“Eu vejo a pipa como uma liberdade”, filosofa Hamilton Souza Silva, 51, artesão e proprietário da loja Miltão Pipas. “A partir do momento que você está soltando a pipa, você não consegue enxergar os problemas. Você só enxerga aquela brincadeira de momento.”
Morador do Grajaú, distrito da zona sul de São Paulo, ele remete à pipa as melhores memórias afetivas da infância. Ao lado do irmão mais velho, ele produzia os próprios “papagaios” desde pequeno e soltava em terrenos baldios do Jardim Eliana e Parque Residencial Cocaia.
“Ele fazia a pipa e eu a rabiola, ou vice e versa. Fazíamos todas as armações de noite e depois era só encapar tudo”, lembra. “Nunca gostamos de comprar a pipa pronta, porque não vinha do jeito que a gente queria, então nada melhor do que a gente mesmo fazer.”
O que começou como uma brincadeira no telhado de casa, logo tomou uma proporção maior. Com o passar do tempo, os vizinhos começaram a reparar nos modelos produzidos por Hamilton e vieram pedir exemplares.
Em uma ocasião, ele vendeu 20 pipas por R$ 0,50, terminou o dia com R$ 10 no bolso e logo pensou: “Isso aqui gira”. A loja foi inaugurada em 2013 em um espaço pequeno, de 5 x 5 metros na garagem de casa, lugar esse que dividia com a esposa Claudineia Martins dos Santos Silva, 49, que tinha um comércio de roupas na época.
Com o crescimento das vendas, o espaço para que Hamilton trabalhasse dentro de casa aumentou gradualmente: primeiro foi a garagem inteira, depois o quintal dos fundos e agora se expandiu para a casa de cima.
Lá são produzidas oito tipos de pipas de diferentes tamanhos e formatos que vão desde a pequena, chamada popularmente de caçulinha, até a pipa gigante. Os diâmetros variam entre 45 centímetros e 1 metro.
A mais procurada pelos clientes recorrentes, que são crianças na faixa dos 10 a 12 anos, é a pequena que possui 45 cm de diâmetro com travessas de 33 cm x 30 cm.
O pico de vendas ocorre durante os meses de férias, em julho, dezembro e janeiro. “De julho a agosto, eu fico na parte de vendas só atendendo a molecada e depois dou uma parada só para me preparar de novo para a temporada de dezembro, que é a maior”, diz.
O artesão ao lado de três funcionários produzem 500 armações por dia. Cotidianamente, são vendidos 20 pacotes, que contém 25 pipas finalizadas.
Até que a pipa colorida chegue a mão do cliente, ela passa por quatro processos: a montagem das varetas (chamada pelos pipeiros de “cruzeta”), a passada de linha na armação com a ajuda do gabarito, a “chapagem” da armação na seda e a colagem para a finalização.
Maicon Andrade da Costa, 20, trabalha com Hamilton há dois anos nessa produção. Para ele, não há nada mais recompensador do que ver o sorriso no rosto das crianças ao soltar a pipa.
Nestes anos de trabalho, o momento que mais o emocionou foi quando a equipe confeccionou pipas para o desfile Fluxo Milenar, da marca Mile Lab, no São Paulo Fashion Week em 2021. Por conta daquele momento, tanto Hamilton quanto os funcionários, começaram a se enxergar como artesãos.
O que poucas pessoas dão valor, em outros lugares tem um valor imenso. Uma pipa não é simplesmente uma pipa. Caramba, é uma arte”
Maicon Andrade da Costa, 20 anos
Apesar do reconhecimento ao trabalho, ainda há muitos preconceitos que precisam ser quebrados em relação ao brinquedo, já que ele continua sendo associado à marginalidade por muitos pais.
“A pipa é uma brincadeira que não faz mal algum. Claro que a criança também precisa ser incentivada a estudar, mas se os pais tivessem a noção do quão boa a pipa é para uma criança, jamais iriam impedir isso”, declara.
O artesão alerta que um dos perigos que deixam os responsáveis aflitos é o uso da linha chilena. As linhas, fabricadas com óxido de alumínio ou óxido de carbeto, são mais duras para facilitar o “relo”, competição de cortar pipas entre os jovens.
“O gostoso da pipa é o ‘relo’, porque você conta quantas cortou por dia, mas eu sou contra a linha chilena”, enfatiza. “Um dia tomei três ‘relos’ seguidos, eu falei ‘que cerol é esse que esse moleque tá usando?’. Depois que consegui cortar, peguei na linha e vi o quanto é rígida”, questiona.
A disputa perigosa pode causar graves acidentes. Por conta disso, o uso de materiais cortantes nas linhas de pipas, a conhecida mistura entre cola e vidro, passou a ser proibida em São Paulo. O Projeto de Lei 765/2016 proíbe o uso, posse, fabricação e a comercialização da mistura.
Caso a lei seja descumprida, a pessoa responsabilizada deverá pagar uma multa equivalente a 50 Ufesps, que na cotação atual é aproximadamente R$ 1.326,50. No caso em que um estabelecimento descumprir a lei, a multa pode chegar a R$ 132 mil.
Apesar disso, Hamilton não enxerga na prática como esse problema pode ser controlado. “Estou sempre explicando para a molecada sobre os problemas com a linha chilena. Já perdi muito por causa disso, mas vou continuar com a minha filosofia.”
Ele atribui o sucesso das vendas ao fato de sempre produzir o produto ao gosto da molecada. Uma situação curiosa que o chamou a atenção foi durante a pandemia de Covid-19, pois foi neste momento em que as vendas explodiram ao ponto de faltar material nas próprias fábricas e distribuidoras.
Por isso, os pipeiros paulistas se uniram para compartilhar materiais e as trocas chegaram a ocorrer até com gente de fora do estado.
O pensamento é de que na pandemia ninguém iria soltar pipa e que as crianças ficariam dentro de casa, mas foi totalmente o contrário.
Hamilton Souza
Para o artesão, o mais especial das pipas é que ele consegue conversar com as crianças de igual para igual. Já com os adultos, o brinquedo os recorda da infância que foi esquecida.
“Clientes que compravam comigo quando eram crianças, agora levam os filhos para ver a loja. A meninada chega lá e fica abismada. Isso é muito da hora.”
Imagens: Isabela Alves/ Agência Mural
Reportagem publicada originalmente pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias e reproduzida por meio de parceria de conteúdo com o Jornal da Unesp.