Hoje, para que o piloto de avião, o motorista de automóvel ou mesmo o pedestre possam saber com precisão em que lugar estão, basta que apertem um botão e, através de algum dispositivo, acessem o sinal enviado por um sistema de navegação por satélite. O mais conhecido deles é o Global Positioning System, conhecido popularmente como GPS, que pertence ao governo dos Estados Unidos. Porém, outros países e blocos possuem seus próprios sistemas. É o caso do Glonass, que atende ao governo russo, do Galileo, propriedade da Comissão Europeia, e do mais jovem da família, o BeiDou, desenvolvido pelo governo chinês. Porém, seja qual for o sistema adotado, para que dispositivo funcione a contento é preciso que haja uma ótima comunicação, via sinais eletromagnéticos, entre os satélites, que estão a uma altitude de 20 mil km, e o usuário no solo. E isso nem sempre acontece.
As chamadas cintilações ionosféricas — alterações na dinâmica da ionosfera, uma das camadas que compõe a atmosfera, que ocorrem acima dos 85 km de altitude — podem diminuir a precisão da informação que é transportada pelo sinal, a medida que este se desloca desde o espaço até a superfície. Esse fenômeno costuma prejudicar diversos sistemas que usam sistemas de navegação por satélite em terra, no mar e no ar (veja infográfico abaixo).
Para entender a dinâmica deste fenômeno e buscar soluções que mitiguem seus efeitos foi criado em 2017, na Unesp, o INCT Tecnologia GNSS no suporte à navegação aérea. A instituição foi criada com financiamento do CNPq, da Capes e da Fapesp, e é parte da rede de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, que soma mais de 100 centros de pesquisa pelo país.
O tema tem despertado cada vez mais atenção de institutos de pesquisa e empresas, uma vez que o uso da navegação por satélite é uma das apostas da aviação civil para otimizar sua atividade. A expectativa é que a apropriação dessa tecnologia pelas empresas aéreas permita, por exemplo, a redução da distância entre aeronaves, a diminuição da distância percorrida, queda no consumo de combustível e a melhora do controle aéreo.
Experiências de decolagens e pousos praticamente autônomos podem ser úteis em situações atmosféricas em que a visibilidade do piloto está prejudicada, por exemplo, e já estão em andamento nos Estados Unidos e Europa. Contudo, como explica João Francisco Galera Monico, da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Unesp do câmpus de Presidente Prudente, no Brasil a intensidade das cintilações ionosféricas impõe perdas à qualidade e integridade do sinal. Essas perdas suscitam preocupações a respeito da segurança e, portanto, restringem a aplicação da navegação por satélite no setor da aviação em nosso país.
Instituto Criado por demanda do governo Federal ao CNPq
Coordenador do INCT, Monico explica que, diferentemente dos demais centros que compõem a rede nacional de INCTs, a proposta do INCT GNSS NavAer surgiu a partir de uma demanda apresentada pela Secretaria de Aviação Civil ao CNPq. A motivação foi justamente o impacto das cintilações atmosféricas no sinal fornecido pelo GPS.
O termo cintilação ionosférica remete ao cintilar das estrelas que, aos nossos olhos, parecem piscar no céu devido às turbulências que ocorrem na atmosfera. Mas, no caso deste fenômeno, o que está na base é a alteração na densidade de elétrons em certas regiões da Ionosfera. A atividade solar leva a um aumento na densidade de elétrons nestas regiões, o que gera outros fenômenos e termina por resultar nas cintilações. As cintilações não ocorrem de forma homogênea em todo o globo terrestre. São mais intensas nas regiões de baixa latitude, como é o caso do Brasil (veja o mapa abaixo). Nestes locais formam-se extensas bolhas irregulares de plasma que podem chegar a 4 mil km de extensão e se deslocam de oeste para leste seguindo as linhas do campo geomagnético terrestre.
Ao passar por essas bolhas na ionosfera, os sinais do GPS ou de qualquer outro sistema de posicionamento por satélite, sofrem uma interferência que podem afetar a acurácia, integridade, disponibilidade e continuidade exigidos pela Organização de Aviação Civil Internacional (OACI), a agência responsável pelo desenvolvimento seguro da aviação civil mundial.
O foco das autoridades está em diminuir o impacto do fenômeno sobre a aviação civil em território brasileiro. A ideia é que as pesquisas colaborem para reduzir os efeitos dessas cintilações sobre o sinal para que este possa funcionar com a precisão e integridade exigidas para sua aplicação de forma segura no setor.
“Nós falamos principalmente da aviação, mas vale lembrar que esse fenômeno afeta todas as aplicações que dependem do serviço dos sistema global de navegação por satélite em tempo real, como a agricultura de precisão, a navegação marítima ou os veículos autônomos”, lembra o professor do câmpus de Presidente Prudente. Atualmente, a equipe do INCT conta com cerca de 60 pesquisadores de diferentes instituições, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Instituto Federal de São Paulo (IFSP), entre outros.
Influência dos ciclos solares
As áreas onde as cintilações ocorrem com maior frequência estão em torno do Equador magnético, uma região próxima à linha do Equador geográfico, mas que obedece ao campo magnético terrestre. Além disso, pesquisadores apontam maior intensidade e frequência do fenômeno após o pôr-do-sol, durante o período do ano entre o equinócio da primavera e o equinócio de outono (aproximadamente de setembro a março) e, principalmente, em épocas de maior atividade solar, ou seja a cada 11 anos (veja o infográfico abaixo).
O INCT coordenado pela Unesp acumula dados sobre a atividade ionosférica obtidos por meio de uma rede de estações de monitoramento contínuo das cintilações, que em 2021 completou dez anos de atividade. As estações estão distribuídas pelo país e são um legado de dois projetos anteriores chamados CIGALA e CALIBRA, que financiaram a implantação de parte da infraestrutura. A grande quantidade de informação gerada pela rede mobilizou o desenvolvimento de um software chamado ISMR Query Tool, que torna mais amigável a visualização e o uso desses dados. “O software é capaz por exemplo de gerar gráficos, organizar dados da rede automaticamente, armazená-los em um banco de dados e disponibilizar pra comunidade cientifica”, explica Bruno Vani, que desenvolveu a ferramenta durante a sua dissertação de mestrado. Segundo o pesquisador, o software já recebeu mais de 50 mil consultas desde que foi disponibilizado online.
Os registros da rede de monitoramento da Unesp iniciados em 2011 incluem o último período de auge da atividade solar, entre os anos de 2013 e 2014. Os dados confirmam que neste período houve maior incidência de cintilações ionosféricas e maior perda da integridade e da qualidade do sinal do sistema global de navegação por satélite.
Aluno da Unesp desde a graduação até a conclusão de seu doutorado, em 2018, Vani, que hoje é professor do IFSP, acompanhou a trajetória do INCT desde sua criação e teve toda sua produção acadêmica ligada ao centro. Na sua tese de doutorado, ele usou os dados fornecidos pela rede de monitoramento para explorar estratégias de mitigação dos efeitos da cintilação.
O imenso volume de dados fornecidos pela rede de estações e administrados pelo software foram combinados a algoritmos que buscam atenuar os efeitos da cintilação. Neste processo, Vani também analisou modelos já existentes na literatura para esta mesma finalidade, adaptando e criando um novo modelo.
O esforço, ainda que teórico, conseguiu reduzir a imprecisão causada pela cintilação ionosférica de cerca de dois metros para alguns centímetros.
“Na tese, a ideia foi apresentar uma prova de conceito em que é possível modelar melhor os efeitos da cintilação para ter resultados mais precisos em campo. Para fazer isso em tempo real seria preciso, por exemplo, coletar esses dados com alta taxa de transmissão”, explica o pesquisador. Para Vani, outro fator limitante seria a capacidade de processamento desses dados. “Existem outros modelos na literatura com a mesma finalidade. Mas eles recorriam a modelos teóricos de cintilação. Nós tivemos dados de cintilação em abundância, o que de certa forma é algo recente. No ciclo solar anterior, por exemplo, isso era impensável”. Os resultados foram compilados em um artigo, publicado na IEEE Transactions on Vehicular Technology.
Na mesma linha, Bruno também explorou em sua tese de doutorado modelagens para a predição das cintilações, da forma como temos, por exemplo, na previsão do tempo na TV a respeito das chuvas, temperatura ou umidade do ar. Novamente, a base de dados foi utilizada para, por meio do uso de redes neurais artificiais, conseguir prever o fenômeno com algumas horas de antecedência. “Mais uma vez o resultado serviu como uma prova de conceito, que constatou que é possível ter um resultado preditivo bacana”, afirma o pesquisador, que está finalizando um artigo sobre o assunto para submissão.
Para o pesquisador, à medida que o próximo auge da atividade solar se aproxima, deve crescer o interesse por esse tema de pesquisa. “No último auge do ciclo solar nós ainda não tínhamos tantas aplicações. Mas no próximo apogeu, que deve ocorrer entre 2023 e 2024, provavelmente teremos drones, veículos autônomos, expansão da agricultura de precisão e as aplicações para a aviação civil. Esse tema de pesquisa deve ganhar ainda mais evidência”.
Ilustração acima: angelha/iStock.