As criptomoedas e os gnomos da prosperidade

Propagandeadas pelas celebridades como via de enriquecimento rápido, elas têm sido cada vez mais associadas a temas controversos, como fraudes fiscais, lavagem de dinheiro, transações especulativas e até esquemas de pirâmide. As moedas digitais fracassaram em sua proposta original; chegou a hora de reinventar o modo como as utilizamos.

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No ano passado, a explosão de interesse pelo tema das criptomoedas no Brasil fez com que o assunto passasse das editorias de economia digital e de finanças para as seções de comportamento e até mesmo para o noticiário policial. Nos últimos anos, celebridades e formadores de opinião de todas as esferas e países, de Elon Musk a Kim Kardashian, passando por Messi, Ronaldinho Gaúcho e Mike Tyson, têm vindo a público para recomendar, fazer propaganda ou agirem como embaixadores de corretoras e de produtos que competem pelo dinheiro dos investidores digitais (dos quais o mais famoso é o Bitcoin). Esse elenco estelar promete ao cidadão comum que aportar suas economias nesta ou naquela criptomoeda abrirá uma via rápida e segura para mudar sua vida financeira de patamar. A máquina de propaganda acena com ganhos especulativos estratosféricos, com potencial para chegar a até 50.000%. Sim, isso mesmo: cinquenta mil por cento.  

Mas o Bitcoin, o Ethereum e as demais criptomoedas não foram criados para servirem de “cassino” especulativo, onde uns poucos conseguem enriquecer às expensas dos sonhos e das economias duramente acumuladas de muitos. Na verdade, o panorama atual mostra que, mais do que nunca, é preciso virar o jogo e encontrar meios para regular  as criptomoedas.

Do escambo ao dinheiro digital

O dinheiro tem sido central para as relações humanas há séculos, como mostra a evolução das moedas pelo mundo. A forma mais remota de intercâmbio econômico empregada pela humanidade consistia em um sistema rudimentar de trocas diretas de bens — o escambo. Dadas as dificuldades para que houvesse a coincidência de interesses necessária para que o escambo funcionasse, é fácil imaginar como o aparecimento do dinheiro representou um ganho civilizacional. O surgimento de uma terceira mercadoria — o dinheiro — que permitia que as trocas fossem efetuadas logo exigiu que se determinasse um lastro, isto é, um elemento que assegurasse o valor, e a possibilidade de conversão.

Com a ampliação das relações comerciais entre as pessoas e os povos, aumentaram os inconvenientes envolvidos no transporte de grandes quantidades de metais preciosos, bem como os riscos de roubo. Da necessidade de garantir a guarda segura das moedas ocorreu o surgimento das casas de custódia, instituições que forneciam recibos escritos das quantias que eram confiadas a elas. Logo, esses recibos tornaram-se, eles também, meios de pagamento, dando origem às primeiras cédulas de moeda-papel.

A generalização desse instrumento possibilitou que os proprietários das casas de custódia observassem que não havia a necessidade de abrigar metais preciosos em quantidade 100% equivalente às cédulas de moeda-papel que eram colocadas em circulação. Essa constatação possibilitou a criação do papel-moeda, também chamado de moeda fiduciária. Tal disparidade, no entanto, resultou numa menor certeza de que seria possível trocar o papel-moeda em mãos pelo metal precioso – ouro ou prata – no qual ele estava lastreado. Sem a garantia de que havia realmente uma quantidade de ouro ou prata depositada em algum lugar que pudesse, a qualquer momento, ser “convertida” na moeda-papel que se tinha em mãos, o lastro do sistema passou a ser a confiança entre os envolvidos.

A crise deste sistema privado fez com que os Estados nacionais, através da criação dos bancos centrais, passassem a monopolizar as emissões de papel-moeda, de forma a restabelecer a credibilidade da moeda e a confiança da população no seu uso. A moeda torna-se, então, um ato de fé. Não é por outra razão que o governo dos Estados Unidos decidiu em 1956 que nas cédulas de dólar constasse o lema “In God we trust” (em Deus confiamos).

Atualmente as moedas digitais têm alcançado elevada popularidade, especialmente em decorrência das promessas de elevadíssimos retornos obtidos por investidores amadores e de promessas de ganhos especulativos. Mas, o que significa este novo momento do dinheiro, agora virtual? O que esperar de um sistema em que não se exige qualquer autorização para que seja lançada uma nova moeda, e no qual não há uma autoridade responsável por certificar que o novo produto não seja um mero esquema de pirâmide?

O que significa este novo momento do dinheiro, agora virtual? O que esperar de um sistema em que não se exige qualquer autorização para que seja lançada uma nova moeda?

Um criador desconhecido

A emergência de um mercado descentralizado de moedas digitais se tornou possível em virtude dos extraordinários avanços ocorridos com a tecnologia de criptografia e com o desenvolvimento da chamada tecnologia de registros contábeis distribuídos (a tecnologia conhecida como blockchain e o Distributed Ledger Technology – DLT). A transformação causada por essas inovações no mercado financeiro possibilitou que se estruturasse um mercado próprio de moedas digitais, com destaque para três categorias: as criptomoedas — em particular o Bitcoin (BTC), a que já nos referimos – e também as stablecoins e as moedas digitais emitidas pelo Banco Central (CBDC), que não serão discutidas.

É necessário advertir que criptomoedas não devem ser confundidas com moeda eletrônica. Esta última é uma representação digital da moeda fiduciária que é legalmente adotada em um país, emitida pela autoridade monetária. Por outro lado, as criptomoedas não são denominadas na moeda fiduciária oficial do país, nem tampouco os registros das transações são centralizados em qualquer instituição financeira.

É possível rastrear o processo de nascimento das moedas digitais. Em 31 de outubro de 2008 foi publicado, numa lista de discussão sobre criptografia, um artigo assinado por um programador de pseudônimo Satoshi Nakamoto, cuja verdadeira identidade ainda é desconhecida. O texto descrevia um novo sistema de dinheiro eletrônico ponto-a-ponto (peer-to-peer), sem a existência de um terceiro de confiança. Em janeiro de 2009, Nakamoto dá um passo crucial para o nascimento deste novo mundo, ao disponibilizar um software de criação do Bitcoin. Teve início ali o mercado de criptomoedas descentralizadas.

As criptomoedas são definidas como moedas digitais privadas, que se utilizam de redes descentralizadas de registros contábeis (DLTs ou blockchains), com o objetivo de permitir que pessoas sejam capazes de realizar transações seguras usando uma moeda totalmente descentralizada. A confiança num sistema que não possui a regulação ou controle pelo Banco Central ou por qualquer instituição financeira tradicional, nem tampouco mecanismo de proteção ao cliente, decorre das ações de verificabilidade e validação feitas por um grupo de usuários denominados de “mineradores”, que garantem a segurança da corrente de registros em blocos de todas as transações e sua ordem de realização, o que permite identificar aqueles que possuem o Bitcoin, porém mantendo as transações protegidas por criptografia.

Um tipo diferente de investidor

O crescimento explosivo da capitalização das criptomoedas  impulsiona o frenesi dos mercadores de esperanças de ganhos especulativos e de grandes fortunas. Os devaneios dos “criptomaníacos” não têm limites, e as oportunidades para os oportunistas também não.

É imensa a lista de projetos excêntricos. Podemos citar como exemplos a proposta de fundação da “Bitcoin City”, em El Salvador; e a criação da “Criptoland” mundial para abrigar 21.000 investidores de criptoativos numa ilha no Pacífico Sul, que faz parte do arquipélago de Vanuatu (a ilha até já alterou o nome para ilha de Satoshi).

Todavia, em momentos de reversão de expectativas, como a atual escalada de tensões na cotação das criptomoedas, ocorrem impactos reais sobre a economia, sobretudo com aqueles investidores que precisam se desfazer de seu patrimônio em criptomoedas.

Conforme apontou o Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, com base numa pesquisa da NORC na Universidade de Chicago feita no primeiro semestre de 2021, o crescimento exponencial dos investidores em criptomoedas tem revelado um perfil diferenciado quando comparado ao mercado de ações, no qual ocorre uma participação proporcionalmente maior de brancos ricos com estudos universitários. No caso dos investidores em criptomoedas, o perfil observado é de um investidor médio, com menos de 40 anos, dos quais 44% são não brancos, 41% são mulheres e 55% não possuem diploma universitário. E a maioria (61%) começou a investir em criptomoedas nos últimos seis meses.

A conclusão da pesquisa pela NORC na Universidade de Chicago, no entanto, nos parece equivocada ao apontar que o mercado de criptomoedas estaria ampliando as oportunidades, ou seja, a socialização do mercado para os mais vulneráveis. Na verdade, trata-se de jovens sem grandes perspectivas que alimentam a ilusão de fazer fortunas rapidamente, estimulados por propagandas de ganhos exorbitantes com tokens não fungível (NFTs) adquiridos por Neymar e Justin Bieber, ou com investimentos em Bitcoin por astros americanos, como o jogador Odell Beckhan Jr.

Variações extremas

O caso do jogador Odell Beckhan Jr., campeão da NFL (liga de futebol americano), é interessante. Ele optou, assim como vários outros jogadores, por receber seu salário-base anual de US$ 750 mil em BTCs. Quando Beckhan assinou o contrato, a cotação estava em aproximadamente US$ 64 mil por BTC. Porém, após a violenta queda na cotação do Bitcoin ocorrida no mês de janeiro, se astro americano fosse resgatar seu salário o resultado seria que, após os descontos relativos ao imposto de renda federal e ao imposto de renda estadual na Califórnia de 12,3% (que é a alíquota que se enquadra seu salário-base), ele teria nas mãos apenas US$ 35 mil.

Evidentemente, isto não é problema para um jogador que, antes de ser campeão do último Super Bowl, tinha uma remuneração total, incluindo bônus de assinatura e incentivos, que atingia US$ 4,25 milhões. Agora, imagine-se, por exemplo, qual seria o efeito de uma variação assim sobre o salário de um indivíduo aposentado? Ou sobre a poupança de uma família?

Essa situação poderá se tornar frequente em El Salvador. Em setembro de 2021 o país se tornou o primeiro a adotar o BTC como moeda corrente de curso legal ao lado do dólar americano. A imposição do Bitcoin como moeda oficial é apontada como uma grande experiência para implementação das ideias de Nakamoto. O governo do país estimulou a população a aderir ao BTC concedendo aos cidadãos um incentivo em BTC equivalente a US$ 30  para baixar a carteira.

Em novembro de 2021 a capitalização do mercado de criptomoedas atingiu a marca de US$ 3 trilhões, tendo ocorrido uma alta histórica em 10 de novembro, quando o Bitcoin superou US$ 69 mil por unidade BTC. Desde então, as perdas das criptomoedas têm sido significativas. Na noite do dia 20 de fevereiro de 2022 a cotação de um BTC havia despencado para apenas US$ 38.511.

Diante de todos esses problemas, por que tanto burburinho em torno das criptomoedas? Daron Acemoglu, um dos mais renomados economistas da atualidade, aponta cinco razões que conspiram para tornar o Bitcoin uma proposta atraente: a) sua narrativa política; b) as atividades criminosas que ele permite; c) a senhoriagem  ( poder de compra adicional resultante do controle da oferta de dinheiro) que ele distribui; d) o otimismo tecnológico da era atual; e) o desejo de enriquecer depressa num momento em que há poucas outras oportunidades econômicas.

Ineficientes e pouco sustentáveis

As mudanças promovidas pelas novas tecnologias de apoio às criptomoedas garantiram a manutenção da confidencialidade, da identidade e da integridade dos dados. Entretanto, as moedas digitais descentralizadas falharam no seu objetivo principal de substituir as moedas “tradicionais”, uma vez que não conseguiram incorporar as funções clássicas da moeda (meio de troca, unidade de conta e reserva de valor) devido à forte instabilidade de suas cotações, que é uma exigência fundamental para seu pleno reconhecimento e credibilidade.

Com efeito, as criptomoedas e, em particular, o Bitcoin, se tornaram essencialmente ativos financeiros altamente especulativos, com altíssima volatilidade, sem valor intrínseco, sem lastro tangível e amplamente utilizado para atividades ilícitas. De acordo com estudo publicado por Foley & Karlsen & Putnins (2019), em abril de 2017 cerca de 26% dos usuários, 46% das transações e 49% das posses de Bitcoin ao longo do tempo estavam associados a atividades ilegais.

Na prática, o Bitcoin, ainda não se converteu numa moeda; fracassou no seu objetivo original como meio de pagamento, é economicamente ineficiente (sistema lento, caro, longo período de liquidação, altas taxas — entre US$ 2,5 e US$ 4 por transação), elevado impacto ambiental e baixa sustentabilidade, em virtude do enorme consumo de energia elétrica no processo de “mineração” — estima-se que o Bitcoin consome tanta eletricidade quanto toda a Holanda — e se tornou um grande instrumento para atividades ilegais e criminosas no mercado negro.

A panaceia das moedas digitais descentralizadas está sendo desmontada e precisará enfrentar suas fraquezas para se reinventar. É urgente a necessidade de regulamentação do mercado de criptomoedas. O Bitcoin e outros criptoativos geraram um mundo para os amantes do risco, sob a perspectiva de um paraíso libertário, onde o dinheiro privado é livre de amarras regulatórias estatais, e fortunas brotam de delírios febris, entrelaçados por transações especulativas, corrupção, esquemas de pirâmides, lavagem de dinheiro, pulverização de riquezas, evasão e fraudes fiscais. Os Gnomos da Prosperidade nunca revelam a outra face da moeda.