Descoberta de anel ao redor de corpo celeste além da órbita de Netuno pode levar a revisão da teoria sobre formação dessas estruturas no Sistema Solar

Material cósmico que orbita Quaoar, que está 43 vezes mais distante do Sol do que a Terra, não adquiriu formato de uma lua, contrariando modelos teóricos bem estabelecidos. Artigo relatando a descoberta foi publicado na revista Nature.

Uma pesquisa que mobilizou 59 cientistas, vinculados a instituições de pesquisa de 14 países diferentes, relata a descoberta de um anel ao redor do objeto transnetuniano Quaoar. Além da descoberta, o estudo sugere que o anel é indicação de uma dinâmica orbital até então desconhecida, e que pode levar a revisão da atual teoria sobre formação de anéis planetários no Sistema Solar, que remonta ainda ao século 19. O artigo relatando a descoberta, intitulado “A dense ring of the trans-Neptunian object Quaoar outside its Roche Limit”, foi publicado no número mais recente da revista Nature.

O estudo tem como primeiro autor um cientista brasileiro, o professor Bruno Morgado, do Observatório do Valongo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e envolveu a participação de quatro pesquisadores da Faculdade de Engenharia e Ciências (FEG) do câmpus de Guaratinguetá da Unesp. Morgado integrou a equipe que analisou os dados colhidos e esteve à frente da pesquisa que culminou no achado científico, resultado de uma colaboração internacional já consolidada, chamada Lucky Star, grupo liderado pelo astrônomo francês Bruno Sicardy, do Observatório de Paris.

Ao descrever um anel em torno de Quaoar, o artigo reforça descobertas recentes que indicam a existência de anéis ao redor de corpos celestes de menor porte no Sistema Solar. É o caso dos anéis já relatados ao redor do centauro Chariklo e do planeta-anão Haumea. Em Quaoar, um candidato a planeta-anão de raio estimado de 555 km, o anel circular está situado a um raio de 4.100 km do corpo central. Tal medição extrapola, e muito, os 1.780 km que seriam estabelecidos pelos modelos atuais como o limite máximo para a formação de uma estrutura deste tipo ao redor de um objeto de tais dimensões. Esta distância máxima prevista pelos modelos é chamada de Limite de Roche.

Na astronomia, o Limite de Roche é a distância entre dois corpos que, em tese, define se um objeto secundário, menor, que orbita em torno de outro maior será um satélite natural de estrutura íntegra, como a Lua, ou um anel fragmentado em diversas partículas e distribuídas ao longo da órbita do corpo celeste principal, como os anéis de Saturno. Para calcular tal limite, o astrônomo francês Edouard Roche elaborou, em 1847, uma equação para determinar este limite levando em conta, de maneira resumida, as densidades e os tamanhos dos astros envolvidos e a força de maré, relacionada à força gravitacional, para determinar as zonas de formação dos satélites naturais e dos anéis que orbitam um determinado corpo celeste.

Pela teoria vigente, todos os objetos secundários na região interna ao Limite de Roche se fragmentam pelas interações geradas pela força de maré e se tornam anéis, e aqueles situados além deste ponto preservariam o formato de satélites naturais, ou luas. Todos os anéis densos já conhecidos do Sistema Solar, casos dos anéis de Júpiter, Saturno, Urano, Netuno, Chariklo e Haumea, repetiam o padrão descrito no século 19, localizados relativamente próximos ao corpo central.

Na nova publicação, que colige uma programação minuciosa de observações feitas a partir de locais diferentes da Terra e simulações numéricas de modelos dinâmicos dos objetos em estudo, os pesquisadores relatam que o anel observado em torno de Quaoar  não se encaixa neste padrão. “De fato, a equação se aplica a um satélite fluido que é interrompido perto de um planeta. Mas o processo inverso, a aglutinação de partículas em um satélite, implica mecanismos não contabilizados na equação”, escrevem os autores.

“Todos os anéis densos do Sistema Solar se encontram dentro desse Limite de Roche. O de Quaoar quebrou esse paradigma e ficamos muito, muito surpresos”, relata Bruno Morgado. “Quando mostrei os dados para a minha colaboração, falei ‘parece que tem alguma coisa estranha aqui’. Na época, ainda não sabíamos que era um anel e a primeira pergunta que me fizeram é se estava dentro ou fora do Limite de Roche. Porque, se estivesse fora, não poderia ser um anel… Esta quebra de paradigma mostra que anéis densos podem, sim, ser estáveis além do Limite de Roche. Agora cabe aos astrônomos, aos dinamicistas e aos diversos outros pesquisadores tentar entender quais são os mecanismos físicos que mantêm esse anel estável nesta região”, diz.

“É a primeira vez que vimos uma violação do que se espera para o Limite de Roche. No caso de Quaoar, você tem um anel que está muito fora. Geralmente, quando estamos observando e tentando encontrar anéis, nem observamos regiões tão distantes do corpo central. Havia dados de observações que o pessoal nem pensou em usar para procurar anéis. Fomos olhar os dados anteriores e vimos que o anel já estava lá. Não haviam sido feitos uma análise com calma e um processamento dos dados para perceber que tinha um anel ali”, afirma Rafael Sfair, da FEG-Unesp, um dos autores do artigo. “Descobrimos esse anel, temos os dados que mostram que ele está lá. Mas, por que esse material está na forma de um anel? Por que não se juntou em um satélite? Essas são as próximas questões que teremos que responder”, diz.

A constatação da formação de anéis em torno de corpos celestes menores é algo bem recente no mundo da astronomia. Até 2013, quando um anel foi descoberto no asteroide Chariklo, os cientistas só conheciam os anéis planetários. Os achados mais recentes, em Haumea e agora em Quaoar, estão relacionados a dois dos chamados objetos transnetunianos, ou TNO (na sigla em inglês). Como o próprio nome indica, esses corpos celestes estão localizados após a órbita de Netuno, área também conhecida como Cinturão de Kuiper, que fica bem longe de parte do Sistema Solar onde está situada a Terra (veja infográfico).

Essas grandes distâncias resultam em intrincados desafios para os astrônomos que se propõem a estudá-los. Quaoar, por exemplo, está a 43 unidades astronômicas da Terra, ou 43 vezes mais longe do Sol do que o planeta que habitamos, e só foi observado em 2002. Atualmente, estima-se que tenha um diâmetro de cerca de 1.100 km e seja um objeto rochoso, com uma camada de gelo por fora, perfil traçado para boa parte dos TNOs conhecidos. Quaoar tem uma lua, um satélite natural chamado Weywot e situado a aproximadamente 14.500 km de distância de seu corpo, e agora o anel recém-descoberto, possivelmente de gelo e poeira, a um raio de 4.100 km.

O estudo dos objetos transnetunianos pode revelar novos aspectos sobre o processo de formação e a evolução do Sistema Solar. “Os objetos transnetunianos são resquícios do processo de formação do Sistema Solar. Entender esses objetos, do que são compostos, qual é o formato e quais são as órbitas deles, no fundo, ajuda a gente a entender como foi o processo de evolução do Sistema Solar. São objetos primordiais nesse sentido. Ao estudá-los, estamos vendo coisas que sobraram da formação dos planetas”, afirma Rafael Sfair.

Um ponto comum nas teorias vigentes sobre a formação do Sistema Solar é que os planetas não se formaram nas órbitas que ocupam atualmente. Eles provavelmente se agregaram mais perto uns dos outros, e em uma zona mais interna do sistema. A interação entre os planetas teria feito com que suas órbitas se expandissem e tal interação deve estar relacionada à existência dos objetos transnetunianos, ou Cinturão de Kuiper. “Se soubermos a quantidade desses objetos e que tipo de órbitas eles têm hoje, poderemos inferir como os planetas evoluíram para as posições atuais, por exemplo”, diz Sfair.

No artigo publicado pela Nature, o anel de Quaoar é descrito como não homogêneo, ou seja, não possui uma distribuição uniforme do material: há trechos mais densos, com mais partículas do que outros. Além disso, a ressonância orbital medida é a mesma constatada nos anéis de  Chariklo e Haumea: três para um. Isso significa que, a cada três voltas de Quaoar, uma partícula situada em um anel dá uma volta. Nesse processo, é como se os dois corpos celestes ficassem sintonizados em uma mesma frequência geradora de uma interação que ajuda a explicar fenômenos observados pelos cientistas. Como sugerem os autores do paper, essa ressonância orbital três para um constatada nos anéis de Chariklo, Haumea e agora em Quaoar pode ser reveladora para o estudo de corpos celestes pequenos.

Coincidência entre as ressonâncias

“É muita coincidência que a ressonância orbital dos três anéis que medimos estejam próximas. Quando falamos em anéis, as ressonâncias  vão causar efeitos que ajudam a explicar as características observadas. O anel de Quaoar foi classificado como não homogêneo porque tem uma parte dele que é mais brilhante do que as outras, indicando que ali tem mais partículas”, diz Rafael Sfair, frisando que ainda é preciso estudar mais esse mecanismo. “Lembrando que estamos observando um objeto de cerca de 1.000 quilômetros que está a 43 unidades astronômicas do Sol. Conseguir medir esse tipo de coisa é impressionante, algo extremamente novo. Abriu-se uma nova área de pesquisa com a descoberta desses anéis nos últimos anos. Usamos as informações do anel para estudar o corpo central, o que é uma coisa que não era feita antes”, relata o pesquisador.

Para Bruno Morgado, o conhecimento acumulado com as descobertas no Cinturão de Kuiper, relacionadas aos objetos transnetunianos, está enriquecendo o entendimento do Sistema Solar. “Em particular, acreditava-se que a formação de luas, por exemplo, estava intrinsecamente ligada ao Limite de Roche e agora temos essa descoberta que nos diz que ‘ok, tem mais coisa aí’. O Limite de Roche parece não ser um limite completamente definido. É possível, sim, que tenhamos anéis além desse valor”, diz o pesquisador da UFRJ.

O estudo recém-publicado conta com a participação de cientistas da França, Reino Unido, Austrália, Bélgica, Estados Unidos, Marrocos, Suíça, Suécia, Itália, Alemanha, Nova Zelândia, Espanha, Finlândia e Brasil. As instituições brasileiras envolvidas são, além da Unesp, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal de Uberlândia (UFU), a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), o Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LIneA) e o Observatório Nacional, os dois últimos ligados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

No âmbito nacional, o estudo contou com o apoio, direto ou indireto, do INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) do e-Universo, CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) e Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Os pesquisadores da Unesp que assinam o artigo são o docente Rafael Sfair e os pós-doutorandos Thamiris de Santana, Altair Ramos Gomes Júnior e Gustavo Benedetti Rossi, todos da Faculdade de Engenharia e Ciências do câmpus de Guaratinguetá.

Imagem acima: representação visual de Quaoar. Crédito: Nasa.