Autor de centenas de composições e de um rico trabalho autoral que passeia por gêneros musicais tão diversos como o samba, o blues, o frevo, o bolero, o baião, a balada, carimbo e o rock entre outros, Péricles Cavalcanti é um artista que esbanja criatividade, personalidade e abrilhanta a música popular brasileira por meio de letras e arranjos que fogem bastante de qualquer lugar comum.
Filho do pernambucano Mariano de Moura Cavalcanti que foi padre, jornalista esportivo e professor de língua portuguesa, e da baiana Adalgiza da Rocha Cavalcanti, Péricles nasceu no Rio de Janeiro em 1947, mas se mudou com a família para São Paulo ainda criança, onde foi criado.
“Meu pai foi seminarista e jornalista, deixou de ser padre após se apaixonar pela minha mãe. Morávamos no Rio, mas viemos para São Paulo, pois ele conseguiu um trabalho na revista do São Paulo Futebol Clube. Devido às suas formações, ele sabia tocar um pouco de violão e uma flauta transversal de madeira. Adorava música erudita e Luiz Gonzaga. A minha mãe ouvia os cantores da Rádio Nacional: Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Dalva de Oliveira, entre outros. Então, fui criado nesse meio e meu pai me ensinou os acordes básicos do violão. A gente tinha um astral musical muito eclético em casa, mas sem pretensões de me tornar músico”.
Em meados dos anos 1960, um primo da Bahia que participava dos movimentos estudantis universitário e político durante a ditadura militar lhe apresentou os amigos Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa, que também tinham ido morar em São Paulo. Assim, a amizade entre eles se iniciou.
“Primeiramente chegaram o Gil e Belina (sua primeira esposa, falecida em 2019) que estava grávida da primeira filha. Meus pais os acolheram em casa, enquanto ele buscava um lugar para residir. Gil era formado em administração e veio para trabalhar na Gessy Lever, que na época ficava em Campinas. Nós morávamos na região do Jabaquara. Então ele passava a semana lá e aos finais de semana retornava para casa, e ficávamos tocando violão. Foi justamente nessa fase que comecei a ter mais acesso, a entender e executar melhor a música. Posteriormente chegou Caetano, me lembro dele dormindo numa rede no meu quarto, e em seguida a Gal. Foi um momento muito especial. Desde então, nos tornamos amigos e começamos a conviver de certa forma juntos”, lembra.
Já em 1969, Péricles deixou a faculdade de Filosofia na USP. Foi para Paris e depois para Londres, onde ficou dois anos com Caetano e Gil. “Na verdade ocorreram muitas coisas nesse período. Quando eles foram presos e confinados na Bahia, eu fui visitá-los. Depois me lembro de levá-los ao aeroporto Galeão / RJ, quando foram exilados. Posteriormente, decidi ir para Paris, pois havia um movimento cultural interessante. Lá eu vivi um tempo, inclusive tocando nos metrôs e outros espaços. Até cheguei a ganhar um dinheiro que dava para eu pagar um aluguel, me alimentar e ir ao cinema”, lembra. “Em seguida fui para Londres e fiquei morando com Gil, Caetano e outros amigos. No início da década de 1970, vivendo em Londres, realizei a minha primeira gravação como músico profissional na trilha para o filme“Copacabana Mon Amour”, do cineasta Rogério Sganzerla. Ele havia chamado o Gil para fazer a trilha do filme. O Gil tinha uma bandinha que tocávamos lá na casa dele e nos chamou para acompanhá-lo nesse trabalho. Passamos uma tarde dentro de um estúdio. Foi uma gravação tecnologicamente simples, mas emblemática para a minha trajetória”, conta.
Segundo Péricles, a vivência na Europa foi fundamental para sua formação pessoal e artística. “Ali nós tivemos o privilégio de ver de perto o que ocorria na música e na cultura do pop inglês e americano. Assisti a shows de artistas como The Who e Frank Zappa e a festivais com jazzistas norte-americanos, entre outros. Me lembro de ir com Caetano a um show de John Lennon e Yoko Ono num teatro com no máximo trezentas pessoas. Foi muito marcante, pois os Beatles haviam acabado de se separar e Lennon e Yoko estavam apresentando novidades artísticas”, diz.
De volta ao Brasil, em 1973, começou a compor. Logo Gal Costa gravou “Quem Nasceu?” no álbum Temporada de Verão e “O Céu e O Som”, no disco Cantar. Desde então, Péricles não largou mais a música. “Confesso que nunca tive a pretensão de me tornar um compositor profissional. Porém, quando comecei a escrever, fui apresentar meus escritos aos meus amigos, que eram justamente Gil, Caetano e Gal. Foram as primeiras pessoas que conheceram minhas composições. Nesse caminho, tudo fluiu de forma natural”, diz.
Já na década de 1980, compôs para a peça de teatro A Farra da Terra do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, que contava com integrantes que se tornariam célebres, como Regina Casé, Hamilton Vaz Pereira e Luiz Fernando Guimarães. No teatro, colaborou com o Teatro Oficina (Usina-usona) de José Celso Martinez Corrêa e Marcelo Drummond, compondo para a montagem de “Os Sertões”, além de “Os Satyros” e “Pranto de Maria Parda”, adaptação do escritor Gil Vicente.
Um dos seus trabalhos mais conhecidos é “Elegia”, canção na qual musicou parte do poema homônimo de John Donne, na tradução de Augusto de Campos, gravada por Caetano Veloso no disco Cinema Transcendental e que ganhou notoriedade no repertório do artista baiano. A parceria com Caetano também rendeu outros belos frutos como a letra para a música “Negro Amor”, versão da canção “It’s All Over Now, Baby Blue”, de Bob Dylan, gravada de forma magistral por Gal Costa. Caetano Veloso gravou também “Musical” e “Blues”. Outros intérpretes famosos incluem Adriana Calcanhotto, com “Medo de Amar nº 3”, “O Príncipe das Marés”e “Ser de Sagitário”, Arnaldo Antunes com “Eva e Eu” e “Óbitos” e Cássia Eller com “Eu queria ser a Cássia Eller”.
Aos 75 anos, Péricles é reconhecido como um personagem ímpar na MPB, mas isso não impede que ele flerte com as novas tendências musicais e acompanhe novas gerações de artistas, enquanto segue firme com seus shows. O próximo será no Sesc Belenzinho, na capital paulista, em 29 de janeiro.
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast Unesp.