Projeto de lei em tramitação abre caminho para que iniciativa privada passe a administrar escolas municipais de nível fundamental e médio na cidade de São Paulo

Organizações sociais selecionadas e remuneradas pela prefeitura seriam autorizadas até a contratar seus próprios professores e diretores, bem como dispensá-los. Críticos apontam riscos de aumento de gastos, de queda no recebimento de verbas federais para a educação e de perda na qualidade do ensino, além de diminuição na transparência da gestão de recursos públicos.

Quatrocentos e cinquenta e um mil estudantes, ou o equivalente a toda a população de Porto Velho, capital de Rondônia. É esse o público – ou o mercado – que está na mira de um projeto de lei em tramitação na Câmara Municipal de São Paulo para abrir a possibilidade de a iniciativa privada gerir escolas públicas de ensino fundamental e médio da capital paulista.

Entendido por alguns como “privatização do ensino” e por outros como “parcerias para fomentar a escola pública”, o projeto divide opiniões e gera polêmicas, enquanto avança na Casa com pouca discussão com a sociedade, em especial, com professores e estudantes, os principais impactados pela medida.

De autoria da vereadora Cris Monteiro (Novo), o PL (Projeto de Lei) 573/2021 autoriza a prefeitura a implementar o que chama de “gestão escolar compartilhada”, no ensino fundamental e médio da rede municipal. Pela proposta, instituições de ensino passariam a ser geridas por organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, as organizações sociais (OSs), que passariam a ser responsáveis, por exemplo, pela seleção e contratação de diretores escolares e professores.

O objetivo seria melhorar a “qualidade do ensino a partir de um novo modelo de gestão”, que implementaria “uma grade curricular mais aberta ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”, aponta o texto, apresentado em coautoria com os vereadores Rubinho Nunes (União) e Fernando Holiday (Republicanos).

Sem ser muito específico, o PL reforça que o sistema de gestão compartilhada não trará mudanças administrativas nas instituições de ensino e que elas seguirão públicas e gratuitas aos alunos, sob a coordenação da Secretaria Municipal de Educação. Ainda assim, o texto não aborda alguns pontos fundamentais quando se fala em parcerias público-privadas, como a transferência de verba pública para as instituições privadas, um dos pontos mais polêmicos da proposta.

“Temos uma política de financiamento da educação bastante estruturada pelo Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], que foi tornado permanente, com critérios. E ele não financia matrículas em parceria com instituições privadas no ensino fundamental e médio. Seria um duplo prejuízo: o município pagaria pelas parcerias e não receberia recursos do Fundeb”, destaca o membro da organização Ação Educativa, Salomão Ximenes. “Não é inteligente criar novas matrículas que não podem ser financiadas pelo modelo nacional.”

Modelo já é adotado na educação infantil

Um modelo semelhante já está em funcionamento na capital paulista: com a justificativa de atender a demanda por vagas em creches, a Prefeitura de São Paulo intensificou, a partir dos anos 2000, modelo de convênio entre as instituições de ensino com organizações sociais. Hoje, elas reúnem a maioria das matrículas, oferecendo um modelo de educação que é alvo de diversas polêmicas.

“A proposta do projeto de lei é tornar a gestão das escolas públicas mais profissionalizada”, pontua a vereadora Cris Monteiro. “Em São Paulo, duas em cada três crianças estão em creches mantidas por organizações sociais. A combinação da oferta estatal com o sistema de convênio zerou a fila da creche em 2020”.

Foi exatamente esse o argumento que justificou o aumento exponencial do número de creches conveniadas em São Paulo ao longo dos últimos: a falta de vagas nas instituições de ensino de administração direta. Como atender as crianças é uma urgência e como demoraria muito para construir e colocar novas unidades em funcionamento, a solução “mais rápida” foi apostar nas parcerias com organizações sociais.

Mas o que era para ser um “atendimento de emergência” acabou se tornando um modelo na capital paulista, que agora pode ser estendido para o ensino fundamental e médio. “No caso destas etapas do ensino, a justificativa da falta de vagas não vale para apoiar esta proposta. O próprio município alega que não há falta de vagas”, pontua Ximenes. “Nada indica que essa seja uma solução concreta para melhorar a educação municipal. A melhoria passa por outra discussão, como melhorar as condições de trabalho dos profissionais da educação.”

O Tribunal de Contas do Município de São Paulo realizou uma auditoria sobre a qualidade das creches conveniadas em 2020, que mostrou que os professores da rede direta são mais bem remunerados e possuem jornadas de trabalho com mais tempo para planejamento das atividades. Por serem concursados – diferente dos professores das creches conveniadas, que são contratados pela CLT – eles possuem mais titulações, mais autonomia, tendem a ficar mais tempo na rede de ensino e têm mais oportunidades de capacitação.

Há diferenças também em relação à qualidade do ensino ofertado às crianças. “Há grande diferença entre as turmas dos CEIs diretos e parceiros em relação a algumas práticas pedagógicas qualificadas”, pontua o relatório. “Os bebês e crianças matriculados na rede parceira têm menos chance de estarem em uma unidade com essas práticas pedagógicas qualificadas.”

Quem entende bem do assunto é Christian Sznick, diretor de um Centro de Educação Infantil (CEI) de São Paulo e que também foi professor e diretor de escolas municipais de ensino fundamental. Ele teme que a aprovação do projeto transporte para outras etapas do ensino um modelo que, em sua opinião, se mostrou falho na educação infantil.

“As escolas de administração direta, por lei, devem ter espaços de decisão conjuntas com a comunidade para determinar, por exemplo, o que será feito com uma verba recebida pela instituição. Nas escolas conveniadas não há essa previsão. O processo se torna menos democrático, menos transparente e com menor participação social”, diz o diretor. “É um modelo que gera grande desigualdade entre os professores e entre a qualidade da educação oferecida.”

A autora do projeto defende que, se aprovada, legislação traria um ganho por melhorar a qualidade da gestão escolar, ponto-chave no processo de ensino e aprendizado de crianças e adolescentes.

“Quando a gestão escolar é eficiente, o desempenho das crianças melhora significativamente. Segundo pesquisas do Insper e do Instituto Ayrton Senna, o desempenho do diretor da escola tem impacto direto sobre os alunos”, diz. “O Brasil conseguiu avançar na universalização da educação básica, mas matrícula não é sinônimo de aprendizado adequado. O que vemos é um sistema de ensino que parou no século passado. Enquanto diversas áreas da sociedade se desenvolveram, a educação pública se manteve inerte”.

Críticas já na tramitação

A tramitação do projeto avançou significativamente ao longo de 2022, quando recebeu parecer favorável das Comissões de Constituição de Justiça (CCJ) e Administração Pública da Câmara de São Paulo. No entanto, foi rejeitada na Comissão de Educação, Cultura e Esportes.

Nesse período, a proposta foi submetida a duas audiências públicas obrigatórias, realizadas em agosto do último ano, com baixa participação de professores e estudantes. Ainda assim, recebeu diversas críticas de especialistas em educação e organizações da sociedade civil.

“O projeto altera a estruturação do sistema de educação do município e transforma cargos já estabelecidos em lei, de modo que a sua iniciativa deveria ter sido do prefeito e não do parlamentar”, pontuou em uma das audiências a representante da OAB-SP, Margarete Gonçalves Pedroso, citando princípios garantidos na Lei Orgânica do Município.

Desde 23 de fevereiro, o projeto aguarda estudo para manifestação do relator, Isac Felix (PL). Se aprovado em plenário, ele seguirá para sanção do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), que mantém relações estreitas com as organizações sociais da capital paulista.

Uma investigação da Folha de S. Paulo de 2020, quando Nunes ainda era vereador e vice do ex-prefeito Bruno Covas (PSDB), revelou que empresas ligadas a assessores e servidores indicados por ele faziam negócios diretos com as creches conveniadas. Havia também parentesco entre funcionários da prefeitura indicados pelo então vereador e donos de entidades que lucram com o serviço e com aluguel de espaços para essas creches.

“Há processos no Ministério Público que apontam má utilização de recursos públicos e benefícios a familiares e agentes políticos nas OSs. Apesar de não terem fins lucrativos, essas organizações passaram a manejar uma quantidade muito significativa de recursos públicos para contratação e compra de equipamentos”, pontua Ximenes.

O modelo das escolas charter

Escolas públicas administradas pela iniciativa privada. Esse é o conceito das chamadas “escolas charter”, ou escolas conveniadas, como ficaram conhecidas no Brasil e como podem passar a funcionar escolas paulistanas caso o projeto de lei 573/2021 seja aprovado na cidade.

Em geral, elas recebem financiamento público equivalente ao número de estudantes matriculados e são geridas por organizações sociais, na maioria das vezes sem fins lucrativos. Nesse modelo, as instituições de ensino são financiadas em parte pelo governo, em parte pela iniciativa privada, e a admissão de alunos é feita ou por meio de sorteio, desempenho escolar ou critérios geográficos.

Embora ainda seja uma minoria entre escolas públicas no mundo, o modelo charter pode ocupar um papel importante no debate sobre modernização e reformas educacionais. Isso porque elas possuem mais autonomia que as escolas públicas regulares e muitas vezes não precisam seguir a legislação que rege a maioria das instituições de ensino. Por um lado, isso permite que algumas inovações possam ser implantadas com mais facilidade. Por outro, podem deixar alunos e profissionais da educação desassistidos no acesso a alguns direitos.

“Em regra, os representantes das organizações sociais entendem de gestão e conseguem otimizar ao máximo a atividade, seguindo as atribuições, metas e obrigações firmadas com o Poder Público”, defende a autora do projeto, vereadora Cris Monteiro. “Assim como nos hospitais, nas creches, nos equipamentos de cultura e esportes, a organização social selecionada via edital poderá auxiliar a escola no dia a dia administrativo, permitindo que professores se dediquem exclusivamente às aulas e alunos.”

O modelo nasceu nos Estados Unidos na década de 1990. Na sequência, Nicarágua, Austrália, França e Japão também adaptaram a proposta, de forma pontual e isolada. É, porém, no Reino Unido que as escolas charter têm mais relevância: desde 2002, o modelo foi introduzido como parte da reforma de ensino liderada pelo então primeiro-ministro Tony Blair, em número considerável.

Os resultados são diversos. Nos Estados Unidos, Suécia e Chile, por exemplo, não há evidências robustas de que as escolas charter tenham melhorado a qualidade de educação, segundo o estudo Escolas Charter e Vouchers: O que dizem as evidências sobre subsídios públicos para entidades privadas em educação?, produzido pela Universidade Stanford e Fundação Getúlio Vargas.

Por outro lado, o estudo mostra que o modelo traz um impacto importante no aumento da segregação e estratificação dos sistemas de ensino. “A competição entre as escolas pode beneficiar alguns alunos de maneira individual, mas não traz benefícios para a rede de ensino como um todo”, reforça a pesquisa.

“O sistema público tem problemas? Sim, e existem propostas para melhorá-lo, mas nada indica que a privatização direta ou indireta irá melhorar a educação brasileira”, pontua o professor de Pedagogia e Ciências Sociais da Unesp de Marília, Henrique Tahan Novaes. “Os processos de concessão no Chile foram trágicos e eles estão lutando há 30 anos para reverter essas políticas. Já temos também inúmeras pesquisas mostrando que as escolas charter nos Estados Unidos não deram certo. A ofensiva neoliberal tem sido avassaladora na educação.”

No Brasil, algumas experiências

Apesar de ainda serem pouco conhecidas, as escolas charter já foram adotadas de forma pontual no Brasil, nos estados de Pernambuco e Minas Gerais, em diferentes períodos e com poucos estudos e pesquisas sobre o tema. Goiás tentou implantar um projeto piloto de escolas charter entre 2015 e 2018, mas, após três anos de embates judiciais, debates políticos e ocupação de escolas por estudantes, o programa foi paralisado.

A experiência pernambucana durou dez anos (entre 2001 e 2011), e se estendeu por 20 escolas de ensino médio de período integral. Elas funcionaram como laboratório de inovações que eram replicadas para o restante da rede. Há poucos estudos e pesquisas avaliando os resultados do modelo.

Já em Minas Gerais, a experiência começou em fevereiro do ano passado, em três escolas. Nelas, a organização social selecionada ficou responsável pela gestão pedagógica e administrativa da escola e pôde contratar professores, pessoal de apoio, estrutura e logística. Ainda não há dados concretos para avaliar os resultados.

“A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo tem o maior orçamento entre todas as secretarias do país. Mesmo assim, o município não está nem entre as dez cidades brasileiras com os melhores índices educacionais do país. Nós temos muito potencial para adotar modelos como o de Minas Gerais e passar a dar a atenção que os alunos do século 21 merecem e precisam”, pontua a vereadora Cris Monteiro.

A ideia de entregar a administração de escolas públicas a entes privados para obter mais eficiência e alto desempenho, baseada em princípios de concorrência do mercado, pode até parecer uma saída para os problemas da educação brasileira. Porém, estes mesmos problemas se espalham muito além da sala de aula, como ressalta Ximenes, da Ação Educativa: “ampliar a jornada, o atendimento e implantar projetos ditos inovadores desviam o foco da real discussão: não vai ter escola funcionando perfeitamente em um ambiente social degrado pela fome, violência e desemprego”.

Imagem acima: crianças do ensino fundamental brincam em escola da rede municipal de São Paulo. Crédito: Secretaria Municipal de Educação.