Desafios de conferência climática internacional na Escócia incluem revisar Acordo de Paris e solucionar disputas por mecanismo de mitigação

Especialista em diplomacia ambiental explica que ausência de China e EUA na COP26, que começa domingo, leva comunidade internacional a temer que decisões sobre o clima passem a ser tomadas fora de encontros multilaterais, misturadas a outras agendas. Programas anunciados pelo governo Brasileiro na última semana não devem reverter atual imagem ruim do país na esfera ambiental.

Entre os dias 31 de outubro e 12 de novembro, a cidade de Glasgow, no Reino Unido, receberá a 26a edição da Conferência das Partes (COP). O encontro reunirá líderes mundiais e representantes da sociedade civil para discutir os desafios climáticos enfrentados pelo planeta.

As COPs são reuniões anuais realizadas pelos países signatários (ou partes) da Conferência-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, realizada em 1994, com o objetivo de deliberar sobre como atingir os compromissos assumidos ao fim da Conferência, que incluem a mitigação das mudanças climáticas e a busca de formas de adaptação a esse cenário, tendo como referência os relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).

A edição deste ano, anteriormente prevista para novembro de 2020, mas postergada devido à pandemia de Covid-19, recebe atenção especial por marcar o quinto aniversário da assinatura do Acordo de Paris. Portanto, boa parte das discussões deverá ser pautada pela revisão e finalização do tratado firmado em 2015.

Para entender quais serão os principais pontos na mesa de negociação e as expectativas para o encontro na Escócia, conversamos com a professora Fernanda Mello Sant’anna, do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, câmpus de Franca, especialista em política ambiental global.

Quais devem ser os principais temas a serem discutidos na COP26?

Fernanda: A COP26 tem sido muito esperada porque vai buscar regulamentar algumas questões que estão em aberto a respeito do Acordo de Paris, assinado em 2015. Os países têm que apresentar a segunda etapa de suas NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas), uma vez que o Acordo de Paris prevê revisões periódicas a cada cinco anos. Existem ainda alguns artigos específicos do Acordo de Paris que precisam ser melhor regulamentados, como o artigo 6, que envolve a definição dos mecanismos que vão estar presentes  no mercado de carbono. Este mercado, de uma forma geral, deve estabelecer a forma como as nações vão negociar a compra e a venda da mitigação das emissões de carbono e têm sido objeto de disputa política de países e de grupos de países

Há também uma discussão sobre a transferência de recursos dos países desenvolvidos para os países mais pobres, para custear a adaptação e a mitigação das mudanças climáticas. Como está esse debate?

Fernanda: Este é um tema amplo na política ambiental global e que na verdade nunca deixou de ser discutido, estando presente em várias outras conferências ambientais. A ideia, basicamente, é que os países ditos ‘desenvolvidos’ no centro de poder do mundo teriam contribuído mais para a degradação ambiental do que os países pobres. Esses, como não têm as mesmas condições econômicas de arcar com medidas que mitiguem os efeitos das mudanças climáticas, teriam os custos financiados pelos países ricos.

A princípio, determinou-se que esse financiamento seria de US$ 100 bilhões. Mas a discussão hoje é que este valor é baixo e não pagaria o custo deste processo, principalmente da transição energética para fontes renováveis, que não é barata, envolve compra de tecnologia e gera impactos na atividade econômica em geral.

E o Brasil nesse contexto? O que o Brasil está levando para a COP26?

Fernanda: Quando falamos de Brasil, neste momento, cabe diferenciar o governo brasileiro da sociedade civil. O governo atual teve algumas ações que contribuíram para uma visão bastante negativa do Brasil. Uma delas foi não querer sediar a COP25, prevista para acontecer em Salvador, em 2019. Pesa também a forma como o país tem conduzido suas políticas ambientais em geral e especificamente em relação às mudanças climáticas. Um exemplo é o aumento dos incêndios na Amazônia, no Pantanal e em outras regiões do país. Além disso, houve um desmantelamento da Política Nacional de Mudanças Climáticas elaborada em 2008. Ao invés de essa política se fortalecer e acompanhar os tratados globais, o que a gente viu foi um corte de mais de 90% do seu orçamento. Colabora com essa visão externa negativa o fracasso no combate ao desmatamento da Amazônia, que é a maior fonte de emissão de carbono do Brasil.

Por outro lado, a sociedade civil brasileira não está parada e seus representantes também estarão em Glascow.

Essa sociedade civil sempre foi muito bem articulada, cobrando o governo, inclusive judicialmente, e confrontando as fake news sobre o desmatamento da Amazônia, apesar de todos os ataques aos ambientalistas. Também os povos indígenas do Brasil hoje representam a si mesmos, e estão sempre presentes nessas esferas de debate global, como a COP.

Mas o Brasil já foi protagonista nos debates ambientais. Essa reputação negativa é algo recente?

Fernanda: Eu vejo que o Brasil nunca foi um país comprometido com o meio ambiente. Tivemos algumas poucas políticas pioneiras na agenda ambiental, como por exemplo o Código Florestal, na década de 60. Mas a implementação, a fiscalização e a punição com base nessas legislações ambientais sempre foram deficientes.

Nos anos 80 e 90, com o assassinato do ambientalista Chico Mendes e notícias do desmatamento na Amazônia, a imagem do país na comunidade internacional ficou muito ruim. Mas o Brasil foi habilidoso em desmontar essa imagem, por exemplo ao se colocar como sede da Rio-92. Naquele momento, essa iniciativa mostrou que o Brasil queria reverter a imagem negativa e aceitar a cooperação internacional para elaborar as políticas ambientais. Desde então, a política ambiental sempre foi apoiada na cooperação internacional, até os dias de hoje, com o Fundo Amazônia.

Ao mesmo tempo, o Brasil nunca deixou de defender o direito a se desenvolver, sendo uma liderança entre os países do Sul, menos desenvolvidos. A partir da Rio-92, o Brasil passa a se engajar no tema ambiental. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, criado pelo Protocolo de Kyoto, por exemplo, foi fruto da atuação brasileira. Porém, o Brasil deixou de propor iniciativas dentro do Regime de Mudanças Climáticas, e passa a atrapalhar as negociações do Artigo 6, que trata do mercado de carbono, sendo um dos países que se posicionou contra a iniciativa.

Na última semana, às vésperas da COP26, o governo anunciou duas medidas: um Programa Nacional de Crescimento Verde e a formação de um Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima e Crescimento Verde. Como você vê essas iniciativas?

Fernanda: É o tipo de ação que chamamos ‘para inglês ver’. Quem está à frente desses ministérios têm a mesma posição negacionista em relação ao clima que o presidente Bolsonaro. Esta tem sido uma estratégia recorrente do governo Bolsonaro: manter as instituições, mas tomando medidas que ao fim acabam por inviabilizá-las, como redução de orçamento ou dissolução de comitês, por exemplo.

E como isso é recebido pela comunidade internacional?

Fernanda: Na COP isso não engana ninguém. Para um público mais leigo, talvez isso passe a ideia de que algo está sendo feito. Neste sentido, essas anúncios são mais voltados para o público brasileiro que para os representantes na COP26.

Você mencionou o direito ao desenvolvimento historicamente defendido pelo Brasil. Como conciliar esse direito em um cenário de mudanças climáticas, considerando ainda o argumento de soberania nacional usado pelo governo em relação à Amazônia?

Fernanda: A soberania é um conceito bastante debatido nas relações internacionais e um dos pontos levantados é que essa soberania idealizada, de total autonomia, não existe. Ainda assim, ela é um argumento bastante evocado, em especial por governos autoritários.

Todas as políticas públicas sofrem interferências internacionais, da mesma forma que nós interferimos no internacional. Somos uma economia global e a crise de 2008 mostrou como aumentamos nossa interdependência e vulnerabilidade econômica. Essa soberania é mais um mito que uma realidade, e no caso da Amazônia, ela costuma ser usada para mobilizar sentimentos patrióticos e nacionalista quando convém.

Líderes importantes como Xi Jinping (China) e Vladimir Putin (Rússia) não estarão na COP26. Alguns analistas estão pessimistas em relação ao resultado do encontro em Glascow. Qual sua expectativa para a COP26?

Fernanda: Em um debate que participei recentemente, a professora Ana Flavia Barros Platiau (UnB) falou que o regime internacional de mudanças climáticas vai bem porque os dois maiores emissores, China e Estados Unidos, estão conversando. O que vai mal é o multilateralismo. As COPs vão mal porque as grandes decisões estão sendo tomadas fora das COPs e dos encontros multilaterais.

O Xi JInping não precisa ir porque está negociando bilateralmente com os EUA. Quando era presidente, o Trump saiu do Acordo de Paris e se reuniu com a China para estabelecer acordos de metas fora do mecanismo multilateral. O governo Biden acabou de começar e já teve conversas sobre as metas com China ou outros países também de forma bilateral. Neste contexto, as negociações ambientais acabam entrando em um pacote de discussões bilaterais que também envolvem outros temas, como o 5G, acordos comerciais, etc. Esse é um problema do multilateralismo e o mesmo acontece, por exemplo, no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio).

Imagem acima: divulgação.