“Toda ameaça à democracia e ao estado de direito é uma violação dos direitos humanos.”

Coordenador de pesquisa do Observatório de Educação em Direitos Humanos, Ari Maia fala dos desafios que a próxima gestão federal irá enfrentar para superar os pesados retrocessos vividos na área nos últimos quatro anos, e como o conceito tem se ampliado para incluir até as temáticas da vida digital e do meio ambiente.

O dia internacional dos Direitos Humanos, celebrado a cada 10 de dezembro, é a oportunidade de fazer um balanço de como a sociedade brasileira tem lidado com o direito à vida de seus cidadãos, em suas múltiplas esferas. E, no Brasil, os resultados deste balanço são realmente preocupantes. É o que diz Ari Maia, professor do departamento de psicologia do câmpus de Bauru e coordenador de pesquisa do Observatório de Educação em Direitos Humanos, em entrevista ao Jornal da Unesp.

Maia explica que hoje a discussão sobre o escopo dos direitos humanos está  constantemente em expansão, dinamizada pelo circuito de pactos e tratados internacionais. Isso permite que seja reconhecido como legítima aspiração o direito a um meio ambiente limpo e sustentável, ou a uma vida digital adequadamente regulada.

“Diversos aspectos da existência perpassam pelos direitos humanos, mas o principal e mais relevante deles é a preocupação com a manutenção da vida”, diz.

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Qual a avaliação que você faz do panorama institucional dos direitos humanos hoje no Brasil?

Ari Maia: Para os direitos humanos, o governo Bolsonaro foi uma catástrofe. Os mecanismos de controle democráticos, como os conselhos da sociedade civil, foram descontinuados ou boicotados. Houve várias ações que minaram a capacidade da sociedade civil de participar e fiscalizar as ações do governo. O Brasil já tinha uma cultura pobre de respeito aos direitos humanos. O termo direitos humanos é uma expressão polissêmica muito vasta, abrange uma quantidade muito grande de arcabouços jurídicos que implicam instituições para que eles possam existir e funcionar. Mas isso implica também uma acolhida cultural, um povo que reconheça esses direitos, respeite e os reivindique. E o Brasil  tem uma cultura muito pobre nesse sentido. Então sob esse aspecto também foi catastrófico.

 A primeira questão mais básica, mais essencial, é que não existe direito humano mais fundamental que o direito à vida. E nós tivemos 690 mil mortos pela pandemia, muito maior que a média global. E o Brasil voltou ao mapa global da fome. Também armar a população é um descaso com a vida. É como se fosse possível desobrigar o Estado da sua função de garantir a segurança pública e privatizá-la, dizendo assim: você que compre sua arma e se defenda.

Há descaso com a vida no descaso com a floresta, com o meio ambiente, com o estímulo à ocupação ilegal de terras, a queimadas, à mineração ilegal. Enfim, eu diria que o primeiro e mais essencial elemento de desrespeito aos direitos humanos que precisa ser assinalado é um descaso com a vida. E este foi um governo da pulsão de morte.

A Anistia Internacional fez uma lista com pelo menos 30 violações ocorridas nos últimos quatro anos

Ari Maia: Conheço esse documento da Anistia. E acho muito importante o trabalho da Anistia, da Human Rights Watch, e que essas agências façam essas denúncias. O trabalho de pensar os direitos humanos durante o governo Bolsonaro, item por item, está feito.

Mas pensar, por exemplo, o descaso desse governo com a vida e como isso infelizmente tem uma consequência maior para uma parte da população brasileira me parece mais crucial. Porque estou muito preocupado no modo como se faz a educação em direitos humanos e a possibilidade de formar novas gerações capazes de compreender a importância dos direitos humanos.

Historicamente esse conceito forma a base filosófica, cultural e jurídica das democracias modernas. E, nesse sentido, esta é uma outra dimensão importante: toda ameaça à democracia e ao estado de direito é uma violação dos direitos humanos. Quer dizer, a ideia de direitos universalizáveis – que nunca se universalizaram, mas a ideia toda é que eles são universalizáveis – se opõe diretamente à ideia de privilégio, de abuso, violência, negligência, exploração de pessoas. Mas a atual administração foi, na verdade, um governo do privilégio, da exploração, da violência. E, nesse sentido, um governo antidemocrático, um governo afeito à manutenção e ampliação de privilégios. E para usar uma expressão direta, um governo de máfia.

Nesse aspecto psicológico, se você descreve o governo atual como associado a uma pulsão de morte, faz sentido pensar que a eleição sinalizou o desejo por outro tipo de pulsão?

Ari Maia: Eu adoraria dizer isso com entusiasmo e acreditar nisso. Mas acho que a política opera em parte pela racionalidade, e talvez também,  e na maior parte, pela paixão, por narrativas às quais as pessoas aderem sem necessariamente ter clareza ao que estão aderindo.

Mas, de qualquer forma, sem dúvidas, é uma vitória da vida. Tanto que o discurso da propaganda do candidato eleito entendeu isso e falava em reconstruir uma unidade nacional com base na conciliação. O que acho muito mais saudável do que o apelo à morte que faz um governo ao falar em armar, em matar, e que não reconhece a memória das catástrofes passadas.

Agora, é claro que um atentado à memória dessas catástrofes sociais que foram os anos da ditadura, ou das ditaduras, a substituição do bordão Nunca Mais pela expressão  “Queremos golpe”, as inúmeras tentativas de extinguir as comissões sobre mortos e desaparecidos são atentados à memória que são atentados diretos aos direitos humanos.

Uma sociedade que tenha, no mínimo, o reconhecimento  por seus diversos atores como sujeitos humanos que merecem viver… Quer dizer, não é que esse governo quisesse matar todo mundo. Há alvos específicos, e nesse sentido, o primeiro passo para eliminar esses alvos é apagar a memória, é romper os laços de reconhecimento. É dizer que aquelas pessoas não são seres humanos válidos: são pervertidos, comunistas, sei lá. O nome pode variar, na Alemanha nazista eram os judeus. Aqui, existe um descaso com certas populações, como indígenas, quilombolas, carcerárias, as mulheres… O machismo estruturante de falas, de práticas. Durante a pandemia da Covid-19, não houve nenhuma política de cuidado com essas populações, carcerárias, indígenas ou quilombolas. E isso vai na esteira dessa desumanização de determinadas populações, daí que o passo seguinte instrumentaliza a perseguição e a morte. É assim que os estados totalitários funcionam.

Recentemente vimos casos de crianças que engravidaram por violência sexual e que tiveram o direito ao aborto negado pelo Estado. Vivemos um cenário de retrocesso, no que tange esse direito?

Ari Maia: Quando temos uma situação abstrata fica fácil defender a vida. Mas, do ponto de vista dos direitos humanos, se sairmos do abstrato para a concretude de pessoas reais, em um estado que não faz educação sexual, que não fornece de forma livre e aberta meios de evitar a concepção, o que acontece é que as pessoas engravidam, em condições totalmente desfavoráveis, muitas vezes. E qual vida importa? Porque algumas gravidezes colocam a vida das mulheres em risco também. Na concretude, é que a proibição gera mais mortes do que uma certa liberação com controle e educação. Ou seja, o discurso abstrato não serve à defesa da vida, ele serve como ideologia de controle dos corpos.

Quais os desafios que a próxima gestão federal vai encontrar na área a partir de 2023?

Ari Maia: A próxima gestão vai ter bastante trabalho pela frente. Destruir é fácil, construir é difícil, porque envolve um trabalho sistemático. Exige muito tempo, paciência, tentativa e erro, mobilização de muita gente. Construir uma cultura de direitos humanos é um trabalho para diversas gerações no país.

Os direitos humanos são algo que não para de expandir. Hoje eles também englobam a vida natural, as florestas, os animais. Temos, atualmente, todo um campo dos direitos do mundo digital. Imagine o que será construir uma cultura para essa área…

Porque a cultura do smartphone, do digital é dirigida e produzida pelos aplicativos, ou seja, por corporações globais. Isso é seríssimo e precisava de regulação. Ela até existe em pactos, mas acompanhar a evolução digital e modular, em alguma medida, conteúdos, aplicativos viciantes… É bem complexo. Como um aplicativo pode ser construído para ser viciante? Isso deveria ser proibido, deveria ser como o caso do cigarro.

As campanhas educativas não podem tudo, mas têm uma efetividade. Embora leis e regras não resolvam de uma vez, elas são importantes. É um trabalho de formiguinha, lento, penoso, contraditório… Só que fundamental.

Imagem acima: rawpixel.com.