Após sete anos de trabalhos, Laboratório de Conservação do IA doa acervo musical histórico recuperado a Centro de Memória

Seção de música sacra de arquivo que pertenceu a maestro possui documentos musicográficos datados desde 1793. Material era dado como perdido desde os anos 1970

Mas não é mais fácil o senhor queimar tudo?

O musicólogo e professor do Instituto de Artes da Unesp Paulo Castagna lembra bem de quando ouviu essa pergunta, sete anos atrás. Ele havia finalmente solucionado um problema de pesquisa a que se dedicava desde os anos 1990: desvendar o paradeiro do acervo do maestro João Antônio Romão (1880 – 1972), uma importante figura da cultura da região do Vale do Paraíba, que estava desaparecido há cerca de 40 anos.

 Em 2014, Castagna, que dirige o Laboratório de Conservação, Arquivologia e Edição Musical do IA, finalmente encontrou o fio da meada. Após ter sido removido de sua localização anterior, o Museu Histórico de Pindamonhangaba, para que este pudesse passar por uma reforma, o acervo fora guardado pelos herdeiros do músico, que, no entanto, nunca avisaram formalmente a ninguém que ainda tinham posse do material. Somente naquele ano é que a família entrou em contato com Castagna e o convidou a dar uma olhada.

Infelizmente, a família havia depositado o acervo – uma coleção com quase mil partituras musicais, incluindo obras manuscritas que remontam ao século 18 — em um galpão aberto, onde esteve exposto a respingos de chuva e à consequente umidade. O estado de conservação do material era péssimo. “Não sei como esse material se preservou. É um mistério. No primeiro dia de contato com o arquivo, mesmo usando máscara e luva, passei mal duas vezes”, conta o docente do Departamento de Música da Unesp. Foi justamente durante esse primeiro dia que um membro da família encontrou Castagna vasculhando o arquivo, e lhe indagou se realmente valeria a pena fazer o esforço para tentar recuperar pelo menos parte do material.

Fotografia registra estado de parte do acervo em 2014, antes de ser submetido a tratamento

A resposta definitiva de Castagna foi dada em 7 de dezembro. Nesse dia, a parte considerada de maior valor histórico do acervo, a seção que abriga peças de música sacra, contendo quase 400 itens, foi entregue ao Centro de Memória Barão Homem de Mello de Pindamonhangaba. Mas, para que o material escapasse do perigo da fogueira e encontrasse a segurança das estantes de uma instituição cultural, foi preciso muito trabalho — e muita ciência também.

 Ainda durante a visita inicial, Castagna  negociou com a família de Romão a doação do material. A seguir, entrou em contato com o Centro de Memória Barão Homem de Mello para oferecer o acervo, de forma que, quando o tratamento dos documentos fosse concluído, eles ficassem eternizados na cidade natal do maestro. Com o sucesso nas tratativas, Castagna iniciou imediatamente a transferência do arquivo para São Paulo, onde teve início um longo e minucioso processo de preservação.

Acervo registra período de prosperidade do café no Vale do Paraíba

O processo foi liderado pelo professor do IA e contou com a participação de alunos de Pós-Graduação do Instituto. Decidiu-se que o trabalho se iniciaria pela seção de documentos sobre Música Sacra, por ser aquela dotada de maior interesse histórico. As etapas de tratamento dos documentos, que chegam às centenas, se desenvolveram ao longo de anos. Elas envolveram secagem, desinfecção por irradiação ionizante (em parceria com o Instituto de Pesquisas Nucleares da USP), desmetalização, planificação, higienização por varredura de superfície, organização (classificação e ordenação), codificação, acondicionamento em folhas de papel alcalino e em caixas de papel tríplex branco, inventariação e digitalização, esta feita em parceria com o Museu da Música de Mariana.

Pindamonhangaba é uma cidade histórica do Vale do Paraíba que cresceu muito no ciclo do café, ao longo do século 19. A riqueza de que desfrutava naquela época gerou uma efervescência artística local, multiplicando as ações arquitetônicas, musicais e plásticas. Posteriormente, no decorrer do século 20, as ferrovias foram desmontadas e, então, a cidade e a região passaram por um processo de isolamento e decadência, resultando na perda da maior parte do patrimônio construído nas décadas anteriores. “Neste contexto, sobrou essa ‘bolha arqueológica’  que acabou parando em nossas mãos”, comenta Paulo Castagna.

O arquivo, depois do processo de tratamento

Uma particularidade do material é que seu titular, João Antônio Romão, não foi um compositor de destaque na região do Vale do Paraíba. Ele escreveu apenas algumas obras simples para liturgia. Sua importância estave em reunir arquivos da região do Vale do Paraíba que circulavam em sua época, alguns com músicas muito antigas.

Entre as principais obras que Romão coletou estão os manuscritos de música sacra composta pelo maestro João Gomes de Araújo (1846 – 1943). Também natural de Pindamonhangaba, Araújo foi  imortal da Academia Brasileira de Música e cofundador do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, a primeira escola oficial de música do estado.

Das 60 canções compostas por Araújo, entre óperas, sinfonias e músicas sacras, diversas haviam sido dadas como perdidas ao longo do tempo. Agora, cerca de 40 obras foram recuperadas, sendo a maior parte autógrafos (isto é, cópias escritas pelo próprio compositor). Isto representou a restauração de quase a totalidade das músicas sacras compostas por Araújo, antes inacessíveis.

A série de música sacra do acervo do maestro João Antônio Romão possui 363 unidades de arquivamento, algumas dessas contendo coletâneas de documentos musicológicos. Esse total representa cerca de um terço do arquivo, que ultrapassa as mil unidades de arquivamento. Destas, algumas são obras isoladas, e outras, coletâneas de obras. A expectativa é que o tratamento do arquivo completo seja concluído e transferido ao Centro de Memória de Pingamonhangaba nos próximos três anos.

No Brasil, pouca preocupação com a conservação de documentos

No Brasil, é bastante comum que acervos pessoais e institucionais de valor histórico venham a se perder por falta de conservação adequada. É o que explica Telma Campanha, professora do Departamento de Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp, no câmpus de Marília. “No Brasil, existe pouca preocupação com a questão da conservação dos documentos. Não é algo que seja valorizado, embora existam instituições sérias que se dedicam a isso”, explica ela.

 Um exemplo desta pouca valorização é o fato de que, por exigência de legislação, todos os municípios do país devem possuir um arquivo, onde fique preservada e acessível a documentação oficial produzida pelas instituições municipais. Na prática, porém, diversas cidades estão longe de possuir um arquivo nestes moldes.

Aliás, a própria cidade de Marília foi palco de um evento nestes moldes. Em meados da década de 1990, uma professora da Unesp que já se aposentou encontrou uma grande quantidade de documentos descartados numa certa região da cidade. Ao examinar mais de perto, constatou que o material que estava sendo descartado pertencia ao arquivo da prefeitura e compreendia um longo período, entre as décadas de 1930 e 1970.

A professora mobilizou-se e conseguiu trazer o material para as instalações da Unesp. Ele passou a fazer parte do acervo do Centro de Documentação Histórica e Universitária de Marília, criado em 1999, e que está vinculado administrativamente ao Departamento de Ciência da Informação da FFC. Os alunos do curso de arquivologia da Unesp estão organizando esta documentação, para que ela possa ser consultada por pesquisadores e pela população.

Telma explica que, nos casos em que é preciso realizar procedimentos de conservação em material oriundo de algum arquivo, será fundamental conhecer suas funções originais. Um arquivo administrativo é diferente de outro hospitalar, ou de uma empresa. O trabalho de conservação varia com a destinação original do arquivo, cada um tem dinâmicas e funções diferentes a desempenhar para alcançar os objetivos que se propõe.

Em casos de arquivos pessoais, como o de João Antônio Romão, é necessário, também, um estudo aprofundado sobre a vida do proprietário do acervo: entender quais os interesses daquela pessoa e as atividades que desempenhou ao longo da vida, a fim de chegar o mais próximo possível da organização que o titular deu à documentação.

Para obter estas informações, Castagna começou a fazer visitas periódicas à cidade em 2014 e nos anos seguintes, para realizar entrevistas com familiares e conhecidos de João Antônio Romão e efetuar pesquisas em acervos locais , para tentar esclarecer algumas questões relacionadas a esse músico e a seu arquivo. “De maneira geral, os familiares e conhecidos relataram poucas memórias sobre a trajetória profissional de João Antônio Romão e sobre a acumulação de seu arquivo, mas revelaram importantes documentos e informações pessoais sobre o músico”, disse ele.

Material também será disponibilizado via internet para facilitar pesquisas

Além de já estar acessível no Centro de Memória Barão Homem de Mello, em Pindamonhangaba, a seção de Música Sacra do arquivo de João Antônio Romão será disponibilizada gratuitamente na internet, na plataforma “archive.org”, a partir de março de 2022. Os itens serão postados gradualmente, pois, apesar de já estarem fotografados e digitalizados, ainda precisam passar por um processo de ordenação e descrição.

“Vamos ficar contentes quando começarmos a ver gravações e interpretações dessas músicas circulando na internet, televisão, rádio, nas apresentações de música popular”, diz Castagna. “Essa que é a satisfação final: ver a integração à vida musical da atualidade, que é uma das grandes finalidades do trabalho, a finalidade patrimonial. E também vamos ficar satisfeitos quando virmos artigos e teses que incluam itens desse arquivo, ou que estudem o arquivo em si. Estamos ansiosamente aguardando esse desenvolvimento”, conclui.

Imagem acima: partitura original recuperada do acervo. Crédito: Paulo Castagna. Imagens ao longo do texto: Paulo Castagna