Livreira da Editora Unesp preserva a memória da dinâmica vida intelectual de SP nos anos 1960 e 1970

Trajetória de Maria Antonia Pavan de Santa Cruz se confunde com o legado da Duas Cidades, livraria e editora que alcançou o sucesso apostando em ajudar o leitor brasileiro a refletir sobre as principais questões nacionais e civilizacionais de seu tempo, e se consolidou como ponto de encontro de intelectuais de todos os matizes nos anos 1970.

Dois de janeiro de 2023. Tarde nublada no marco zero da cidade de São Paulo, a Praça da Sé. Na esquina com a Rua Benjamin Constant, dentro da Livraria da Editora Unesp, uma septuagenária discreta, de óculos e máscara de proteção facial, demonstra muita vitalidade à frente do computador e do caixa. Em meio ao lançamento do inventário dos livros vendidos no final do ano, época mais aquecida para o comércio, atende de pronto pedidos repentinos dos clientes, nem sempre gentis. Parece guardar na memória a planta da livraria: identifica com a mesma rapidez tanto a localização do bestseller do momento quanto a estante daquele título empoeirado, quase fora de catálogo, que só você busca. 

Maria Antonia Pavan de Santa Cruz, de 76 anos, é funcionária da Fundação Editora Unesp há mais de uma década. Atualmente, está na gerência da loja física da editora, um dos pontos culturais de referência da região central paulistana. Em sua memória, mais do que o mapa da livraria em que trabalha, está boa parte das lembranças de uma das iniciativas mais bem-sucedidas do mercado livreiro da história do Brasil, a Livraria Duas Cidades, que por décadas foi o ponto de encontro de intelectuais no período em que a cidade de São Paulo se consolidava como metrópole cosmopolita e protagonista da cena econômica e política do país. Recentemente, a Duas Cidades ressurgiu nas telas, reproduzida como cenário de um dos ambientes onde transcorre “Marighella”, filme dirigido por Wagner Moura lançado no final de 2021 e que começou a ser exibido como minissérie na Rede Globo nesta semana.

A Livraria Duas Cidades foi fundada pelo professor José Petronilo de Santa Cruz (1918-1997), quando este ainda se chamava Frei Benevenuto de Santa Cruz e integrava a Ordem dos Dominicanos. Depois que deixou a ordem, tornou-se companheiro de Maria Antonia, que já trabalhava na livraria. Após o falecimento de Santa Cruz, ela permaneceu tocando o negócio até seu encerramento, em 2006. Desde então, a livreira tornou-se guardiã dos arquivos que ajudam a reconstruir um pouco a história cultural da cidade e, por que não, do país.

O papel catalisador da Duas Cidades para o meio intelectual paulistano e brasileiro é evidenciado pela tese de doutorado em história do pesquisador Hugo de Carvalho Quinta, intitulada “A trajetória de Santa Cruz e da Livraria Duas Cidades: o livreiro-editor de religiosos, universitários e intelectuais na cidade de São Paulo (1954-2006)”. Maria Antônia tornou a pesquisa possível ao franquear ao historiador o acesso ao arquivo pessoal de Santa Cruz. A tese foi defendida em 2021 na Faculdade de Ciências e Letras (FCL) do câmpus de Assis da Unesp, sob orientação do professor Wilton Carlos Lima da Silva e com apoio de bolsa da Fapesp, e será transformada em livro neste ano, a convite da Ateliê Editorial. “Maria Antonia é uma grande livreira na história do livro no Brasil e foi o eixo deste trabalho”, diz Hugo Quinta.

A Livraria Duas Cidades foi constituída no final de 1954, ano do quarto centenário da cidade de São Paulo, época de celebrações efusivas e investimentos intensos na cidade. Frei Benevenuto de Santa Cruz era um seguidor do movimento Economia e Humanismo, criado na década anterior por Louis-Joseph Lebret (1897-1966), frade dominicano francês de quem se tornou próximo dentro da ordem católica em razão dos projetos sociais e urbanísticos que desenvolveram em diversas cidades brasileiras. 

Em várias ocasiões, Benevenuto se tornou anfitrião de Lebret no Brasil e, como já possuía experiência editorial e vinha trabalhando no Centro de Difusão de Revistas Dominicanas, motivou-se a abrir uma editora que traduzisse e publicasse em português os livros editados em outros idiomas, com o objetivo sobretudo de difundir as ideias centradas no movimento Economia e Humanismo. Padre Lebret, como ficou conhecido no Brasil, era um religioso com formação de economista que se projetou fora da Igreja apontando caminhos para o enfrentamento das desigualdades dos países “subdesenvolvidos”.

No livro “História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo”, de Riolando Azzi e Klaus van der Grijp, Frei Alexandre Oscar Lustosa escreve, como consta na tese, que  “os dominicanos fundaram em São Paulo a livraria Duas Cidades para a difusão de um pensamento cultural mais aberto: ‘colaboraria tanto para a aquisição como para a divulgação de obras específicas e inacessíveis no mercado nacional’”. A Livraria Duas Cidades, que, apesar do nome, já nasceu como livraria e editora, surge no centro de São Paulo para promover “um pensamento produzido por pensadores católicos progressistas”, pontua Hugo Quinta.

Frei Benevenuto deixou a ordem dos dominicanos em 1972 / Arquivo pessoal de José Petronilo de Santa Cruz

No apoio a esse movimento estavam personagens importantes. O primeiro endereço da Duas Cidades, por exemplo, foi uma sala comercial cedida pelo empresário Olívio Gomes, da Tecelagem Parahyba e pai do também empresário Severo Gomes, político que a partir dos anos 1970 fez carreira sólida no MDB de Ulysses Guimarães. “O Frei Benevenuto foi muito amigo do Ciccillo Matarazzo, envolveu-se com a fundação do Museu de Arte Moderna no Ibirapuera e com as celebrações do Quarto Centenário da cidade de São Paulo. Ele conheceu Sérgio Buarque de Holanda e se tornou amigo de Antônio Candido nessa época, por causa do movimento Economia e Humanismo. O período dos anos 1960 e 1970 foi o auge da Duas Cidades”, diz Hugo Quinta.

De sua fundação até a retomada democrática pós-ditadura, passando pelos “anos de chumbo” e o chamado “milagre econômico”, a editora e livraria criada por Frei Benevenuto de Santa Cruz inseriu-se, mesmo que indiretamente, nos debates sobre o projeto de país que se desejava construir.

A Livraria Duas Cidades na Rua Bento Freitas / Arquivo pessoal de José Petronilo de Santa Cruz

Ponto de virada

O ponto de inflexão da trajetória de Santa Cruz e de sua livraria Duas Cidades foi a decisão de deixar a ordem dos dominicanos, em 1972. Um ano antes, Maria Antonia Pavan chegava à Duas Cidades para ser testemunha desta virada. No período de 1954 até finais dos anos 1960, a maior parte dos livros editados falava de filosofia e teologia. A partir dos anos 1970, inicia-se uma abertura às publicações laicas e universitárias.

Natural de Ibitinga, cidade próxima a Araraquara, Maria Antonia cursava letras em um dos institutos isolados de ensino superior que deram origem à Unesp. Ela transferiu o curso para a USP e bateu à porta da Duas Cidades para pedir emprego. Em pouco tempo, conquistou a confiança do professor Santa Cruz. 

Na época, com o Ato Institucional nº 5 (AI-5) em vigor, a Livraria Duas Cidades era vigiada e também frequentada por militares. “Logo no meu início, o (jurista Alfredo) Buzaid era um que frequentava muito a livraria”. lembra Maria Antonia Pavan, citando o advogado que foi ministro da Justiça do general Emílio Garrastazu Médici e implantou a censura prévia em 1970, isentando publicações filosóficas, científicas, técnicas, didáticas e outras que não tratassem de “temas referentes a sexo, moralidade pública e bons costumes”. Buzaidchegava com seguranças, todos homens armados. Dava bom dia ou boa tarde, entrava, escolhia, escolhia, pagava e ia embora. “Eram livros ótimos, por sinal”, diz. 

Pouco antes da chegada de Maria Antonia, a Duas Cidades teve o episódio mais dramático de sua trajetória em 1969, quando agentes da ditadura grampearam o telefone da Livraria Duas Cidades, monitoraram e prenderam dois freis dominicanos que trabalhavam na editora e mantinham contato com o ex-deputado Carlos Marighella, então líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), um dos principais grupos de guerrilha que confrontavam o regime de exceção. Os religiosos foram torturados e, em meio a este conjunto de ações que envolveu forte repressão aos dominicanos, uma emboscada em novembro de 1969 executou o ex-deputado. O episódio é retratado no filme Marighella, de 2021.

Não fosse o respeito que Frei Benevenuto havia conquistado junto à comunidade intelectual ao longo de décadas de atuação como religioso e livreiro-editor, a livraria teria encerrado as atividades ali. “Não quis que esse episódio ofuscasse a tese, mas foi um ponto de transição que chamei de ‘A Ditadura Invadiu a Livraria’, diz o pesquisador. “Frei Benevenuto foi obrigado a depor e fichado no SNI (Serviço Nacional de Informações). Penso que o fato de que ele conhecia o mecenato cultural paulistano, os grandes industriais, e ter trânsito junto à elite intelectual e industrial paulistana foi relevante para que não sofresse outras coações da ditadura militar. Três anos depois do episódio, ele aposentou a batina.”

Encontro de intelectuais

Fora da ordem dos dominicanos, Santa Cruz seguiu na direção da Livraria Duas Cidades que entrou em uma fase marcada por títulos mais voltados para a crítica literária da Universidade de São Paulo (USP), em especial “Os parceiros do Rio Bonito”, de Antônio Candido. Foi naquele momento que Maria Antonia Pavan assumiu um papel importante na operação da livraria. “Dessa época, lembro que publicamos uma coleção de poesia, uma coleção de filosofia do (Martin) Heidegger, traduções de palestras e uma edição do Parceiros do Rio Bonito, do Antônio Candido, que foi um marco para a editora”, diz Maria Antonia. 

A amizade de Santa Cruz com Antônio Candido, nascida do movimento Economia e Humanismo e das missas que o então frei rezava com a presença da mãe do crítico literário na Igreja de São Domingos, no bairro das Perdizes, contribuiu bastante para que a Livraria Duas Cidades se tornasse um ponto de encontro para intelectuais, professores e estudantes, principalmente da USP, em diversos períodos, com destaque para os anos da reabertura democrática iniciada no final da década de 1970. O ano de 1977 foi, por exemplo, o que a editora mais publicou títulos em primeira edição (18).

Ex-chanceler e recém-homenageado com o título de Doutor Honoris Causa pela Unesp, o advogado e professor Celso Lafer era um dos intelectuais que se tornaram bem próximos de Santa Cruz ao longo de sua trajetória livreira. “Eu era um grande frequentador da Duas Cidades e tinha uma enorme admiração pelo Benevenuto, que era um livreiro à moda antiga porque conhecia o que se publicava e sabia escolher e selecionar. E ele tinha muito conhecimento do que se publicava. Para nós, era uma constante oportunidade de atualização”, lembra Lafer, que foi aluno e amigo de Antônio Candido. “Eu passava com regularidade lá, duas ou três vezes por semana, para conversar com ele e com o pessoal dele, uma gente também especial. Era um ambiente democrático, plural, de gente mais voltada para os caminhos do futuro e do progresso”, diz.

Antônio Candido (de terno) em encontro na Livraria Duas Cidades / Arquivo pessoal de José Petronilo de Santa Cruz

Entre as estantes da Duas Cidades, Maria Antônia recebia um público adepto dos mais variados posicionamentos político-ideológicos e no qual figuravam alguns dos principais intelectuais da época. Nomes como o pai do ex-presidente Fernando Collor, o ex-governador de Alagoas (terra natal do professor Santa Cruz) Arnon de Melo, o ministro da educação do governo João Figueiredo, Eduardo Portella, os críticos literários Roberto Schwarz, Davi Arrigucci e Walnice Nogueira Galvão, os poetas Haroldo e Augusto de Campos, o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, o político Franco Montoro… Uma lista estelar. “Arnon de Melo e Bené eram conterrâneos, e isso motivava muitas conversas entre eles”, recorda.

Já no campo editorial houve uma mudança importante. “Com a vinda de orientandos do Antônio Candido, mudou a linha de publicação. Mas ainda havia muita repressão e a editora era visada com relação ao que importava. Seguravam pacotes, não recebíamos remessas. Tivemos problemas”, lembra Maria Antonia.

Hugo Quinta computa 288 títulos publicados pela Duas Cidades. Os títulos de temática religiosa, muitos dos quais sob influência do pensamento progressista católico, dominaram os 15 primeiros anos de existência da editora, até 1969, fase em que três de cada quatro autores eram estrangeiros. Dos anos 1970 em diante, predominaram obras de crítica literária, filosofia e poesia, a maior parte assinada por autores nacionais. Dos 191 autores publicados entre 1954 e 2006, 45 eram franceses e em determinado momento do século passado a Livraria Duas Cidades foi uma das poucas a importar livros da França. 

Em prol da civilização

Apesar da “virada nacional” do catálogo a partir da década de 1970, os livros religiosos da primeira fase continuaram a ser reeditados, pois eram os campeões de vendas. Logo, os títulos com as maiores tiragens da Duas Cidades são todos daquele período, três dos quais do francês Michel Quoist, religioso católico com atuação na América Latina: “Poemas para rezar” (primeiro do ranking); “Construir o homem e o mundo” (segundo) e “Cristo está vivo” (quarto). Neste rol das maiores tiragens, a obra “Rezar os salmos hoje”, com cânticos traduzidos do hebreu para o português, fica em terceiro e em quinto aparece o primeiro título não religioso, da segunda fase da editora, justamente “Os parceiros do Rio Bonito”, de Antônio Candido, que teve nove edições e foi publicado de 1971 a 2001.

O professor José Petronilo de Santa Cruz / Arquivo pessoal de José Petronilo de Santa Cruz

 “Em resumo, podemos dizer que o professor Santa Cruz pensava essa livraria e editora preocupado com a formação das pessoas, de leitores que discutissem questões nacionais e também civilizacionais”, diz Hugo Quinta. “Problemas como a pobreza, a miséria e as guerras no contexto de formação de uma militância católica engajada. Nesse sentido, esses livros foram muito importantes para aquela militância católica organizada que se envolveu com o movimento estudantil e com as greves nacionais dos anos 1960, no final do governo João Goulart”, analisa. “Em minha tese, tento construir o argumento de que o professor Santa Cruz foi um livreiro e editor de Deus e dos homens”, afirma. A obra lhe valeu o convite, por parte de uma professora da Universidade Católica do Uruguai, para escrever um capítulo para o livro “Catolicismo progresista y catolicismo tercermundista en América Latina: vínculos y diferencias (1950-1980)”, a ser lançado no segundo semestre de 2023.

Maria Antonia Pavan de Santa Cruz viveu com José Petronilo de Santa Cruz até a sua morte, em 1997. Após o falecimento, liderou o lançamento de uma coleção chamada Espírito Crítico, na qual títulos esgotados da segunda fase da Duas Cidades foram relançados em parceria com a Editora 34. Estes relançamentos ajudaram a manter a editora até 2006. Atualmente, atrás dos balcões da loja física da Editora Unesp, a livreira busca uma instituição que possa abrigar os arquivos pessoais do professor José Petronilo de Santa Cruz, o Frei Benevenuto, ou Bené, como ela o chamava de forma carinhosa. 

A exceção das tarefas ligadas ao trabalho diário, em que lida com o público, a livreira é reservada e não costuma sair para eventos sociais. Nas festas do final do ano passado, só quebrou a quietude de sua rotina caseira para ir a um restaurante na região central da capital para confraternização anual agendada pela Editora Unesp, ocasião em que nem sempre está presente. “Este mundo dos livros em que trabalho é maravilhoso. Eu já gostava e aprendi a gostar mais ainda com o Bené. Tudo o que sei devo à Duas Cidades e sigo aprendendo aqui (na livraria da Editora Unesp), com funcionários, com clientes, com os livros. É um aprendizado que acho que nunca acaba. Eu tenho essa vantagem”, afirma.

Foto acima: Fábio Mazziteli.