O dia 20 de novembro é marcado por inúmeras reflexões na sociedade brasileira. Sobretudo porque faz menção à maioria da população presente em nosso país, a negra, que foi mantida sob um dos mais profundos escravismos ao longo de quase 400 anos, e posteriormente cerceada, de forma cruel, pelas violências dos racismos contemporâneos. Mas, nesse dia, se faz alusão especialmente ao Quilombo de Palmares e ao assassinato do maior líder popular: Zumbi dos Palmares, morto no dia 20 de novembro de 1695, há 326 anos. Por que explicitamos que Zumbi dos Palmares foi o maior líder popular da história do país? Justamente porque ele se atreveu a construir, a partir da união de diversos quilombolas (homens, mulheres, crianças, velhos, velhas, negros, indígenas e brancos de diversas origens étnicas, culturais e religiosas), um projeto de nação diferente do que estava exposto e disposto nos séculos 16 e 17 no Brasil.
O projeto era de negação aos escravismos e as suas economias de vida, de comércio, de comportamento, de cultura, de Estado, de acesso à terra e de produção social voltada à monocultura da cana-de-açúcar. Os quilombolas em Palmares liderados por Zumbi almejavam uma sociedade livre dos escravismos e de suas mazelas sociais. Tinham o nítido propósito de forjar uma verdadeira e real democracia racial, com a contribuição de sua maioria negra, composta por africanos e seus descendentes, bem como com o concurso significativo de brancos pobres que viviam na mendicância e de prostitutas, além de indígenas que também lutavam contra a exploração e a expropriação de suas terras pelos conquistadores e usurpadores portugueses.
As mulheres negras tinham um papel de destaque na sociedade palmarina. Eram também detentoras de poder, como acontecia no seio das nações e etnias bantu. Era nítido que os palmarinos visavam reconstruir sua cultura, seus valores, sua ordem social à luz da experiência dos antepassados e da memória ancestral do modelo africano, diferentemente de como se pautava a estrutura social empreendida pelos lusitanos e demais europeus. Neste sentido, os nomes de Acotirene, de Dandara e de Aqualtune espelham esse contexto de importância da mulher na sociedade palmarina de então.
O Quilombo de Palmares teve várias lideranças, porém as mais conhecidas, segundo os registros documentais e da história oral, foram Ganga Zumba e Zumbi. O primeiro tornou-se o rei de Palmares, recriando no Brasil estrutura semelhante aos reinados que havia na África Bantu. Ganga Zumba não era um nome mas um título, que significa Senhor na língua bantu. O segundo transformou-se em um grande líder militar, que lutou até o fim pela liberdade de seu povo. É importante destacar que também Zumbi não era um nome, mas um título associado à noção de espírito invencível vinculado a Zambi, o nome de Deus entre algumas etnias Bantu.
O nome de Zumbi demonstra que os palmarinos também tinham as suas manifestações religiosas voltadas ao universo cultural e sagrado das populações bantu. Essas manifestações estabeleciam relações de aproximação e de assimilação, portanto de diálogo, com o catolicismo, na medida em que foram encontradas nos mocambos quilombolas imagens de santos católicos.
Zumbi tornou-se esse líder popular que substituiu Ganga Zumba, alcunhado como Rei do Quilombo. Ele liderou um projeto de sociedade; não apenas um conjunto de mocambos, mas uma federação deles ao longo da Serra da Barriga, na atual Alagoas, antiga Capitania de Pernambuco.
O legado africano na gênese do Quilombo de Palmares
No entanto, não se pode falar no Quilombo de Palmares ou em seus líderes sem abordar a população de origem bantu que o fundou, o manteve e o espalhou em diversos mocambos por quase cem anos, na Serra da Barriga e em suas imediações. Os povos bantu habitavam a região onde hoje se situa o país denominado de Angola. Eram guerreiros e guerreiras. Homens e mulheres livres, que para cá vieram na condição de escravizados/escravizadas em decorrência terem perdido a guerra contra os portugueses, depois de terem afastado os holandeses daquela parte da costa atlântica africana em pleno século 16.
Sete reinos dos povos Bantu, que ficavam em territórios das atuais nações de Angola e da República Democrática do Congo, caíram sob o poderio bélico português naquele momento. Em especial, os que estavam interligados ao que denominamos de império do Kongo, tais como Cacongo, Cassange, Lunda, Matamba, Ndongo, Quibanda e Quicuma. Eles foram destruídos paulatina e sistematicamente pelos portugueses entre os séculos 16 e 19. Suas populações foram submetidas aos escravismos, e muitos indivíduos traficados para o Brasil ao longo deste período.
Ser submetido ao escravismo não os fez deixar de lutar em nenhum momento. Muitos guerreiros e guerreiras foram traficados para cá, especialmente, os Jagas do reino de Matamba, após a derrota da Rainha Nzinga. Aqui no Brasil não deixaram de ser guerreiros, dotados de força moral, disciplina em combate, estratégia e conhecimento em logística. Após fugirem das fazendas de açúcar, situadas na Capitania de Pernambuco, fundaram o Quilombo de Palmares no final do século 16.
A região palmarina era constituída de uma vegetação vastíssima e exuberante, com muitas árvores frutíferas e muitos animais, além de ser bastante irrigada por córregos e rios. Dali, tiravam parte de sua subsistência e também desenvolviam sua própria agricultura, pautada pela policultura. Distantes da vida sofrida na escravidão, os negros cantavam nas noites de luar:
Folga Negro
Branco não vem cá.
Se vinhé
Pau é de levá.
Foi nesse contexto que homens e mulheres, africanos, negros, indígenas e brancos da terra e sem posses procuraram desafiar o regime escravista e o jugo do conquistador português, tentando conquistar sua liberdade, seus territórios, sua dignidade e, mais do que isso, sua humanidade. O dia nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, é dia de denunciar os crimes de lesa-humanidade cometidos pelo Estado português, pelo Estado brasileiro, pela elite agrária e agrícola, urbana e rural brasileira contra o seu povo, especialmente a sua maioria negra.
Atualmente, a sociedade brasileira — especialmente a população de negros, de brancos pobres e de indígenas — enfrenta o desafio de forjar, na dureza da vida e do cotidiano, uma sociedade que possa ser digna, humana, fraterna, livre e democrática do ponto de vista étnico-racial, social e econômico. Daí ter que confrontar o status quo político de antigos criminosos de bota, como Domingos Jorge Velho, e de novos assassinos de lesa-humanidade presentes no cenário brasileiro contemporâneo, esses de terno e gravata. Essa é a saga épica, dramática e guerreira daqueles e daquelas que fizeram o Quilombo de Palmares se espalhar por todo o território nacional, alcançar as praças, as ruas, as alamedas, os becos e clamar bem alto, neste dia 20 de novembro de 2021: “Ei, Ei, Zumbi! Você não morreu, você está em mim!”.
O profundo vínculo entre Angola e o Brasil
Por tudo isso, o Brasil e os brasileiros devem a Angola, a seus reinos e ao antigo império do Kongo, não somente o fato de ter tido o maior quilombo das Américas e do mundo no século 17, mas ter visto nascer o maior líder popular do país, a lutar pela liberdade do povo. Zumbi e os quilombolas lutaram por um povo brasileiro altivo, digno e humano, livre da opressão, da repressão e da violência que continua ainda a existir, conduzida pelos herdeiros do passado escravista, donos da economia, mas não de pessoas negras que carregam o espírito invencível dos palmarinos e das palmarinas.
Angola e Brasil poderiam estar juntos politicamente, após a independência do Brasil de Portugal, em 1822. Mas o Tratado de Reconhecimento da Independência do Brasil por Portugal, assinado em 1825, procurou vetar essa possibilidade. Porém, se a sociedade angolana reconheceu a nossa independência de Portugal, o mesmo aconteceu quando, em 11 de novembro de 1975, o Brasil reconheceu a independência de Angola do mesmo país europeu, sendo o primeiro país do mundo a dar vivas ao ato de proclamação da independência por parte do então Presidente António Agostinho Neto.
Após o século 16, Angola e Brasil estiveram muito próximos, e continuam a estar. Em especial, porque a população brasileira tem na sua maioria, que é negra, um grande percentual de ascendência angolana. E carrega, na sua base cultural, sentimental e no imaginário o costume, a prática e o ethos legados por essa África, que nos possibilitaram o samba, a capoeira, a umbanda, a feijoada, o jongo, o congado e tantos outros termos e nomes. Somos uma parte significativa e generosa dos antigos reinos de Angola que deram uma identidade de luta, de fibra e de coragem quilombola também ao nosso povo.
Dagoberto José Fonseca é docente do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara. Artigo escrito especialmente para o Jornal da Unesp.
Foto de abertura: monumento a Zumbi dos Palmares no Centro do Rio de Janeiro. Tânia Rego/Agência Brasil.