Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), nosso planeta abriga hoje cerca de 9 milhões de cientistas profissionais em atividade. Essa comunidade efervescente e criativa registra seu trabalho através de artigos técnicos (algumas estimativas chegam a falar em 2,5 milhões escritos anualmente) que eventualmente são divulgados por meio de revistas científicas especializadas. Porém, o acesso à maior parte desse conhecimento não é algo tão simples, e frequentemente esbarra em limitações que vão do alto custo das assinaturas das revistas científicas à pura e simples competição entre instituições, empresas e países.
Para mudar esse quadro e favorecer o desenvolvimento de uma ciência mais transparente, plural e participativa, um crescente número de cientistas, acadêmicos, formuladores de políticas públicas, empresários e membros da sociedade em geral têm se reunido em torno de um movimento conhecido como Ciência Aberta. No mundo inteiro, governos e comunidades nacionais têm se organizado de maneira a fomentar as práticas da Ciência Aberta, e a adesão tem crescido consistentemente, desde a década de 1990.
No Brasil, algumas movimentações institucionais em prol da Ciência Aberta estão ligadas também a outra iniciativa internacional, a chamada Parceria para Governo Aberto. Atualmente, dois pesquisadores da Unesp, Sigmar de Mello Rode, do Instituto de Ciência e Tecnologia, câmpus de São José dos Campos, e Silvana Aparecida Borsetti Gregorio Vidotti, da Faculdade de Filosofia e Ciências, câmpus de Marília, colaboram com a produção da 5ª edição do Plano de Ação Nacional de Governo Aberto, que tem como um dos seus objetivos desenvolver propostas para orientar a avaliação de produções que seguem o modelo de Ciência Aberta. “É importante fazer com que os nossos textos científicos sejam publicados em canais de acesso aberto, para levá-los para a sociedade que custeia nosso trabalho”, diz Vidotti.
Entre as iniciativas vigentes de Ciência Aberta estão as revistas científicas de acesso aberto, que permitem a qualquer pessoa interessada ler os artigos sem a necessidade de efetuar qualquer tipo de pagamento. Outros exemplos incluem softwares livres, museus de ciência e parques exploratórios. Entretanto, os objetivos do movimento de ciência aberta vão além: espera-se mudar completamente a cultura científica e o sistema de avaliação de produtividade que, hoje, valoriza a quantidade de publicações do cientista, em detrimento da qualidade do trabalho.
Rode lembra que, no Brasil, a maior parte da produção científica é viabilizada por financiamento estatal, que é disseminado por meio de instituições como o CNPq, as Fundações de Amparo à Pesquisa, a Capes, as universidades e institutos de pesquisa. “O dinheiro do governo vem do pagamento de impostos da sociedade, então nada mais justo que a sociedade tenha acesso ao conhecimento que é produzido com seu dinheiro”, diz o professor, que também é presidente da Associação Brasileira de Editores Científicos.
O governo brasileiro aposta na Ciência Aberta
Em 2011, o Brasil foi um dos cofundadores da Parceria para Governo Aberto, uma iniciativa que busca estimular os estados nacionais a adotarem práticas governamentais participativas e a fomentar a transparência na gestão, e que hoje conta com a adesão de 77 nações. A cada dois anos, os países-membros desenvolvem um Plano de Ação Nacional, criado em conjunto com a sociedade civil, que define objetivos e metas para ampliar a transparência, a prestação de contas, a responsabilização e a participação pública no governo.
Desde o 1º Plano de Ação Nacional, publicado em 2011, estavam presentes compromissos relacionados a dados abertos. Entre as iniciativas implementadas graças aos Planos de Ação Nacionais estão a Lei de Acesso à Informação, a reestruturação do Portal da Transparência e o aprimoramento da transparência dos dados do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor. Já, em 2018, no 4º Plano de Ação Nacional, pela primeira vez foi apresentado um compromisso relacionado especificamente com Ciência Aberta.
Com o objetivo de “avançar nos processos relacionados à disponibilização de dados abertos de pesquisa científica por meio do aprimoramento de instrumentos de governança”, delineado no compromisso 3, do 4º Plano de Ação Nacional, foi criado o Consórcio Nacional para a Ciência Aberta (CoNCienciA) envolvendo o CNPq, o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), a Embrapa, a Fiocruz e o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) como instituições fundadoras. O objetivo do CoNCienciA é incentivar a criação de repositórios científicos, principalmente por meio da atribuição de identificadores persistentes como o DOI, que é o padrão utilizado internacionalmente para a identificação de produção científica.
No evento de lançamento do plano, Bianca Amaro, do Ibict, ressaltou a importância de universidades e instituições de pesquisa trabalharem juntas para impulsionar esse movimento de abertura dos processos científicos. “Aquela velha máxima ‘juntos somos mais fortes’ é, de fato, uma realidade principalmente quando falamos de Ciência Aberta. Nós necessitamos criar uma infraestrutura brasileira para suportar as ações da Ciência Aberta”, disse.
Atualmente, o Brasil está seguindo o 5º Plano de Ação Nacional, que tem 11 compromissos definidos a serem cumpridos. Entre eles está o compromisso 8, coordenado pelo Ibict, para “construir uma proposta de modelo de avaliação que fomente a ciência aberta”. Até dezembro de 2022, almeja-se desenvolver novas técnicas e métricas que viabilizem a avaliação de produções de Ciência Aberta. “Esses novos modelos de avaliação trarão maior transparência ao processo de geração do conhecimento científico. Consequentemente, alcançaremos o aumento no acesso, no uso e na apropriação dos resultados das pesquisas científicas por parte dos cientistas e da sociedade em geral”, comenta Priscila Sena, pesquisadora do Ibict que integra a equipe da Coordenação de Tratamento, Análise e Disseminação da Informação Científica.
Para alcançar o objetivo geral, foram definidos marcos com passos mais específicos. Silvana Aparecida Borsetti Gregorio Vidotti, que também é assessora de gabinete da Pró-reitoria de graduação da Unesp (Prograd), integra juntamente com Rode a equipe responsável pelo Marco 2. O objetivo desse marco é definir propostas para avaliar a qualidade de repositórios de dados e de pesquisas. “Temos olhado para os vários atores da Ciência Aberta, como os estudantes, os pesquisadores e os editores de revistas científicas, a fim de entender o que esperam de um repositório para, depois, definir os indicadores de qualificação de repositórios de dados e de publicações”, explica.
Segundo a pesquisadora, para que um repositório possa ser qualificado como de excelência não é suficiente que seja de acesso aberto. Ele deve seguir os chamados princípios FAIR, um acrônimo criado pelo movimento de Ciência Aberta, que estabelece que os dados ali contidos devem ser localizáveis, acessíveis, interoperáveis e reutilizáveis. Estes princípios visam um aumento na eficiência da utilização das informações, tanto por parte dos pesquisadores, como da sociedade em geral. “A ideia do Marco 2 é poder pensar nesse ecossistema da Ciência Aberta. Vamos estabelecer os elementos e os princípios que devem ser utilizados para criar um repositório que será qualificado e bem-estruturado”, diz Vidotti.
Sigmar de Mello Rode, enquanto presidente da Associação Brasileira de Editores Científicos, coordena outros dois marcos. O marco 4 versa sobre “Métricas alternativas para a avaliação que contemple a Ciência Aberta” e o marco 6 desenha uma “Proposta de qualificação das revistas científicas e critérios alternativos nas dimensões de ciência aberta, para enriquecer a estratificação do Qualis”. Ambos os marcos têm a finalidade de promover indicadores para valorizar a produção científica em Ciência Aberta.
Atualmente, o 5º Plano de Ação Nacional já completou 41,56% dos objetivos estipulados. O Compromisso 8, referente à Ciência Aberta, é o terceiro que mais já avançou, com 54,55% das metas atingidas. Dentro do Compromisso 8, o Marco 1, que objetiva levantar critérios nacionais e internacionais de avaliação de pesquisadores e instituições de pesquisa, já consta como concluído, assim como o Marco 5, sobre “Proposição de Indicadores para a Ciência Cidadã”. A expectativa é que os indicadores de avaliação desenvolvidos sejam divulgados ao final da vigência do 5º Plano de Ação Nacional.
Estas são estratégias para difundir a Ciência Aberta com foco especialmente na comunidade científica. Vidotti defende que se facilite o acesso também a aulas, livros e materiais produzidos e utilizados para atividades de ensino. “A universidade pública tem no ensino, na pesquisa e na extensão, e isso precisa ser compartilhado. E esse compartilhamento pode ocorrer pelo contexto do acesso aberto”, diz.
A Unesp já tem sua política de Acesso Aberto
Desde 2013 a Unesp vem desenvolvendo suas próprias iniciativas de ciência aberta. Naquele ano a universidade desenvolveu e implantou o Repositório Institucional Unesp, facilitando o acesso às dissertações e teses defendidas na universidade, bem como a alguns artigos de autoria dos seus docentes. Em 2020, a universidade criou o Comitê Gestor de Acesso Aberto e o portal Acesso Aberto, no qual são disponibilizadas não apenas as produções intelectuais produzidas na Unesp, como também informações de transparência da universidade, cursos e conteúdos de ensino abertos, acesso ao Portal Docente e a outras iniciativas do gênero.
Em fevereiro de 2021, a Unesp instituiu a Política de Acesso Aberto à Produção Intelectual da Unesp, por meio da Resolução nº 8, tendo como principal ferramenta de promoção o Repositório Institucional Unesp. A iniciativa tem como objetivo central “garantir à sociedade o acesso gratuito, público e aberto, como bem público, à produção científica, acadêmica, artística e técnica produzida pela Unesp”.
Atualmente, por meio do Repositório é possível acessar Trabalhos de Conclusão de Cursos, Teses, Dissertações, Artigos, dados de pesquisa e demais produções intelectuais elaboradas por estudantes e pesquisadores. Rode e Vidotti apontam que o objetivo é, no futuro, concentrar toda a produção da Unesp no Repositório, salvo exceções como pesquisas que envolvem restrições éticas ou sigilos contratuais.
Além disso, a universidade conta também com disciplinas de graduação e pós-graduação que tratam de ciência e acesso abertos. Rode ressalta que essas disciplinas são fundamentais para disseminar a visão de Ciência Aberta, uma vez que permite que pesquisadores desde o início da carreira tenham contato com os ideais do movimento, fomentando assim uma nova cultura científica.
“A partir do momento em que nós passamos a ensinar esses valores para os nossos alunos, tanto de graduação, como de pós, eles começam a cobrar os seus orientadores. Assim, vamos disseminando a Ciência Aberta na comunidade”, diz Rode. Vidotti concorda. “A gente acredita que é na graduação que vamos pegar o pesquisador e mostrar para ele a importância de ter esse cuidado com os dados de pesquisa para que não sejam deixados na gaveta, e sim tornados públicos para que outros possam usar”.
Embora a Unesp já esteja engajada no processo de fomentar a Ciência Aberta, aderindo a novas parcerias e oportunidades que surgem nesse sentido, Vidotti e Rode ressaltam que este é um processo lento, que envolve uma mudança da cultura científica e requer atenção para as demandas específicas das diferentes áreas do conhecimento. “É importante darmos continuidade a esse desenvolvimento. Já temos uma resolução instituindo a Política de Acesso Aberto à Produção Intelectual da Unesp. Agora temos que incentivar e levar esses princípios para toda a comunidade unespiana”, diz Vidotti.
Imagem acima: montagem com o símbolo do movimento da Ciência Aberta sobreposto a uma foto de computador. Crédito: pixabay.