando uma data simbólica que diz respeito à luta pelas eleições diretas, possamos repensar um pouco a trajetória de como chegamos ao processo de democratização e consolidamos uma Constituição Cidadã, como dizia o grande Ulysses Guimarães”, diz Milton Lahuerta. “É um momento que exige de todos nós muita responsabilidade, seriedade e acima de tudo muita motivação para retomar determinadas lutas históricas, particularmente pensando nas novas gerações para quem essa memória, ainda que seja recente, de certa maneira, está muito distante. Vejo como um momento decisivo da história política do país”, afirma o professor da FCLAr, que coordena o Laboratório de Política e Governo da unidade universitária.
Milton Lahuerta acredita que o clima de “revival” dos regimes autoritários marcado pela ascensão de Bolsonaro pode ser explicado também por uma ruptura cultural que é herança da ditadura brasileira. O docente começou a dar aulas na Unesp em 1984, ano em que a defesa do debate democrático também marcava a luta da Universidade.
“Penso que a ditadura causou um grande malefício na medida em que ela rompeu com a memória histórica progressista do país. Ela procurou apagar toda uma luta histórica que vinha desde pelo menos os anos 20 do Século 20, que colocava exatamente na pauta o horizonte de construir um país moderno, uma nação. Isto já estava posto pelo modernismo, mas ganhou muito mais força durante a década de 50 e o início da década de 60, quando se procurou juntar à perspectiva de cumprir uma identidade nacional de valorizar a cultura de um país o horizonte de um desenvolvimento que se efetivaria dentro dos marcos da democracia. Então, de certo modo, o regime causou um grande malefício à sociedade brasileira por ter conseguido, nesse sentido, romper com essa memória histórica”, afirma Lahuerta, frisando que a conquista democrática marcada pelo Movimento Diretas Já se deu no âmbito da luta política, não da luta armada.
O docente da Unesp também reflete sobre a mudança demográfica do país nos 21 anos de regime militar, com o crescimento intenso dos centros urbanos e a mudança no modo de vida da população brasileira, processos não acompanhados por um desenvolvimento educacional. “Toda uma geração veio à tona sem ter vivido minimamente experiências cívicas e civilizatórias que pudessem orientar a sua vida com mais conteúdo”, diz.
Na mídia abaixo, ouça a íntegra das reflexões do professor Milton Lahuerta neste episódio do Prato do Dia, disponível também na plataforma Podcast Unesp, bem como nos tocadores Google Podcasts, Spotify e Deezer.