A questão da existência de obscenidade ou pornografia em obras literárias tem sido motivo para fortes desavenças nos tribunais de vários países. Os exemplos mais famosos são os de Flaubert, autor de Madame Bovary (1857); Baudelaire, As flores do mal (1857); Joyce, Ulisses (1922); D. H. Lawrence, O amante de Lady Chatterley (1928); Henry Miller, Trópico de câncer (1934) e Nabokov, Lolita (1955). O caso dessas seis obras são modelares para o estudo das reações dos tribunais franceses, americanos e britânicos em face da prestação jurisdicional solicitadas por esses escritores, a fim de obter a liberação de suas obras para o público. Cada peleja judicial teve suas peculiaridades próprias, e obtiveram êxito após grande repercussão na mídia. O julgamento de Ulisses, pela magnitude e estranheza causada pela obra, tornou-se o mais célebre caso de censura à literatura sob a acusação de obscenidade.
Mesmo antes de ser lançado em forma de livro em 1922, Ulisses já enfrentava resistência quando começou a ser publicado em Nova York, em forma de capítulos, na Little Review, periódico de feição vanguardista, no período 1918 a 1920. A edição de janeiro de 1921 foi confiscada depois que um funcionário do correio americano concluiu, ao ler o episódio “Os lestrigões” que “a criatura que escreve essas coisas deveria ser colocada sob uma jarra de vidro para exame”. Em setembro de 1920, um advogado de Nova York queixou-se ao promotor público que sua filha havia recebido uma cópia não solicitada da edição julho/agosto da Little Review. Essa edição continha a parte final do episódio “Nausicaa”, que apresenta a personagem principal, Leopold Bloom, se masturbando em uma praia enquanto olha para uma garota de 17 anos chamada Gerty McDowell. O resultado da denúncia do advogado foi o julgamento de fevereiro de 1921, quando, apesar de ouvirem depoimentos assegurando que “Nausicaa” não seria capaz de corromper a mente de uma jovem, os juízes consideraram as editoras da revista, Margaret Anderson e Jane Heap, culpadas por publicarem matéria indecente, multando-as em 50 dólares cada, e baniu a publicação do romance. Proibição que só será levantada em 1933.
Debate mobilizou intelectuais contra e a favor de proibição
O objetivo das editoras da revista era reunir os fragmentos em forma de livro, para permitir que professores, alunos, acadêmicos e leitores em geral pudessem constatar como se deu a evolução de uma das narrativas em prosa mais ousadas e influentes do século. A proibição do romance causou enorme repercussão nos Estados Unidos. A acusação movimentou a intelectualidade americana e europeia. Nomes conhecidos da crítica se colocaram a favor do banimento da publicação. Em número menor, mas mais representativos em termos literários, autores como Yeats, T.S. Eliot, D.H. Lawrence e Ezra Pound consideraram absurda a proibição imposta ao romance, que logo ficou tachado de indecente ou pornográfico. O próprio Joyce, com ironia, concordava com a má fama adquirida pela obra, dizendo que o último episódio – “Penélope” – era, de fato, o mais obsceno de todos deles.
Além das cenas que continham matizes sexuais e das que narravam atividades cotidianas, como defecar, menstruar, peidar, arrotar ou cutucar o nariz, e que assustaram os leitores da época, a exuberante e peculiar linguagem do texto surpreendia a crítica pelas inovações introduzidas e a utilização de maneira inovadora de narrar uma história através do chamado “fluxo de consciência” ou monólogo interior. Joyce se esmerava nesse esforço para produzir uma prosa que iria iniciar uma nova prática de contar histórias. Até os erros propositalmente cometidos por ele eram objeto da sua vigilância para publicação. Em recado enviado a Ezra Pound, por ocasião do envio do último episódio, ele enfatizava a permanência desses “erros”: “A ortografia e a construção mecânica usada por mim devem ser seguidas pelo tipógrafo, mesmo quando as palavras estiverem incorretas e a gramática com erros.” Joyce, trabalhando em condições precaríssimas, como alcoolismo, pobreza, dores de cabeças virulentas e cegueira recorrente, passou mais de 10 anos, produzindo, editando e remodelando os capítulos.
Uma sentença histórica
Em 25 de novembro de 1933, o caso foi parar nas mãos do juiz John Munro Woolsey (1877-1945), que já havia lido o romance e ficado intrigado com o seu conteúdo e o estilo inusitado do autor. O processo foi autuado sob o título jurídico singular: United States v. One Book Called “Ulysses”, no Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito Sul de Nova York, com a acusação criminal de obscenidade. A sentença foi prolatada poucos dias depois, em 6 de dezembro do mesmo ano. O veredicto final foi a liberação do livro, considerado não obsceno pelo magistrado. Desde então, essa decisão judicial tornou-se a mais célebre sobre a censura à literatura. Um dos três promotores públicos que funcionaram na acusação era Samuel Coleman (1894-1982), advogado altamente qualificado e de reputação ilibada, que alcançou depois o cargo de juiz. No início dos debates, ele argumentava que Ulisses era obsceno e impróprio para publicação e venda nos Estados Unidos. Mas no transcorrer do julgamento, ele dizia que não estava gostando do papel que vinha exercendo, e durante uma audiência assumiu que havia lido e gostado do livro. Após a sentença, reconheceu que a decisão de Woolsey era uma obra-prima e “completamente saudável”. Admitiu no dia seguinte que tinha sido ambivalente sobre a condução do caso, mas, ao final, foi contra um recurso da decisão, que se tornou coisa julgada.
O juiz Woolsey era dotado de formação intelectual sólida e respeitável. Frequentara duas famosas universidades americanas, Yale e Columbia. Polímata, possuía excelente cabedal de leituras para além de seus interesses profissionais. Sua memorável sentença foi aclamada pela imprensa e por vários proeminentes artistas e intelectuais. Nabokov, que também havia sido processado pelo conteúdo considerado obsceno do seu Lolita, chamou o trabalho de Woolsey de uma “monumental decision”, no prefácio que escreveu para o romance. O jornal The New York Herald Tribune declarou que o juiz era um “authentic artist and scholar”. A revista The New York comparou Ulisses como uma “gema literária”. O New York Times, na edição do dia seguinte à leitura da sentença, deu destaque à decisão do juiz, que havia considerado o livro “uma obra literária de mérito”. Poucas horas após a leitura do veredicto, a editora Random House começou a preparar uma nova edição, que foi lançada alguns dias depois.
A íntegra da sentença encontra-se publicada no “foreword” da edição do romance de 1961 lançada pela editora Random House. A Internet, hoje em dia, facilita o acesso através do site https://famous-trials.com/ulysses. Trata-se de documento histórico, marco canônico na jurisprudência mundial sobre o controvertido embate jurídico: pornografia ou obra de arte? A decisão judicial contém menos de duas mil palavras e ocupa apenas quatro páginas. Esse texto de admirável síntese foi didaticamente dividido por Woolsey em seis itens. O primeiro trata das observações iniciais, como a apresentação da causa e afirmação de que as partes haviam renunciado ao direito ao julgamento pelo Tribunal do Júri. O juiz se congratulou com tal acerto dizendo que para o caso de confisco de livros com tal extensão é especialmente vantajoso, e a dificuldade de lê-lo durante um julgamento do júri seria quase impossível de se lidar. De fato, o longo romance possui cerca de 800 páginas!
No item dois, ele afirma que leu o romance em sua integralidade e se deteve várias vezes nas passagens apontadas pela acusação como obscenas. A leitura tomou-lhe várias semanas de trabalho. Constatou que Ulisses “não era um livro fácil de ler ou entender”, mas que muito se escrevera a seu respeito, e decidiu ele mesmo fazer a leitura. E concluiu que a leitura do romance é “uma tarefa penosa” (“a heavy task”).
Na terceira parte da sentença, ao entrar na análise propriamente dita da obra, Woolsey inicia sua argumentação dizendo que a fama do livro no mundo literário fez com que ele demorasse até sentir que havia compreendido qual a intenção que motivara a escrita. Se a intenção do autor fosse produzir uma obra pornográfica, ou seja, se ele houvesse escrito com o propósito de explorar a obscenidade, a conclusão seria de que o livro é pornográfico e assim estaria dirimida a questão em julgamento. Mas, apesar da franqueza incomum do autor, não vislumbra o juiz nenhuma intenção sensualista no livro, portanto, considera que não se tratava de uma obra pornográfica.
Na parte quatro, Woolsey destaca a experimentação literária feita por Joyce, ao trabalhar com pessoas da classe média baixa da cidade de Dublin no ano de 1904. E ressaltou também o sucesso surpreendente da utilização de uma nova técnica narrativa, o fluxo de consciência. Para atingir seus objetivos, continua o juiz, o autor faz uso, sincero e honestamente, de palavrões (“dirty words”), o que leva muitos a apontarem uma preocupação pungente com o sexo nos pensamentos de suas personagens. Woolsey relativiza o uso dessa linguagem ao ressaltar que é usada por quase todos os homens, e supõe que também por muitas mulheres. O livro é sincero e honesto, pondera o juiz, e as críticas a ele são destituídas de lógica.
Woolsey reafirma não ser fácil ler o livro e o classifica por oposições: é brilhante e maçante, inteligível e obscuro.
Continuando sua análise na parte cinco, Woolsey reafirma não ser fácil ler o livro e o classifica por oposições: é brilhante e maçante, inteligível e obscuro. Reconhece que há muitos palavrões, mas ressalta que, apesar desses palavrões, não havia encontrado nada que pudesse ser apontado como uso do palavrão apenas por ser palavrão (“dirt for dirt´s sake”); cada palavra do livro contribui um pouco do mosaico que Joyce está procurando construir para seus leitores.
Na última parte da sentença, a mais extensa, o juiz entra no mérito quanto à possibilidade de o romance ser considerado obsceno ou não. Ele pontua que a obscenidade, segundo a definição utilizada pelos tribunais, é aquilo que tende a despertar os impulsos sexuais ou levar a pensamentos sexualmente impuros e lascivos. Para verificar se um livro excita tais impulsos e pensamentos, a opinião da Corte deve averiguar seus efeitos sobre as pessoas comuns, que os franceses chamariam de “l’homme moyen sensual”. Ao relatar esta análise, Woolsey disse ter pedido a opinião de amigos e assessores que haviam lido o livro. E ficou satisfeito a constatar comungavam da opinião dele, mesmo sem saber qual ela era previamente. Depois de mais reflexões, o magistrado decidiu que o efeito de Ulisses sobre o leitor era um pouco emético, mas de nenhum modo tende a ser afrodisíaco. Assim, finaliza a sentença afirmando que o romance pode ser admitido nos Estados Unidos.
Com essa decisão histórica de liberar uma obra arte para fruição estética do público ledor, o julgamento de Woolsey continua sendo um feito impressionante até nos dias de hoje. sobre uma matéria que ainda hoje gera polêmicas. Seu grande mérito, além de liberar Ulisses, foi o de abrir um notório precedente para os julgamentos similares que vieram a ocorrer no mundo todo.
Gentil de Faria é graduado em direito, Doutor em Teoria Literária e professor aposentado do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp, câmpus de São José do Rio Preto, onde atua voluntariamente como docente colaborador.
Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.
Foto acima: primeira edição de Ulysses preservada na Biblioteca Estadual de New South Wales. Crédito: Geoffrey Barker, CC BY-SA 4.0.