Investir no reflorestamento natural da mata atlântica é boa estratégia para garantir sobrevivência da preguiça-de-coleira

Estudo antecipa três possíveis cenários futuros para espécies de preguiças e seus habitats em estados do Sudeste e do Nordeste. Preservação desses ambientes por meio de políticas públicas e manejo do uso do solo tem potencial para mitigar efeitos de mudanças climáticas.

Diante da realidade do aquecimento global, o replantio de árvores em larga escala, visando a recuperação de florestas e biomas, pode ser o melhor caminho para mitigar mudanças climáticas e combater os diversos impactos sobre a biodiversidade. No entanto, o processo natural de reflorestamento também pode apresentar certas vantagens em relação às florestas replantadas, e, como mostra um estudo novo que contou com a participação de pesquisadores da Unesp, servir como um instrumento valioso para assegurar a existência das preguiças-de-coleira, conhecidas pelo nome científico de Bradypus torquatus (preguiça-de-coleira do Nordeste) e Bradypus crinitus (preguiça-de-coleira do Sudeste).

 A bióloga Paloma Marques Santos faz pós-doutorado no Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA) e é pesquisadora associada ao Laboratório de Ecologia Espacial e Conservação (LEEC), do câmpus de Rio Claro e do Instituto Tamanduá. Ao lado de outros três pesquisadores do LEEC, e de cientistas de outras universidades, ela liderou um estudo publicado no Journal of Mammology em que investigou como diversos cenários para o futuro da Mata Atlântica no contexto das mudanças climáticas podem afetar as condições de sobrevivência da preguiça-de-coleira.

 Como espécies endêmicas da Mata Atlântica, as preguiças-de-coleira são altamente dependentes de floresta, sobretudo de florestas ombrófilas, onde os índices de chuva são elevados. É do alto, nas copas, que elas se alimentam, se abrigam, se locomovem e dormem. Por serem animais cuja temperatura corporal varia conforme o ambiente, elas recorrem às árvores para seus comportamentos termorregulatórios, escondendo-se nas copas nas horas mais quentes do dia e se aquecendo nos topos das mesmas, durante o período mais frio. (Tais características, aliás, implicam que as mudanças climáticas terão impactos ferrenhos sobre essas espécies.) E os animais também desempenham uma função importante na cadeia alimentar, servindo de presas aos chamados predadores de topo de cadeia, categoria que inclui felinos e grandes aves de rapina. “Percebemos que a presença destes animais indica que a mata está saudável, que possui uma estrutura um pouco mais complexa e completa. Por isso são consideradas guardiãs das florestas”, diz.

Nichos ecológicos versus influência humana

Para a pesquisa que resultou no artigo, Paloma investigou duas diferentes populações de preguiças-de-coleira: a preguiça-de-coleira do Nordeste, que habita as florestas de Mata Atlântica nos estados de Sergipe e Bahia, e a preguiça-de-coleira do Sudeste, que ocorre na Mata Atlântica do Espírito Santo e do Rio de Janeiro. Na análise, ela empregou modelos de nicho ecológico – desenvolvidos no LEEC – com o objetivo de elaborar estimativas de quais serão, nestes estados, as áreas florestais adequadas para a existência desses mamíferos no ano de 2070.

Pesquisador responsável pelo LEEC e um dos autores do artigo, Milton Ribeiro diz que o conceito de nicho envolve a existência de condições naturais adequadas para que uma determinada espécie possa se instalar e viver em uma área. A onça parda, por exemplo, pode ser encontrada em uma vasta área que se estende desde o sul dos Estados Unidos até o sul da América do Sul. Isso não quer dizer, no entanto, que em todos os pontos desta região sejam encontradas as condições necessárias para permitir que o animal viva e prospere. Na contramão, um animal como o mico-leão-dourado só encontra as condições ideais, ou seja, seu nicho, em um contexto climático específico no estado do Rio de Janeiro. “O nicho exige a existência dessas condições que são boas para determinada espécie”, diz Ribeiro. Para elaborar os nichos, os pesquisadores avaliam diversos parâmetros de uma dada área, incluindo altitude, precipitação, temperatura e sazonalidade, que são importantes para a adaptabilidade de determinada espécie.

No estudo conduzido por Paloma Santos e seus colaboradores, eles partiram das variáveis climáticas que impactam o habitat das preguiças-de-coleira, tais como, altitude, precipitação, temperatura e sazonalidade, somadas a variáveis espaciais, como a cobertura florestal e cobertura de pastagens. Dessa forma, eles puderam chegar a resultados de adequabilidade ambiental favoráveis para as espécies. As combinações resultaram um total de 38 modelos, ou 19 para cada uma das duas grandes áreas geográficas analisadas. Por apresentarem semelhanças, alguns modelos foram combinados, até que restaram o modelo atual mais três cenários futuros.

A preguiça-de-coleira vive a maior parte da vida na copa das árvores

Além do modelo atual, há um primeiro cenário com mudanças climáticas e nenhum tipo de regeneração florestal; o segundo, com mudanças climáticas e regeneração natural mínima e o terceiro que aponta para um cenário de mudanças climáticas e máxima regeneração florestal.  Além disso, os cálculos também levaram em consideração o estatuto de preservação da área de ocorrência do mamífero. As análises distinguiram entre Áreas Protegidas (Proteção Integral ou Uso Sustentável), Áreas de Preservação Permanente, e outras sem proteção. Devido à dificuldade de acesso aos dados referentes às Reservas legais, estas não foram incluídas na contabilização. De acordo com a legislação brasileira, as categorias têm possibilidades de uso diferenciadas, o que pode indicar se, no futuro, haverá perda ou ganho de adequabilidade ambiental. Como grande parte das áreas adequadas para as preguiças estão localizadas em áreas desprotegidas – ou em Reservas Legais -, os pesquisadores reforçam a urgência de políticas públicas com foco na regeneração florestal.

Após essa análise, o grupo concluiu que o território do norte, que hoje já apresenta uma região mais ampla adequada para a vida das preguiças – nada menos do que 21.570 km² – deve passar por uma expansão natural em todos os cenários de mudança climática previstos para o futuro, superando os 45 mil km². Já no sul, onde atualmente a área de Mata Atlântica adequada para as preguiças se estende por apenas 12.570 km², deve encolher bastante, e perder mais de 7.000 km², se nenhuma medida de regeneração florestal for tomada nos próximos anos.

Porém, embora o território tenha a chance de diminuir pela metade, os pesquisadores ainda se mantêm confiantes, porque há sim possibilidades de mudança. “Grande parte das pesquisas tratam das mudanças climáticas e da perda florestal. Nós fomos por outro caminho, criando possibilidades para investir na regeneração florestal”, explica Paloma.

 Segundo Ribeiro, existem duas variáveis que devem ser analisadas em pesquisas envolvendo nichos ecológicos: uma é a vertente climática, que contempla as mudanças de temperatura, precipitação, etc. ao longo de uma escala de tempo mais longa. A outra mira o antropoceno, avaliando as ações antrópicas que acontecem em um período menor e que exercem impacto quase imediato e em curto prazo. “O homem influencia a mudança climática numa perspectiva de tempo longo. E, ao mesmo tempo, ele pode influenciar a mudança da paisagem em um tempo curto. Um exemplo disso é que, há 40 anos, tínhamos o Cerrado quase intacto. Hoje só resta a metade do seu território”, explica ele.

 Nesse sentido, o manejo que se faz da terra é o ponto crucial para aumentar ou diminuir as chances de regeneração florestal passiva. Logo, se no entorno das plantações ou pastagens houver muitos focos de mata, a possibilidade de que uma terra abandonada possa gerar outro espaço de mata é maior, pois os animais e aves dispersores de sementes vão se deslocar de um espaço ao outro. Por outro lado, se não houver florestas, a regeneração passiva se torna inviável. Por isso também a possibilidade de regeneração passiva fica aumentada quando a distância entre as florestas é menor. “O modelo que a gente propõe de regenerabilidade potencial depende do que existe no entorno. Se o entorno é positivo, é possível abandonar uma determinada área e, por meio da resiliência do sistema, essa área é reflorestada”, diz Ribeiro. 

 Considerando que o reflorestamento ativo de um hectare – o que equivale a um campo de futebol – custa, em média, R$ 30 mil, os pesquisadores apostam na combinação da resiliência do sistema com políticas públicas eficientes, que incentivem o uso sustentável da terra. “Acreditamos que, ao ampliar a quantidade de área de floresta, conectando áreas e dando chance de os indivíduos se deslocarem, aumentando o fluxo gênico, conseguiremos mitigar os efeitos das mudanças climáticas”, afirma o professor. E um desses possíveis efeitos negativos seria a diminuição de áreas adequadas das preguiças-de-coleira do Sul.     

  

Impactos positivos do homem sobre o ambiente

 A questão é que se as preguiças perdem, todo mundo perde, e o contrário também vale.  Embora na atualidade o estado de São Paulo possua uma média bastante baixa de mata nativa – apenas entre 5% e 10%, bem abaixo dos 20% preconizados pelo Código Florestal – o professor acredita que exista um potencial latente para que São Paulo se torne exemplo para o mundo. Em estudo pioneiro, pesquisadores do LEEC, incluindo Ribeiro, analisaram modelos de nichos ecológicos para outras espécies e preconizam a regeneração natural para mitigação dos impactos das mudanças climáticas.  Ampliando o debate sobre o antropoceno – para além da destruição causada pela interferência humana, Ribeiro é otimista e acredita que, se houver interesse por parte dos setores público e privado, sobretudo por parte de grandes empresas, soluções podem ser encontradas. E cita como exemplo o Conexão Mata Atlântica, um projeto que começou a ser desenhado em 2011, mas que só saiu do papel efetivamente em 2018, quando passou a receber recursos da ordem de R$ 100 milhões do Fundo Global para o Meio. Em um esforço conjunto do governo federal e dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o Conexão Mata Atlântica, cujo nome completo é Projeto de Recuperação e Proteção dos Serviços do Clima e da Biodiversidade do Corredor Sudeste da Mata Atlântica Brasileira, tem oferecido incentivos financeiros para reconhecer a contribuição prestada por produtores rurais  para a preservação da floresta e dos recursos naturais.  Ao longo desse período, o projeto já se consolidou em diversas regiões paulistas, como o Vale do Ribeira e do Paraíba, e recantos do Rio de Janeiro e Minas Gerais. “Dependendo da região e do modo como é feito o manejo da terra, o homem é sim capaz de gerar um cenário mais sustentável, mesmo sob intensas mudanças climáticas”, diz Ribeiro.

Fotos: Paloma Marques Santos.