O litoral sul do Brasil é uma região dinâmica e em constante evolução, que tem sido moldada tanto pelas forças naturais quanto pelo homem. Um estudo recente, publicado na revista Quaternary Science Reviews, lança uma nova luz sobre a complexa interação entre a formação das paisagens e a ocupação humana na costa de Santa Catarina. Na pesquisa, geólogos encontraram evidências de atividade humana na área que remontam a 8 mil anos, quando grupos de caçadores-coletores viviam ao longo da costa, e utilizaram esses sinais para investigar a formação de estruturas rochosas pouco estudadas. No Brasil, essa é a primeira vez que um estudo combina arqueologia com geologia para analisar os processos que levaram à formação dos ventifactos, feições rochosas formadas pela erosão do vento.
O estudo teve início quando o geólogo Lucas Warren, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp, campus Rio Claro, buscava maneiras de continuar desenvolvendo pesquisas em meio à quarentena. O pesquisador viu a possibilidade surgir com o contato de um colega geólogo, Luciano Alessandretti, que, com o mesmo desejo, viajou para Costão do Ilhote, uma praia remota em Santa Catarina, para estudar algumas formações geológicas raras.
Na viagem, Alessandretti, que é professor do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, de fato encontrou rochas que chamaram sua atenção porque exibiam certos traços, como se tivessem sido marcadas com ferramentas muito potentes. “A rocha que aflora ali é um tipo especial de granito. Parece muito com esse granito que vemos nas pias. É uma rocha muito dura, muito difícil de riscar. E, junto a isso, apareceram essas feições erosivas muito marcadas em um ponto específico da praia”, conta Warren.
Intrigada, a dupla iniciou a pesquisa sobre as formações na região, com o objetivo de identificar como as marcas, também conhecidas como ventifactos, surgiram em rochas tão duras. “Na região do Costão do Ilhote, essas estruturas estão espetacularmente bem desenvolvidas. Logo nos primeiros minutos de observação não tive dúvidas de que se tratava realmente de ventifactos”, diz Alessandretti. Os ventifactos são feições erosivas, formadas pelo impacto de partículas de areia carregadas pelo vento na superfície das rochas. Ao longo dos anos o impacto constante cria marcas de erosão, desgastando, perfurando ou polindo as pedras, marcas que viriam a ser encontradas por Alessandretti.
Ventifactos são formados pela combinação de três fatores: o primeiro é a presença de areia solta; o segundo é a capacidade de transporte do vento, ou seja, a ocorrência de ventos fortes. Por fim, é necessário que não existam vegetação ou outras barreiras protegendo as rochas contra a ação abrasiva do vento. Essa combinação faz com que os ventifactos sejam estruturas peculiares e raras e, por conta disso, pouco estudadas, não apenas no Brasil, mas no mundo. “Ao buscar literatura sobre o tema percebi que não havia no Brasil nenhum estudo sobre ventifactos, e isso nos estimulou a pesquisar”, diz Alessandretti. Warren concorda e destaca que a descrição dessas feições é algo inédito no país.
Qual o tempo de formação envolvido na origem dos ventifactos? Qual o período geológico em que se formaram? Essas foram algumas dúvidas apresentadas por Alessandretti e que nortearam o trabalho dos pesquisadores para encontrar respostas. Warren comenta que o método de trabalho dos geólogos se assemelha ao dos detetives, pois envolve a formulação de complexas cadeias de raciocínio a posteriori. “Nós quase nunca vemos os processos acontecendo. Então, temos que observar o que foi deixado de produto e interpretar o que ocorreu”, diz.
Assim, teve início o processo de coleta de pistas. O primeiro passo foi contabilizar e descrever as características de todos os ventifactos presentes nas pedras da região estudada. Como resultado, os pesquisadores identificaram seis feições erosivas: sulcos, poços ou fendas, flautas, faces, quilhas e feições polidas. A partir dessas informações, foi possível comparar características das feições, tais como a profundidade e a direção das marcas, e compará-las com o regime do vento presente no Costão do Ilhote.
A comparação da direção do vento com o tipo de feição formada na rocha permitiu deduzir que o regime do vento possivelmente não sofreu alterações desde que a formação dessas estruturas teve início, uma vez que não foram encontradas diferentes marcas sobrepostas. Nas regiões onde o vento bate de frente nas rochas, são formados os poços. Quando o vento as atinge lateralmente, dependendo do ângulo, formam-se quilhas, sulcos ou flautas, com maior ou menor profundidade. Caso o vento mudasse de direção – algo que ocorre ao longo das eras geológicas – esta alteração ficaria registrada na rocha porque uma feição atravessaria a outra, e isso não foi observado. “Nós quantificamos e caracterizamos cada feição e comparamos os resultados com a direção dos ventos. Isso revelou uma correlação muito boa com os ventos atuais”, conta Warren.
Rochas moldadas por água e fogo
Para começar a delimitar o período em que ocorreu a formação dos ventifactos, os pesquisadores observaram em quais momentos o Costão do Ilhote estava acima do nível do mar, pois apenas nestas circunstâncias as rochas poderiam sofrer a ação do vento. “Se o mar estivesse um metro acima dessas rochas, elas estariam submersas e essas estruturas não se formariam. Essa exigência de que as rochas estejam expostas já elimina da análise alguns períodos de tempo”, explica Warren.
Esse ponto foi lembrado por Paulo César Fonseca Giannini, professor do Instituto de Geociências da USP e colaborador do artigo. “Tivemos que considerar todas as elevações e descidas do nível do mar, desde 650 mil anos atrás, época dos primeiros registros de atividade eólica na região, até o presente, e também todas as épocas em que o Costão do Ilhote esteve submerso e consequentemente sem sofrer abrasão eólica”, diz Alessandretti.
Com base em estudos anteriores, liderados por Giannini, o grupo identificou quatro períodos nos quais as rochas se encontravam na superfície: o primeiro corresponde a 650 mil anos; o segundo ocorreu há 350 mil anos; o terceiro momento foi verificado 150 mil anos atrás e, por fim, o quarto, e mais recente período, aconteceu entre 2 mil anos e 500 anos atrás.
Examinar as variações no nível do mar, entretanto, não foi suficiente para deduzir com exatidão em quais desses períodos as rochas começaram a sofrer erosão, ou quanto tempo perdurou o processo para que resultasse na formação das marcas tão características. Ao cruzar as informações já coletadas sobre os regimes do vento e as variações no nível do mar, o grupo de pesquisadores suspeitou que a quarta possibilidade era a mais provável. “Se as formações fossem mais antigas, como indicam os períodos 1, 2 e 3, essas estruturas provavelmente apresentariam uma feição cortando a outra, por conta da mudança dos ventos. E não encontramos isso. Observamos feições muito bem marcadas, e a única coisa que as interceptava eram os sinais de ação humana”, explica Warren.
A ação humana foi a pista-chave para o grupo definir com certa exatidão o período de formação dos ventifactos. A região do Costão do Ilhote tem a paisagem marcada por sambaquis, nome dado a sítios arqueológicos formados por acúmulos de conchas, ossos e porcelana. Eles foram erguidos pela chamada cultura sambaquieira, composta por grupos indígenas que viviam da caça e da coleta na região, antes da colonização portuguesa. Estima-se que os sambaquieiros passaram a ocupar o litoral de Santa Catarina aproximadamente 8 mil anos atrás e desapareceram há 500 anos, com a chegada dos portugueses. Ainda se conhece pouco sobre essas populações, mas é possível rastrear sua migração graças à presença dos sambaquis, e seu legado impressiona. Apenas duas cidades, Laguna e Jaguaruna, abrigam um total de 42 sambaquis, que podem chegar a medir 300 metros de largura e alcançam 30 metros de altura.
“Uma parte muito interessante dessa história é que esse povo habitava a mesma região onde são encontradas as marcas de erosão. E nós encontramos pedras em que as feições erosivas são atravessadas por marcas que resultaram do processo de afiar as ferramentas que aquela população usava”, conta Warren. Observando as marcas, os pesquisadores identificaram que aquelas deixadas pelos sambaquieiros estavam por cima das feições erosivas. “Se as feições erosivas são mais antigas que o povo, elas também são mais antigas que o sumiço do povo. Então, elas devem ter sido formadas entre o último período em que as rochas ficaram acima do nível do mar e o desaparecimento dos sambaquieiros”, conclui o geólogo.
Com isso, o estudo determinou que os ventifactos começaram a ser formados 2 mil anos atrás, quando o Costão do Ilhote voltou a ficar acima do nível do mar pela última vez. Quanto ao tempo de formação, os pesquisadores estimaram que foram necessários aproximadamente 1.500 anos para produzir as formas nas rochas encontradas por Alessandretti. Essa estimativa coincide com a chegada dos portugueses e o desaparecimento da cultura sambaquieira. Caso o vento levasse mais tempo para criar os ventifactos, essas marcas estariam por cima das deixadas pelas lanças e ferramentas dessas comunidades.
O estudo multidisciplinar, envolvendo arqueologia e geologia, também se aproximou da antropologia. Ao checar em quais lugares das rochas os sambaquieiros deixaram as marcas de raspagem, os pesquisadores conseguiram identificar que as áreas de granito menos resistentes eram as preferidas para afiar as ferramentas. Esse detalhe permitiu ampliar um pouco mais o conhecimento sobre os padrões de comportamento dessa cultura, ainda tão misteriosa. O título do trabalho também segue a ideia da importância de combinar diversos fatores para chegar a um resultado complexo. Intitulado de “Earth, wind and fire: Interactions between Quaternary environmental dynamics and human occupation on the southern coast of Brazil”, Warren destaca que a escolha do nome foi, ao mesmo tempo, uma brincadeira com o nome da banda de funk “Earth, Wind and Fire”, mas também uma forma de mostrar os diferentes elementos envolvidos na formação dos ventifactos estudados. A terra, representada pelas rochas, o vento, que é a força formadora das feições erosivas, e o fogo, representando a ação humana de afiar instrumentos nas pedras e moldar, também, a aparência das rochas.
Imagem acima: marca deixada por indígenas da cultura dos sambaquis no granito, por sobre a ação erosiva, no litoral de Santa Catarina.