Soluções para a cracolândia devem passar por políticas públicas adequadas, e não se limitar à responsabilização exclusiva dos usuários

Iniciativas para recuperar grupos de dependentes da droga que residem nas ruas do centro de São Paulo têm falhado porque focam alvos errados. É hora de debater ações como investimentos amplos em ressocialização, abordagem de redução de danos e criação de comunidades terapêuticas de longa permanência.

Nos últimos anos, os vários problemas gerados pelos agrupamentos de indivíduos usuários de drogas, especialmente de crack, que ocupam diferentes pontos do centro da cidade de São Paulo, tornaram-se pauta de campanhas políticas municipais e estaduais, dando ensejo a todo tipo de proposta e de projeto com o pretexto de mudar esse quadro doloroso. Todavia, o que temos observado na prática é a adoção de medidas pouco eficazes, frustradas e até desastrosas. Em geral, elas focam o aspecto da revitalização estrutural, e apenas resvalam de forma transversal, no tempo e espaço, o complexo sistema que alimenta aquela realidade, e dela sobrevive.

A cracolândia nada mais é do que a cristalização, em forma de tragédia, dos efeitos do descaso político e da má gestão pública dos recursos devidos a áreas básicas para o desenvolvimento e o bem-estar social, como a educação, o lazer, a saúde e a segurança. Tal cenário social proporciona as condições ideais tanto para o surgimento dos consumidores de drogas, quanto para a oferta dessas substâncias. Ainda assim, devemos lembrar que não se trata de um fenômeno local da cidade de São Paulo, e nem mesmo nacional: há décadas grandes economias como os Estados Unidos também enfrentam a mesma problemática.

Para enunciar melhor a complexidade que envolve essa questão é preciso propor a seguinte reflexão: por que tantas pessoas abandonam suas vidas e sujeitam-se a viverem em condições tão precárias e adversas, sem dignidade, expostas à extrema violência?

A primeira análise a ser apontada é que não se trata de uma escolha; é, sim, uma doença, a qual subjuga e sequestra a razão do indivíduo, tornando-o um escravo daquela substância. Em segundo lugar, cabe ressaltar que não se trata de uma enfermidade de caráter unicamente biológico em sua origem ou manifestação. Trata-se de um fenômeno multifatorial, forjado principalmente por meio dos aspectos sociais mencionados acima. Cada dependente que sobrevive e diariamente se arrasta pelos becos sujos e escuros da cracolândia em busca de mais uma pedra é uma amostra que carrega os traços de um contexto micro e macrossocial que não deu certo.

A dependência química no padrão observado ali, que toma a forma de uma doença grave e degradante, é geralmente fruto de uma conjuntura de elementos. Destes, o fator biológico individual é o que alcança menor representação. Indício dessa afirmação está no fato de que esses doentes compartilham grandes semelhanças em suas trajetórias de vida, nas quais são frequentes as histórias de negligência e abusos, ambiente violento, escassez de recursos ou oportunidades e consumo de drogas no núcleo familiar. Esse contexto também atua como desencadeante para outras formas de agravos mentais, tais como depressão, ansiedade, transtornos de estresse pós-traumático, psicoses e transtornos da personalidade. Essas patologias elevam a pressão no sentido do consumo e potencializam o risco de dependência.

Por fim, fechamos o ciclo que sustenta esse universo diabólico com uma análise econômica clássica. A cracolândia representa a ponta de um mercado consumidor, assíduo e fiel, de um produto livre de impostos e que enriquece um grupo produtor que se torna cada vez mais sólido e organizado.

Esse entendimento mais amplo é fundamental para o desenvolvimento de estratégias que visem realmente iniciar a solução dessa questão.

A mera internação desses pacientes, seja ela voluntária, involuntária ou compulsória, está longe de representar a resolução para a problemática da cracolândia. Mas tal medida pode ser necessária, uma vez que muitos não mais possuem a capacidade de autodeterminação frente à compulsão pelo consumo. Nas fases iniciais do tratamento , a permanência em ambiente hospitalar especializado possibilita a desintoxicação e reabilitação das condições mentais e físicas que podem permitir ao enfermo retornar a sua realidade provido de mais ferramentas pessoais, e dar continuidade a sua recuperação num ambiente ambulatorial. No entanto, se o tratamento tiver como foco exclusivo o paciente, e não as demais situações já descritas que contribuíram para o adoecimento, a tendência é que esses indivíduos experimentem muitas recaída e dessa forma a “produção” de novos doentes se perpetua.

A própria dependência química leva essas pessoas a desconstruírem, ao longo dos anos, toda a rede de apoio que é necessária para a retomada de uma vida digna após a cessação do uso. O imperativo pelo consumo de drogas promove uma cascata trágica de eventos, culminando em abandono escolar, perda de emprego, rompimentos de vínculos familiares e de amizade, envolvimento com furtos, roubo, tráfico e prostituição. Após a internação, poucos desses pacientes graves contam com acolhimento familiar ou oportunidades reais de uma vida digna. Grande parte não tem onde morar, não possui renda e volta a conviver nos mesmos ambientes, sendo quase inevitável a recaída.

É utópico esperar que o paciente, sozinho, promova as mudanças necessárias em sua rotina para que se mantenha longe das drogas. É nesta etapa que são necessárias políticas públicas que invistam pesado no processo de ressocialização. Isso inclui criar condições de reconexão de laços familiares, oportunidades de educação e profissionalização, facilitação de empregos e da manutenção de uma subsistência digna. Tudo isso enquanto, simultaneamente, mantém-se os tratamentos médicos e psicológicos que já são ofertados, cuja estrutura hospitalar e ambulatorial já existe, e que conta com equipes capacitadas.

Para mantermos também uma perspectiva realista no que tange às possibilidades de tratamento, é necessário aceitar que muitos dos pacientes que vivem na cracolândia atingiram um nível tão grave e crônico de degradação de suas condições biopsicossociais que precisarão de uma abordagem voltada para redução de danos, seja com foco no próprio individuo ou na sociedade. São quadros refratários aos tratamentos atualmente disponíveis; é como se neles  a doença se comportasse como um câncer avançado e com múltiplas metástases, restando muitas vezes o tratamento paliativo.

Aqui, podemos enquadrar as medidas já adotadas em outros países. Entre elas estão os centros preparados para dispensação e uso in loco de substâncias controladas, sendo que tais substâncias não necessariamente seriam as drogas como são consumidas nas ruas; é possível substituir seu uso por fármacos. Pode-se recorrer, por exemplo, aos benzodiazepínicos no lugar do álcool, à metadona, ao invés de heroína, aos anfetamínicos para atender os usuários de cocaína/crack.

Ao mesmo tempo, esses indivíduos necessitariam de um local para residir. Esse lugar poderia ser construído na forma de “comunidades terapêuticas de longa permanência”, as quais contariam com equipes multiprofissionais e a possibilidade de dispensação de substâncias controladas para uso. Não haveria estrutura hospitalar, ou seja, na prática a autonomia de rotina dos que ali residissem estaria preservada, e a ela se somariam oportunidades de trabalho e geração de renda, com o intuito de alcançar a reconstrução da dignidade.  Em paralelo, seriam constantemente empreendidas ações de combate ao tráfico, e também para impedir a concentração de usuários em pontos específicos da cidade.

A adoção desse modelo pode soar, para alguns, excessivamente determinista e até mesmo paternalista. Contudo, não podemos nos distanciar do entendimento de que o consumo de drogas e a permanência na cracolândia são a manifestação de uma doença mental e não uma escolha consciente; de que esta doença é passível de controle, não de cura; e que, mesmo quando controlada, acarreta muitas sequelas e vulnerabilidades nesses indivíduos, mantendo-os sempre no fio da navalha na decisão quanto a usar ou não.

Projetarmos a responsabilidade pelo sucesso do tratamento exclusivamente sobre esses pacientes é manter a cracolândia nas campanhas políticas para as próximas gerações.

Gustavo Bigaton Lovadini é médico psiquiatra, com formação em psiquiatria pelo programa de residência médica da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp e Titulação pela SBP/AMB. É médico contratado no  Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria do HCFMB-Unesp e desde 2014  atua no cuidado de pacientes com dependência química pelo Serviço de Atenção e Referência em Álcool e Drogas do HCFMB.

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.

Imagem acima: cracolândia em frente à Praça Júlio Prestes, no centro de são Paulo. Crédito: Agência Brasil/Roven Rosa.