Antes que a vacinação contra a covid-19 tivesse se iniciado no estado de São Paulo, os dados coletados pelas autoridades de saúde chegaram a registrar uma diferença de até 15 vezes nas taxas de mortalidade observadas nos diferentes municípios. A constatação chamou a atenção de um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Unesp (FMB), no câmpus de Botucatu, que se propuseram a investigar se fatores socioeconômicos, demográficos, geográficos e de infraestrutura de atendimento em saúde pública podiam desempenhar algum papel que ajudasse a explicar tamanha amplitude de variação. Os resultados da pesquisa foram publicados recentemente em artigo na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
A pesquisa se enquadra no campo dos chamados estudos ecológicos. Se, logo após a emergência da pandemia, a ciência buscou estudar principalmente a interação entre a Covid-19 e o organismo humano, enfatizando o foco no indivíduo, os estudos ecológicos têm entre suas características o uso de dados relativos a populações inteiras. Essa abordagem costuma ser empregada para avaliar, por exemplo, políticas de saúde pública.
O estudo considerou apenas municípios com mais de 30 mil habitantes, segundo os dados do IBGE, uma vez que estes dispõem de uma estrutura hospitalar mínima capaz de fornecer dados confiáveis. Embora este universo tenha contemplado 203 cidades, ou seja, apenas 33,5% dos municípios do estado, elas abrigam no total mais de 90% da população paulista.
Como a dinâmica da pandemia foi diferente entre uma cidade e outra, os pesquisadores optaram por começar a registrar a taxa de mortalidade, para fins de estudo, apenas depois que o número de casos positivos de Covid-19 alcançasse 2,5% da população total do município, de acordo com dados fornecidos pela Fundação Seade.
O trabalho avaliou dados relativos ao índice Gini, usado para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo, bem como a renda per capita, a expectativa de vida e educação de cada cidade medidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Também foram incluídas informações demográficas, como porcentagem da população urbana ou a densidade demográfica dos municípios. Aspectos da geografia das cidades, como altitude, latitude, temperatura média e distância da capital também foram considerados. Por fim, também foram incluídos dados sobre a infraestrutura de saúde pública, como número de hospitais e leitos de cada localidade.
As análises desenvolvidas ao longo do estudo mostraram que índices mais elevados de densidade demográfica e de desigualdade social foram determinantes para que um município apresentasse uma maior taxa de mortalidade. Por outro lado, a longevidade da população e uma renda per capita mais alta foram fatores associados a uma menor mortalidade. De modo geral, o artigo sustenta que um terço da variação na taxa de mortalidade dos municípios guarda relação com variáveis socioeconômicas. A pesquisa observou apenas o início da pandemia em cada município, eliminando, portanto, a influência da vacinação no resultado do trabalho.
Os resultados levantados pelo estudo reforçam a ideia de que a Covid-19, como a maior parte das doenças infecciosas, está intimamente ligada à desigualdade. “O artigo mostra que um terço da variação de mortalidade dos municípios paulistas pode ser imputado a elementos ligados a determinantes sociais. Isso mostra que por trás da saúde da população existe uma série de decisões políticas anteriores, que refletem diretamente na forma como a cidade respondeu à pandemia”, afirma Hélio Miot, professor do Departamento de Infectologia, Dermatologia, Diagnóstico por Imagem e Radioterapia da FMB e um dos autores do artigo ao lado do professor Carlos Magno Fortaleza, também da FMB.
Associação entre longevidade e menor mortalidade chamou atenção
Miot explica que a estratégia de esperar que a contaminação na cidade alcançasse determinado patamar antes de iniciar o registro da taxa de mortalidade revelou ainda outras diferenças. “O período para se alcançar 2,5% da população total variou bastante de município para município, indo de 131 dias até quase 600 dias a partir do registro do primeiro caso”, diz.
Chamou a atenção dos pesquisadores o fato de que os resultados associaram a alta expectativa de vida do município a uma baixa taxa de mortalidade por Covid-19. Para uma doença que atinge com mais severidade a população idosa, chega a ser contraintuitivo que um município com maior expectativa de vida registre menor letalidade. “Essa maior longevidade reflete um investimento em saúde pública e em condições de vida que permitem ao morador do município envelhecer com saude”, destaca o pesquisador da Faculdade de Medicina de Botucatu. ”Eu entendo a longevidade como um fator não biológico, mas sim social.”
A influência de políticas públicas, ou da falta delas, pode ser observada também na densidade demográfica, uma variável que, de acordo com o estudo, foi associada a uma maior taxa de mortalidade entre os municípios. Isso porque, segundo os pesquisadores, áreas mais populosas em geral implicam maior número de interações sociais, necessidade do uso de transporte de massa, verticalização de moradias e comunidades marginalizadas, todos cenários propícios para a transmissão de doenças respiratórias.
Em muitos casos, lembra Miot, essa alta densidade demográfica costuma estar relacionada ao crescimento desordenado das cidades, um fenômeno que na maioria das vezes reflete falhas em políticas públicas voltadas para habitação ou para o desenvolvimento urbano. “Isso vale não só para a Covid-19, mas para outras doenças transmissíveis como influenza ou tuberculose. Em qualquer contexto em que se agrupem muitas pessoas, facilita-se a transmissão de doenças, aumentando a probabilidade de morte”, explica o médico dermatologista. Da mesma forma, o isolamento dos grupos mais vulneráveis é mais difícil nestas circunstâncias, o que também colabora para a maior mortalidade desses grupos.
Para ele, embora o artigo traga informações importantes, ele tem pouco a colaborar no combate à pandemia do ponto de vista médico, uma vez que os elementos sociais que influenciam as taxas de mortalidade, dos quais a questão médica representa apenas uma parte, dependem de políticas públicas. “Claro que leitos hospitalares, campanhas de vacinação ou número de atendimentos hospitalares são importantes. Mas o que as últimas notícias têm mostrado é que muitas tragédias acontecem também por causa de políticas públicas ruins que foram adotadas em outras áreas”, afirma o docente da Faculdade de Medicina. “O estado falha em implantar certas políticas públicas que melhorem a condição de vida da população porque, às vezes, isso inclui investir em obras que não chamam tanto a atenção dos eleitores.”
Imagem acima: médicos em UTI atendendo paciente com covid-19. Crédito: Caius Lucilius – Assessoria de Imprensa do HC-Unicamp.