As histórias que Ruy Barbosa não conseguiu queimar

Docentes da Unesp colaboram com pesquisa que revela documentação inédita sobre a escravidão no Brasil. Descoberta lança luz sobre dinâmica do tráfico interno e pode ajudar a reconstituir origens e trajetórias de grupos familiares atuais.

Graças à persistência e à dedicação de um grupo de seus cidadãos, a cidade de Araraquara começou a escrever uma importante página no resgate da memória da escravidão no Brasil.  Em 24 de março, passado, após anos de trabalhos e esforços, finalmente veio à luz uma das mais importantes coleções de escrituras de compra e venda de escravizados, lavradas ao longo do século 19, que foram digitalizadas e finalmente divulgadas em livro. Intitulada “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”, a obra possui mais de 500 páginas, e a sua publicação é o resultado de um processo de investigação que mobilizou docentes da Unesp, ativistas do movimento negro, membros da regional de Araraquara da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), vereadores e professores da Universidade de Araraquara.

Dentre esses docentes está o antropólogo Dagoberto Fonseca, professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara. Ele explica que o vasto material, que estava armazenado no Cartório do Primeiro Tabelião de Notas e de Protesto de Araraquara, constitui o maior acervo de documentação sobre a escravidão já identificado em toda a América Latina. “É de suma importância tornar pública essa documentação. Até para que possamos ter a capacidade de enxergar outras dimensões do problema, e só a partir daí buscar reescrever a história do Brasil”, diz. “É chocante olhar pelo retrovisor dois séculos atrás e constatar que uma pessoa vendia a outra, como se vende um objeto. Descrevia as características dessa outra, dava um preço e colocava à venda”, diz ele, que fundou o Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão Universitária (Nupe), que continua a integrar.

Uma comissão da verdade para a escravidão

Em 2015, Fonseca foi convidado pela Ordem dos Advogados do Brasil para integrar a então nascente Comissão Nacional da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil. O objetivo do grupo era investigar crimes cometidos durante a vigência do regime escravista no país, a fim de apontar responsabilidades e discutir formas de reparação. A inspiração vinha da Comissão Nacional da Verdade sobre a Ditadura Militar, criada por lei e sancionada pela então presidente Dilma Rousseff, cujo intuito era identificar os responsáveis pelos crimes de tortura, sequestro e desaparecimento de presos políticos naquele período. 

Para agilizar o processo e abranger a imensidão geográfica do país, os trabalhos passaram a ser executados pelas regionais da OAB, que coordenam comissões junto a universidades, movimentos sociais, membros de governos, juízes, etc. Após aceitar o convite para se tornar assessor do grupo, Fonseca passou a buscar possíveis colaboradores em diversas cidades da região, como São Carlos, Campinas, São Paulo e Araraquara, articulando uma grande rede estadual de troca de informações. “Formamos um grupo com integrantes da OAB, alunos e docentes da Unesp e da Uniara. Ao contatarmos alguns vereadores, eles se mobilizaram para formar uma frente parlamentar antirracista na Câmara Municipal de Araraquara”, relata.

Lançamento do livro contendo a documentação. Claudete Nogueira é a segunda em pé, da esquerda para a direita, e Eva Silva , a quarta

Um dos desafios mais penosos, e ao mesmo tempo mais essenciais, para o trabalho da comissão envolvia a localização de documentação legal que pudesse proporcionar base jurídica para a investigação.  Ocorre que, se dependesse do Estado brasileiro, esta documentação já teria deixado de existir há muito tempo. Em dezembro de 1890, menos de dois anos após a abolição da escravatura, o então ministro da Fazenda da República, Ruy Barbosa, assinou um despacho oficial ordenando que toda documentação relativa à escravidão fosse enviada ao então Distrito Federal para ser destruída. A iniciativa à época despertou toda sorte de críticas. No texto, Ruy Barbosa dizia que ordenava a destruição porque a “República era obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria e em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que com a abolição do elemento civil entraram na comunidade brasileira”. Na visão de diversos historiadores, porém, Ruy Barbosa agia para impedir que os proprietários de escravos dispusessem de qualquer documentação que pudesse depois ser usada para fundamentar um pedido de indenização por conta da emancipação dos escravizados.

“Desde a década de 1980, me deparava com essa informação de que Ruy Barbosa tinha mandado queimar esses documentos. Até é compreensível que se queira queimar esses  documentos, afinal, a história do Brasil é feita de apagamentos”,  diz Fonseca. “Mas, no mestrado, estudei piadas referentes a negros e à escravidão. Uma delas dizia que ‘a Lei Áurea havia sido escrita a lápis’. Ou seja, certamente havia muitos grupos contrários à libertação dos escravos, que eram  poderosos e acreditavam que essa lei não iria ‘pegar’. E se uma lei não pegasse, onde poderiam estar preservados os documentos que comprovavam posses de escravos? Nos cartórios, obviamente”, diz.

Através da rede de contatos que havia estabelecido em nome da comissão, Fonseca tomou conhecimento de que uma ex-aluna da Unesp, Juliana Geraldi, então à frente da fundação Pró-Memória de São Carlos, encontrara um depósito de documentos referentes à compra e venda de escravos. O achado só reforçou a crença de Fonseca de que Araraquara também poderia abrigar documentação semelhante. Graças à iniciativa da frente parlamentar antirracista da Câmara de Vereadores, foi possível identificar a presença de tal documentação no Cartório do Primeiro Tabelião de Notas e de Protesto de Araraquara. Este é o mais antigo estabelecimento do gênero na cidade, remontando à década de 1830. “O cartório foi fundado por conta do crescimento do tráfico interno de escravos. Eles vinham da Bahia, onde os ciclos econômicos estavam perdendo força, para o interior de São Paulo, com o desenvolvimento da cultura cafeeira”, explica Fonseca.

O proprietário do cartório, no entanto, se negava a conceder acesso ao material, alegando que se tratava de um acervo particular.  Mas teve que voltar atrás quando a OAB local entrou na justiça com uma ação solicitando o acesso, vencendo a causa. Foi só então que os integrantes da comissão e os pesquisadores convidados tiveram a oportunidade de efetivamente examinar o material.

Direito à memória

As docentes da Unesp Claudete de Sousa Nogueira e Eva Aparecida da Silva, ambas da FCLar, foram convidadas pelos integrantes da regional da Comissão da Verdade a examinar os documentos.  Nogueira há muitos anos pesquisa aspectos que permeiam a escravidão e foi a pesquisadora responsável pela análise da qualidade do material.

Na época em que os arquivos foram encontrados, Nogueira, que já havia trabalhado em pesquisas anteriores com processos-crimes, organizou um encontro para mostrar “como se dá o trabalho com fontes documentais”. Segundo a docente, embora a temática dos arquivos criminais e a dos arquivos de compra e venda sejam de natureza diferente, ambos contam histórias. “Não se trata apenas do nome do vendedor, do comprador, mas se pode identificar quem eram esses escravizados, a idade; muitos descrevem características do escravizados, se eram casais, se tinham filhos. Ou seja, sempre dizemos que se trata apenas de documentos, os pesquisadores é que os transformam em fontes históricas”.  Ela diz que, uma vez que o material está integralmente digitalizado, o primeiro passo a seguir é “a leitura e a transcrição”, porque o material está escrito em um português antigo, de difícil compreensão.

Ao desembarcarem no Brasil os escravizados perdiam nome e sobrenome, adquirindo o sobrenome dos senhores a quem pertenciam. Então existe uma lacuna quanto a suas origens “que dificilmente conseguiremos recuperar, preencher”, diz a historiadora. No entanto, talvez essa possibilidade esteja mais próxima para os araraquarenses, graças aos arquivos. “O que tem sido feito é encontrar a localização e origem de grupos. Por meio do cruzamento de dados de outros documentos, como esses de compra e venda, que apresentam número de matrícula, é possível saber onde essa pessoa foi registrada no Brasil, se é da primeira ou segunda geração e, assim, obter indícios de que porto africano ela veio”, diz.

Políticas públicas e reparação histórica

A partir da disponibilização dos documentos, abre-se o campo para os trabalhos mais efetivos de pesquisa história, que se inicia pelas transcrições. Mas o cruzamento de dados e a possibilidade de reconstruir as árvores genealógicas reacende a questão dos eventuais direitos das famílias escravizadas. Afinal, crimes de escravidão são considerados imprescritíveis.

Talvez seja, inclusive, essa a razão pela qual a família que fundou o cartório, em 1831, e que ainda está à frente dos negócios, havia negado o acesso às escrituras. “[Nos documentos] Já foram contabilizadas, pelo menos, quatro negociações de vendas que envolviam proprietários do cartório, que eram pessoas ligadas às forças militares e políticas do período”, diz Fonseca.

Por outro lado, o ineditismo do material já despertou interesse até fora do Brasil. O docente relata que um historiador e cineasta brasileiro, oriundo do interior de São Paulo, mas que hoje reside em Paris, atravessou o Atlântico para conhecer o trabalho desenvolvido em Araraquara. Ele busca dados sobre os tataravôs escravizados. A princípio, pensa em contar, de forma áudiovisual, a história da sua família. Uma possibilidade de construção de identidade, que sempre foi negada aos africanos e afro-brasileiros. “Agora poderemos olhar para as heranças que esse processo de escravidão trouxe para os descendentes desses escravizados. E a partir daí pensar em políticas públicas enquanto reparações históricas”, diz Nogueira.

Através do Nupe, Eva, Claudete e Dagoberto já elaboram uma proposta para a construção de um memorial dedicado à história e cultura do negro no interior paulista. “A ideia é dar visibilidade aos próprios sujeitos que viveram essas histórias, porque eles têm nome, idade, gênero e também carregam suas dores”, diz Silva.  Para Nogueira, o memorial deve ir além da escravidão. “A cultura e a economia de Araraquara estão interligadas à história do povo negro e isso se desdobra no cenário pós-abolição”, diz.

Imagem acima: reprodução de documento apresentado em “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”. Crédito: Editora Rima.