A partir do próximo ano, as escolas públicas e privadas do país deverão implementar, em sua estrutura curricular, as mudanças que configuram o chamado Novo Ensino Médio. Estabelecida através da lei 13.415/17, aprovada em 2017, a proposta tem entre seus objetivos tornar o ensino mais próximo da realidade dos alunos e mais atraente, e dar aos jovens a oportunidade para que possam escolher de forma autônoma sua própria formação.
Especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp entendem que é necessário envidar esforços para melhorar o ensino médio, mas divergem em relação à capacidade das escolas de implementar as reformas e apontam uma discordância entre a adoção do novo currículo e a formação de professores.
Autonomia das escolas e do aluno
A reforma curricular é a questão central do Novo Ensino Médio. Ao longo dos últimos anos, secretarias estaduais de educação e escolas têm discutido e adaptado seus currículos tendo como referência a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e considerando suas particularidades, desafios e objetivos.
De acordo com o documento, apenas Português e Matemática permanecem como disciplinas presentes nos três anos do ensino médio. O restante do currículo deixará de ser organizado na forma de disciplinas e passará a contemplar quatro áreas do conhecimento, numa estrutura em linha com o que já é proposto no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): Matemáticas e suas Tecnologias; Linguagens e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Além disso, foi reservada uma parcela da carga horária para a formação técnica e profissional do aluno, cujo conteúdo será definido pelas secretarias estaduais e escolas.
A proposta também aumenta a carga horária mínima total do ensino médio de 2.400 para 3.000 horas. Em 2022. o Novo Ensino Médio será implantado apenas para os alunos do primeiro ano. A ideia é que a implementação ocorra gradativamente ao longo do tempo até alcançar todos os três anos do ensino médio em 2024.
Uma das principais novidades da reforma talvez seja a implementação dos itinerários formativos. Trata-se de conjuntos de conteúdos e atividades que poderão ser escolhidos pelos alunos para que eles se aprofundem em uma das quatro áreas do conhecimento, ou optem por focar a formação técnica ou profissional. Esses conteúdos deverão ocupar pelo menos 1.200 horas da carga horária total do ensino médio. Caberá a cada rede de ensino definir a oferta dos itinerários formativos, e às escolas orientarem seus alunos sobre suas aspirações e preferências, dentro do que o novo modelo chama de “projeto de vida”.
Evasão e desinteresse na origem das mudanças
Segundo dados de 2020 do Pnad, o percentual de jovens de 15 anos (a idade média em que ocorre o ingresso no ensino médio) que abandonam a escola é quase o dobro do total de jovens de 14 anos que tomam a mesma decisão: 14,1% contra 8,1%. Especialista na análise de políticas educacionais, Iraíde Barreiro, professora do Departamento de Estudos Linguísticos, Literários e da Educação da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Assis, explica que há alguns anos o ensino médio registra as maiores taxas de evasão na educação básica, em especial no primeiro ano. A proposta da reforma surge para tentar mudar esse quadro.
Além da necessidade de exercer alguma forma de trabalho remunerado, outro fator apontado como justificativa para a desistência dos alunos é o desinteresse pelo aprendizado. Segundo a docente, que também é membro titular do Conselho Estadual de Educação (CEE-SP), este é um dos pontos que as mudanças no ensino médio buscam atacar, através da reforma curricular e da criação dos itinerários formativos.
“A juventude atual requer conhecimentos mais instigantes, dinâmicos e que contribuam para compreenderem a realidade e tragam sentido para suas vivências”.
Iraíde Barreiro
O professor do Instituto de Artes da Unesp no câmpus de São Paulo, João Palma, é mais cético em relação aos itinerários formativos. Na sua opinião, quem decidirá qual área poderá ser aprofundada não é o aluno, mas sim a escola, com base na infraestrutura que ela pode disponibilizar. “Já as escolas particulares de ponta vão continuar com foco no vestibular. Isso pode aumentar a desigualdade entre o sistema público e as escolas particulares”, avalia.
É preciso repensar a formação dos docentes
A proposta de um novo currículo interdisciplinar que convide o aluno a estabelecer relações entre disciplinas e que esteja conectado com a realidade coloca em questão também a formação dos próprios professores.
Para João Palma, muitos professores não se sentem confortáveis em colocar em prática esses conteúdos, posto que sua formação não contemplou a abordagem interdisciplinar. Outro ponto que chama a atenção do docente é que existem resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE) que exigem que os cursos de licenciatura se adequem à BNCC. Isso vai contra o princípio da autonomia universitária. “Acho que isso pode gerar resistência dentro da universidade porque ela também tem objetivos e finalidades próprias. Algumas universidades não educam somente para o magistério, mas formam também pesquisadores, por exemplo. Não sei bem como isso vai ser acertado”, diz o docente, que já foi secretário-adjunto da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.
Iraíde também pensa que esse aspecto é problemático. Ela pondera que os cursos de licenciatura precisarão mudar os paradigmas formativos oferecidos na formação inicial de professores, integrando a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade do conhecimento. “Os novos professores e os atuais precisarão ter um olhar para uma perspectiva mais colaborativa, alargada, que seja capaz de integrar diferentes disciplinas e, ao mesmo tempo, assegurar a especificidade de cada uma delas”, afirma a professora.
No processo de adaptação a essa nova realidade, é provável que os estágios obrigatórios que os alunos precisam cumprir nos cursos de licenciatura desempenhem um papel fundamental. “Penso que os estudantes irão levar para seus docentes orientadores de estágio as novas vivências nas escolas, o que pode impulsionar reflexões e mudanças”, avalia.
Deveríamos priorizar a reversão dos impactos da pandemia?
Desde 2018, as redes estaduais e municipais de educação, bem como as escolas particulares, têm trabalhado na reelaboração dos seus currículos com base no BNCC. O trabalho envolve ainda a revisão dos projetos político-pedagógicos, a adequação de materiais didáticos e a reformulação das políticas de avaliação, entre outros pontos. Esse já seria um grande desafio em situações “normais”, mas cabe lembrar que desde o início de 2020 vive-se um contexto de pandemia em que, durante boa parte do tempo, o ensino foi adaptado emergencialmente para a realidade do contexto remoto.
João Palma afirma que o cenário imposto pela Covid-19 prejudicou o aprendizado ao longo dos últimos dois anos, e que a prioridade neste momento deveria ser realizar um intenso processo de revisão dos conteúdos que não foram ensinados durante a pandemia. Além disso, afirma, o Novo Ensino Médio foca exclusivamente a reforma do currículo, mas não traz propostas ou ações para questões importantes, tais como a necessidade de reformar a estrutura das escolas para que se possa implantar as mudanças; a reformulação da formação e da carreira do professor nesse novo contexto; ou a situação do aluno que precisa estudar e trabalhar, e que fica prejudicado com o aumento da carga horária. “Neste momento, acredito que deveria ser colocado em prática um forte programa que dê condições para que o aluno possa seguir no ensino médio. Acredito que se for realizada uma avaliação honesta no fim do ano, teremos um alto índice de reprovação, além da taxa de evasão que já é grande e deve aumentar”, aponta.
Imagem acima: sala de aula de ensino médio em escola na cidade do Rio de Janeiro. Crédito: Uanderson Fernandes/Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro.