Vestibular 2023 da Unesp vai oferecer prova traduzida em Libras

Iniciativa é parte de planejamento para fomentar inclusão na universidade. Para estudiosa de línguas de sinais, mudança pode ajudar estudantes surdos a superar gargalo crítico para trajetória acadêmica.

O vestibular 2023 da Universidade Estadual Paulista (Unesp) vai oferecer aos inscritos a  possibilidade de realizarem as provas empregando a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com esta inovação, a Unesp se tornará a primeira, dentre as universidades estaduais paulistas, a ofertar esta modalidade de vestibular. O período de inscrições para todos os candidatos vai de 5 de setembro a 10 de outubro, e as provas da primeira fase vão ocorrer no dia 15 de novembro. Todas as informações sobre as inscrições e a participação de candidatos surdos usuários de Libras constarão do Manual do Candidato, atualmente em fase de elaboração pela Fundação para o Vestibular da Unesp (Vunesp), responsável pelo planejamento e realização do exame.

Atualmente, a Vunesp já atende alguns grupos de candidatos com deficiência sensorial, como cegueira ou baixa visão, oferecendo, por exemplo, a possibilidade de acesso a provas em formato ampliado ou em braile. Segundo dados do censo de 2010, a comunidade surda no Brasil alcançava 9,7 milhões de pessoas, o equivalente a 5,1% da população. A possibilidade de uso de Libras já é oferecida, desde 2013, no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que é também um dos mecanismos para o ingresso na Unesp, tendo a universidade já recebido, em diversos cursos, alunos com deficiência auditiva. 

Para atender aos diversos estudantes com deficiência que ingressaram na Unesp — incluindo aí os alunos surdos —   a universidade tem buscado investir em infraestrutura. Entre 2021 e 2022, a Pró-Reitoria de Graduação lançou dois editais, no valor de R$ 7 milhões, para aquisição de equipamentos digitais e outros recursos de tecnologia assistiva, a serem alocados nas bibliotecas, salas de aula e laboratórios didáticos. “Além disso, a Pró-Reitoria de Graduação definiu como uma de suas metas no plano de Desenvolvimento Institucional a tradução do vestibular para Libras”, diz a Pró-Reitora de Graduação, Célia Maria Giacheti.

Giacheti lembra que a Unesp é signatária de compromissos tais como a Declaração de Salamanca e a Declaração Mundial de Educação para Todos, e que a busca pela escolarização ampla está também em sintonia com a Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), que é referência seguida pelas melhores universidades do mundo. “Esperamos que o alcance e o sucesso desse programa possam inspirar também outras universidades”,  diz a Pró-Reitora.

Prova em Libras já está prevista em lei

A professora Angélica Rodrigues, docente da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara, destaca o impacto, em termos de inclusão, que a adoção do vestibular em Libras pela Unesp pode proporcionar. Ela pesquisa os aspectos linguísticos das línguas de sinais e também é integrante da Comissão Permanente de Inclusão e Acessibilidade da Unesp, além de vice-presidenta da Comissão Local de Acessibilidade e Inclusão da sua unidade.

A docente diz que os surdos devem ser percebidos como uma minoria linguística — aliás, a lei 10.436, de 2002, reconheceu oficialmente a Libras como a língua das comunidades surdas brasileiras. E outra legislação,  o decreto 5.626 de 2005, assegurou aos surdos o direito de fazerem os exames para ingresso em instituições federais de ensino, de todos os níveis, em língua de sinais.

Na Unesp, isso já ocorre na esfera da pós-graduação, ainda que em pequena escala. No processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da FCL, por exemplo, os candidatos às vagas têm acesso a vídeos-provas e podem usar Libras para formular suas respostas, que são posteriormente traduzidas para o português.

Na escola, exclusão e evasão

No Brasil, em 95% dos casos as crianças surdas são filhas de pais ouvintes. Este é um dos fatores que contribuem para que sua exposição à língua de sinais só ocorra tardiamente, o que pode comprometer seu desenvolvimento social, inclusive no ambiente escolar. Muitas vezes a criança chega à escola para ser alfabetizada sem conhecer sequer Libras. Nesse caso, mesmo que a instituição disponha de um intérprete, o profissional sozinho não pode prover o suporte necessário. Sem compartilhar uma língua com os demais estudantes e professores, a criança surda não se sente verdadeiramente incluída, o que prejudica a socialização e os processos de aprendizagem. “A instituição de ensino, quando não oferece um ambiente realmente inclusivo através do uso da língua de sinais, acaba excluindo o aluno surdo, o que leva à evasão escolar”, diz Rodrigues.

Desde 2002 , políticas públicas e políticas linguísticas, assentadas na lei 10.466 e no decreto 5.626, têm favorecido a construção de ambientes escolares e acadêmicos mais inclusivos. Por isso, tem sido cada vez mais comum que estudantes surdos consigam completar o segundo grau, graças à crescente oferta de intérpretes e material didático adaptado em libras. “Mesmo assim, muito alunos não conseguem concluir o ensino médio”, explica Rodrigues.

Na hora do vestibular, muitas vezes o estudante surdo é obrigado a se defrontar apenas com material em português escrito. Isso representa uma barreira, pois seu domínio da leitura e da língua portuguesa, por conta de todos os obstáculos que experimenta em sua vida escolar, e continua experimentando em seu cotidiano, é diferente do que observamos nos alunos ouvintes. Isso faz com que a etapa de entrada na universidade funcione como um gap no acesso à educação, que muitos não superam. “É como se, na hora de fazer o vestibular, as instituições de ensino superior exigissem um desempenho igual de todos os candidatos, sem levar em conta o aspecto da acessibilidade”, diz a docente. 

“O investimento em políticas que visem a garantir a acessibilidade de pessoas com deficiência à universidade revela a iniciativa de se criar ambientes e promover ações sociais que não excluam certos tipos de corpos e mentes”, diz Rodrigues. “A deficiência em si não é o que inviabiliza o acesso das pessoas com deficiência à universidade, mas sim as barreiras arquitetônicas e sociais que lhes são impostas pela sociedade.”

Foto acima: Eliete Soares.