Levantamento intercontinental de deslocamentos de onças com base em sinal de GPS determina extensão de seus territórios e pode embasar ações de conservação da espécie

Estudo consolidou mais de 140 mil localizações por telemetria de cerca de uma centena de indivíduos, espalhados desde o México até a Argentina

Graças a uma iniciativa pioneira de compartilhamento de informações sobre onças-pintadas reunidas em diversos países, um grupo de pesquisadores conseguiu determinar os principais fatores – humanos e naturais – que podem afetar o tamanho dos territórios, ou áreas de vida, que estes felinos ocupam. Ao reunir dados de GPS obtidos por toda a América, o estudo foi capaz de apontar, por exemplo, que a presença de florestas preservadas e produtivas colabora para o uso de uma menor área de vida, enquanto a presença de estradas implica a necessidade de maiores áreas para que as onças possam subsistir. 

A onça-pintada é o maior felino das Américas e ocupa o topo da cadeia alimentar, desempenhando um papel ecológico fundamental no controle das populações. Especialistas apontam, contudo, que, em virtude do desmatamento e das mudanças no uso do solo, seus hábitats foram reduzidos em mais de 50% nos últimos 100 anos. Neste sentido, os pesquisadores argumentam que os resultados obtidos pela análise dos dados podem fornecer informações valiosas para, por exemplo, estabelecer áreas protegidas onde existam populações de onças-pintadas. 

Milton Ribeiro, professor do câmpus da Unesp em Rio Claro e um dos autores do artigo publicado na revista científica Current Biology, explica que a iniciativa de reunir os dados de movimento coletados por pesquisadores de todo o continente permitiu analisar áreas de características distintas, como florestas densas e produtivas com outras em áreas desmatadas, ou regiões de pouco acesso aos seres humanos a outras com alta quantidade de estradas. “O cruzamento desses dados nos permitiu chegar a conclusões que não eram possíveis por meio de pesquisas isoladas e que, embora importantes, não nos davam uma visão ampla dessas relações”, destaca. 

Ecologia do movimento

A ideia de reunir os esforços de diferentes grupos das Américas que usam ou já usaram a tecnologia de GPS para acompanhar o deslocamento das onças-pintadas surgiu durante um congresso sobre ecologia do movimento organizado pelos pesquisadores da Unesp de Rio Claro. Por ser um felino emblemático do continente americano, e estar distribuído em praticamente todo o seu território, a onça-pintada é objeto de estudo de diversas equipes de estudiosos. 

A tarefa de estabelecer o contato e fazer a articulação com esses pesquisadores ficou a cargo de Ronaldo Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP), vinculado ao ICMBio, e um dos maiores especialistas em onças-pintadas do Brasil. O esforço conseguiu reunir dados de pesquisas com GPS de grupos em cerca de 40 instituições. Ao todo foram 117 indivíduos monitorados no México, Guatemala, Costa Rica, Colômbia, Peru, Paraguai, Argentina e Brasil (ver mapa), gerando mais de 140 mil localizações de dados de telemetria. Os dados foram disponibilizados em um datapaper e estão acessíveis para qualquer pesquisador. 

Trabalhos que monitoram onças-pintadas envolvem um alto custo e esforço por parte das equipes de pesquisa. As onças têm hábitos solitários e muitas vezes noturnos, o que dificulta a sua captura e demanda diversas viagens a campo. Soma-se a isso o preço dos equipamentos de GPS. Os pesquisadores apontam que um trabalho que monitore mais de uma centena de indivíduos é praticamente impossível para um único grupo ou instituição.

“É difícil colocar um valor total de investimento das pesquisas que reunimos no datapaper, mas em equipamento de telemetria foram mais de 400 mil dólares aplicados. Se considerarmos os custos de captura, a presença das equipes em campo e demais custos envolvidos no trabalho, acredito que superem um milhão de dólares”, estima Morato. 

O pesquisador do ICMBio afirma que o compartilhamento de dados tem se tornado uma tendência na comunidade científica, inclusive estimulada pelas revistas e agências de fomento. “No caso específico da onça-pintada, essa foi uma iniciativa pioneira e que vem estimulando outros grupos que trabalham com a ecologia do movimento usando dados de telemetria de grandes felinos a também compartilharem suas informações”, afirma, citando iniciativas que estão reunindo dados de pesquisas com leões. “Talvez o próximo passo seja juntar os dados dessas diferentes espécies para fazer análises mais globais.”

Modelos matemáticos para explicar o comportamento das onças

Com a disponibilidade inédita de dados sobre o deslocamento das onças, foi possível comparar regiões com diferentes ocupações humanas e constatar que áreas com alta densidade de estradas exigem que a onça-pintada tenha uma área de vida maior, uma vez que ela precisa se deslocar mais para encontrar recursos para sua sobrevivência. 

Os dados indicam que as onças demandam uma menor área de vida quando estão inseridas em regiões com boa cobertura florestal, mas não apenas isso. É importante que este ambiente seja produtivo, ou seja, que sua biomassa seja capaz de disponibilizar energia que ajude a manter as diversas relações ecológicas ali presentes. “O Pantanal não tem tanta floresta, mas tem uma área úmida bastante produtiva que atrai muitas presas para a onça. Ali, as densidades são muito altas, com a presença de muitos indivíduos dentro de uma mesma área”, exemplifica o físico Bernardo Niebuhr, que concluiu seu doutorado no Programa de Ecologia da Unesp, em Rio Claro, onde se especializou na análise de dados que combinam a paisagem com o movimento dos animais para melhor entender os processos ecológicos.

Neste artigo, os dados obtidos a partir dos GPS foram associados a um modelo matemático que melhor descrevesse o comportamento das onças-pintadas. “A vantagem de termos acesso a esse grande banco de dados é que podemos comparar áreas diferentes, como o Pantanal ou a Caatinga”, afirma o pesquisador, que atualmente realiza um pós-doutorado no Instituto Norueguês de Pesquisas Naturais (Nina). Uma vez obtidas as informações sobre movimento, é possível relacioná-las aos dados de paisagem, como um corpo d’água, a cobertura florestal, se é uma floresta primária, secundária ou terciária ou seu regime de chuva. Na mesma linha, pode-se estabelecer relação com questões associadas à presença humana, como existência de infraestrutura de estradas, pastagens, hidrelétricas e atividades de mineração, entre outras.

Todos os exemplos acima são informações que já estavam à disposição dos pesquisadores, mas que agora podem ser cruzadas com este novo banco de dados sobre a movimentação dos felinos. O artigo sobre os fatores que afetam o uso do espaço da onça-pintada é apenas o primeiro a se apropriar deste material. Para o futuro, especulam os pesquisadores, pode-se analisar o movimento entre fragmentos de floresta, dentro do conceito de corredores-verdes, investigar a dinâmica das populações ao longo do tempo ou associar esses dados ao movimento também das presas das onças, por exemplo.  

Foto acima: Daniel Luis Zanella Kantek/ICMBio.